Apropriamo-nos, por instantes, do nome da rubrica que Rui Miguel Abreu vai inscrevendo no programa Pontos de Luz de Isilda Sanches na Antena 3, para fazer referencia ao que foi a segunda noite de concertos na 22ª edição da Festa do Jazz no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, dia 7 de Dezembro. Novas edições discográficas em destaque num lado, outras chamadas à memória mais ou menos distante no outro. Tal como no referido programa de rádio, também aqui houve lugar de destaque à novidade e à música retomada, como dois lados opostos (fisicamente) de um disco — aqui num programa de palco.
Em boa verdade foram duas estreias, uma do trio escandinavo formado pela pianista e compositora norueguesa Liv Andrea Hauge em palcos portugueses e a outra uma estreia absoluta, em duo, dos compositores e instrumentistas Andy Sheppard (saxofones) e Aaron Parks (piano). Por um lado, um trio que celebrou a primeira entrada discográfica com Ville Blomster, editado pela Hubro, de Oslo, neste 2024. Por outro, dois músicos pela primeira vez juntos a tocar, mas que têm inscrito, cada um por si e em diferentes contextos e formações, discos atrás de discos, em catálogos editoriais desde a ECM à Blue Note. De Sheppard são mais de 300 composições musicais, entre inscrições a solo, em pequenas ou alargadas formações e até mesmo para orquestras. Tocou junto de Carla Bley ou Steve Swallow, para referir apenas dois de tantos nomes possíveis. De Parks, como compositor e pianista, sabe-se uma discografia notável, com 25 anos de registos começados com The Promise em 1999, num trio com Evan Flory-Barnes no baixo e Eric Peters na bateria, pela Keynote. Tornou-se um músico da Blue Note com Invisible Cinema em 2008, com Mike Moreno em guitarra, Matt Penman no baixo e Eric Harland na bateria, até ao seu solo com Arborescence editado pela ECM em 2013. De Hauge, com uma notoriedade em crescendo, posta em comparação com os anteriores músicos referidos, vai construindo um assinalável percurso. Em 2021 foi selecionada como representante norueguesa no programa European Jazz Footprints, tendo a esse propósito convidado a contrabaixista Georgia Wartel Collins e o baterista August Glännestrand para uma digressão em 2022. Assim nasce este trio com Hauge ao piano.
No palco da Festa do Jazz’24 há lugar para dois concertos em lados opostos. Em Liv Andrea Hauge Trio entra invariavelmente a frescura do disco de estreia. Com Sheppard & Parks o palco inscreve-se numa revisitação, mais longínqua e amadurecida, da matéria dada.
Hauge, Collins e Glännestrand trazem pendor e balanço, assentes num jazz virado para um futuro, pleno de impulso. Essa mesma visão está incorporada em “Vår”, tema-definição do trio, por isso mesmo assim chamado e que numa tradução livre se entende como sendo deles próprios, precisamente. E aquela mão esquerda de Hauge a abafar as cordas do piano enquanto desenhava uma melodia trauteante com a outra nas teclas em “Fri Flyt”, numa corrente livre pois então, em doses aventureiras de livre improviso. Parece mesmo que vão crescer flores na lua, como indicia o tema “Det vokser ville blomster på månen”, tocado com doses de ousadia capazes de colonizar novos espaços. Como esse perfume na música, como nas flores selvagens, fragrâncias inesperadas, assim é memória deste trio em palco. Souberam ainda revelar o amanhã com “Karja”, tema novo, não inscrito em disco, e que traz um pulsar de contrabaixo muito à Petter Eldh. Comentado o sentido na cadência do tema com a contrabaixista, depois do concerto, dela tivemos a gratidão e a confirmação do propósito. Não será descabido ficar a pensar na influência, ambos nascidos em Gotemburgo, nas margens do Mar do Norte — será da água, seguramente, e se assim for que sigam nessa certeira ingestão.
Voltados para um certo passado, num requintado presente, unindo dois músicos de craveira desmedida. Nesse outro lado posto em contrapartida, assim mesmo em análise, que resulta antes demais desse vivido, no momento de seguida. Antes, em palco, o pulsar fresco e perfumado, agora a domada destreza instrumental. Com um piano em doses generosas, irrepreensivelmente tocado, brindado com um, ora tenor ora soprano, exímio saxofonista. Ambos num conforto absoluto, espaço de vestimenta à medida. Havendo também aqui o lugar da música em improviso, desde logo nas teclas de Parks, é um risco despercebido, onde o tal fio da navalha é inexistente, ou onde a musicalidade o oculta no primor da execução. Há isso sim, notórias e elevadas doses de sonoridade tropical, que levam Parks ao entusiasmo do cantarolar. Somos conduzidos por uma corrente feita de empática ligação entre músicas, que apenas os aplausos e a troca de saxofones ajuda a destrinçar.
Há noites assim, onde a vertigem alimenta a emoção, vivida a escalada da via musical, por músicos com ou sem arnês. E perguntava-se em modo surpreendida, Liv Andrea Hauge, a meio do concerto, vendo-se a tocar perante um auditório repleto: “Certamente muitos para ouvir quem virá tocar em seguida….” E nós daqui respondemos: “Nem tanto assim, cara Liv.”