Para pensar o cartaz da Festa do Jazz, já na idade adulta, contou-se com um olhar recobrando os anos passados e enveredou-se pela escolha de dois músicos como programadores para as propostas apresentadas. Assim, libertando-se da função, assumem um compromisso com o saber delegar, convocando outros e outras, nisso desafiando outras correntes. Dois dos três dias de festival contemplam duas formações em cada dia, propostas por dois curadores convidados. Precisamente nessa ousadia couberam, nesta edição, as primeiras escolhas à compositora e cantora Mariana Dionísio que, nas suas palavras, justifica-as considerando músicos que exploram as potencialidades sónicas numa relação forte com a improvisação. Complementando ainda o carácter desafiante, alude a curadora em funções com propostas de “formações aparentemente clássicas, mas com uma linguagem musical não-convencional absolutamente diferente uma da outra”.
À entrada, na tarde de dia 7 de Dezembro, para o Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, temos a noção que caminhamos num daqueles novos ramos da árvore da vida, naquela figuração que ilustra a diversidade biológica no sentido da evolução. Imaginado o paralelismo possível, entre as espécies e a música específica, onde também há essa relação evolutiva entre entidades distintas. E como a Biologia Evolutiva vai postulando em teoria, o surgimento de novas espécies — a especiação —, que ocorre no tempo devido a mecanismos que levam ao apartar genético desde uma população primordial. Seguindo a sugerida comparação, na música encontramos algo em semelhança quando escutamos e tentamos relacionar o novo com o antes conhecido. Esse mecanismo vem da escuta em redor, da percepção integral do espaço envolvente. Dá-se a especiação quando surge o isolamento genético, no caso das espécies como entidades biológicas, e aqui manifesta-se nos tipos de sons abordados na expressão musical. Servirá isto para referir o que passámos a ouvir em palco, na primeira das tardes da Festa do Jazz versão 2024.
Primeiro com Sonic Tender, trio de trabalho sónico no campo do nunca antes assim escutado. Formados por Guilherme Aguiar no piano acústico, João Carreiro na guitarra eléctrica e João Valinho na bateria, que em tudo mais foi estrutura de percussão diversa. Focamos o campo visual na “mesa” de trabalho de Valinho, nada que ver e ouvir com os MOVE onde é força motriz. Dionísio já alertava para isso mesmo, que estas propostas eram do campo novo no escutado. Também do por nós escutado, a meados de Julho aquando do concerto de encerramento do Festival Robalo, ainda que pelas ondas da rádio à boleia da transmissão em directo da Antena 2 desde o Liceu Camões em Lisboa. Serviu no encanto da subtiliza murmurante dos sons, pedindo para desvendar mistérios. Ouvimos o novo, estritamente nada se assemelha ao escutado, como referia João Esteves da Silva na recensão feita em The Free Jazz Collective para o disco debutante Odd Objects de Sonic Tender, editado pela Robalo neste mesmo ano. Nas mãos de Valinho há um mundo conhecido pelos objectos emissores de som que manipula com espátula e tudo, há entre campainhas e sinetas uma paramenta sónica em curso. Que se presta a adornar o que as cordas trazem na ressonância, quer as estendidas no braço da guitarra de Carreiro, quer as horizontais do piano operado por Aguiar. Esse piano que se escuta melhor do que se vê, ainda que esteja por diante — colocado propositadamente com o teclado virado para o fundo de palco. É um mistério em curso a música que o trio vai desprendendo, em regime de murmúrio, ténue, e que convida a uma escuta redobrada. Progride numa subtil derivação dentro de cada tema e muito de tema em tema. Passa-se por um tempo de acção sónica no gerúndio, perpetuando a descoberta pelo saber fazer, como nos remetem os nomes dos temas como “Pointing”, “Pulsing” ou “Descending”. O piano ouve-se quase sempre numa melodia sucessivamente abafada pela surdina, a guitarra inscreve exercícios circulares que progridem vagarosos para um espaço que encontra a bateria e percussão na maior diversidade tímbrica. Justamente, é por força das baquetas que pulsa o sentido jugular deste mecanismo sónico que dá pelo nome, muito apropriado — Sonic Tender. Andamos, com este trio, seguramente próximos de uma divergência musical, surgida desde uma população a que nos habituamos a chamar jazz. Já podemos descrever uma nova espécie?
Outro mecanismo a operar nos campos da especiação deve-se a processos no sentido do reforço a um certo isolamento, acrescente-se genético — para referir as espécies biológicas —, e na mesma medida comparativa, também se lhe encontra lugar nos campos da música. Entra aqui o que conhecemos do trabalho de Joana Sá, como pianista e de Savina Yannatou como cantora. Ambas com percursos apartados das linguagens da música convencional. A junção das suas idiossincrasias musicais encontra-se registada em Ways of Notseeing pela Clean Feed em 2020. Confirmando a perseverança do inesperado primeiro encontro. Contudo estão em campo, a preparar um segundo trabalho, terminado de gravar em estúdio. A breve trecho haveremos de confirmar esta mesma especiação em curso. Neste palco da Festa do Jazz entram em cena como sendo a outra das propostas pensadas por Mariana Dionísio.
A voz de Yannatou como matéria sónica, mas uma voz que inventa uma linguagem, que canta em modo não-canção. Que encanta sem quase cantar e que constrói um cenário em palco, justamente pela voz, sonoplastia primordial. Joana Sá que aborda o piano desde dentro, começando por desde esse interior fazer ressoar os lamelofones, as lâminas do metal em caixa própria, fazendo do piano uma dupla caixa de encanto. A estória reside no que cada um(a) escuta. Numa distinta possibilidade, avança peça adiante, feita de campos magnéticos que surgem do piano e suportam a tensão da voz, enigmática expressão que desenvolve uma narrativa imaginada, feita de cargas emotivas, que a certo andamento encontra um lamento. É a música de Sá, agora nas teclas do piano, que comporta e que conduz a acção, sendo que é a voz narradora de Yannatou que a descreve. Uma terceira e decisiva ligação está em cada ponto de escuta do duo em palco. É um improviso estruturado, que concede lugar ao livre improviso. Aos comandos das mãos, também elas ressoantes de Joana Sá — lembrada da prática de um corpo todo ele que escuta —, escutam-se engenhos de circuit bendings, como inesperados pontos emissores que se chamam para criar momentos que desencadeiam novos padrões rítmicos que se escutam em diante. Espanto e encanto, fascínio e mistério, parece haver um par de acção-reacção que equilibra as forças, piano e voz. Para final estavam reservadas as taças tímbricas, como que para sorver a poção sónica, parte de um todo. Segundo momento de uma nova espécie de música.