Uma festa que se quer vivida, assente nos pilares livres da música, sem dogmas e estéticas formalizadas. O jazz, como campo fértil no diálogo, capaz de proporcionar pontes culturais nos dias de hoje, feitos de confluência de povos. Quando a modernidade tende a colar uma narrativa de epopeias, visitando um passado, que se sabe pelo desastroso presente, que em muito colonizou culturas, arrasou civilizações, impondo uma certa, que não acertada, visão do império dominante. Os infindáveis conflitos territoriais e as disputas opressoras prosseguem invariavelmente feitos com a mesma vontade de outrora — dominar. Em contraponto estarão, como em campo no passado, os que resistem, como bolsas de identidades, muitas e tantas vezes milenares.
Noutros contextos, trazia Nicolau Steno o uniformitarismo, o princípio em que o presente é a chave do passado, como fundamental ferramenta no desvendar da sobreposição do tempo geológico. Os processos naturais de hoje, que operam sobre o planeta, são os mesmos que moldaram a história da Terra. Residem, contudo, outras possibilidades redentoras no mundo civilizacional. Afinal, na humanidade há o lugar do criativo, a natureza do racional — contrapondo o natural estado das coisas e dos processos irracionais.
A Festa do Jazz que volta para ser expressão de confluência, e na sua 22ª edição, entre os dias 6 e 8 de Dezembro, traz a Belém, em Lisboa, entre 9 concertos no Pequeno Auditório do CCB e 2 dias de mostras musicais com o Encontro Nacional de Escolas, no Antigo Picadeiro Real do Museu Nacional dos Coches, um fresco panorama da música jazz. A abrir o programa uma estreia em Portugal, com um dos nomes a ter em conta do novo jazz, nesse estimulante campo do JazzNãoJazz, a formação parisiense Sarāb.
Sarāb, palavra árabe como significado de miragem — campo do que os olhos querem ver para além do real. Esse é, afinal, um lugar maior da música, imaginar o real, mas se com isso estiver enraizado num passado concreto, mais resiliente se torna essa visão. Será uma expressão dessa possibilidade Sarāb, como agrupamento que junta criativamente Climène Zarkan na voz, Baptiste Ferrandis na guitarra eléctrica, Robinson Khoury no trombone e voz, Thibault Gomez no piano e sintetizadores, Timothée Robert no baixo eléctrico e Paul Berne na bateria e voz. Dão a entender que são muitas vozes, e trazem ainda outras mais na ancestralidade das culturas do Médio Oriente — de uma Síria, passando pelo Egipto, até à Palestina, asfixiada e sitiada. Precisamente a Palestina que enaltecem no poema transcrito na sua música, vinda das palavras de Mahmud Darwish, que fala de liberdade e amor. Temas maiores que transcrevem a razão de existência da música que inscreveram com o segundo disco Arwāh Hurra – Âmes libres, no final de 2021. Registo que nas suas palavras é um janela aberta para o desejo de escrever sobre outros temas, importantes e empenhados, como a questão da relação com o outro — do medo do estrangeiro —, do feminismo, do estado actual da Terra e do futuro. Em 2023 ressurgem com Qawalebese Tape, um EP na forma de claro manifesto, para reafirmarem a sua voz, como assumido no nome do tema final do registo “Je veux que le monde sache”, querendo que o mundo fique a saber. E nós ficámos a saber disso mesmo, concerto adiante.
Começo com dois temas de mão cheia, plenos de furor e inquietude furiosa, que Zarzan, como porta-voz do grupo, refere como duas love songs. Cabem nelas a sua visão mirabolante de linguagens múltiplas, vindas das distantes culturas árabes, muito por força da natureza e raiz vocais sírias de Zarzan, mas onde entra a confluência musical que desagua na Paris de hoje. Jazz indomável, com acarreios de paisagens doom metal, ou oníricas expressões da modernidade com sintetizadores e melodiosas linhas de baixo. Há uma base manifesta de resistência e identidade árabe, proclamada em muitos temas de megafone em riste, como que encabeçando um mar de gente — muitos somos nós, aqui sentados por diante. Estarmos efectivamente sentados numa cadeira é ingrato, quando voltamos a temas como “Queen Rast” que nos arrastam para uma dança empolgante, imaginada de punho erguido. Diálogo intrépido entre o trombone de Khoury e a voz, entre a megafonia e a melancolia de Zarazan, que não escapa ao rastilho lançado desde a guitarra de Ferrandis. A guitarra onde, desde as primeiras luzes de palco, se lê “Free Palestine”. Esta música é um espaço de manifestação, de denúncia e criação, que incorpora e devolve. Como demonstrado, estar presente na actualidade em palco é ter voz consciente e ampliada, e fazer a festa. Razão de sobra para voltar ao lugar onde, e como último concerto em sexteto, puderam contar com Robinson Khoury no trombone e voz por companhia. E nesse preciso “Zourouni” voltam às palavras de outro poeta Darwish, desta feita ao egípcio Sayed, onde em seu dia escrevia neste poema, aqui retomado, que se lembrem dele pelo tempo que passou a servir os que o leram. Assenta tão de propósito na despedida e agradecimento dos companheiros a Khoury, como deste público da Festa do Jazz a Sarāb.