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Fotografia: Inês Condeço
Publicado a: 19/11/2025

Quando dói mas também faz sorrir.

Femme Falafel: “Não se brinca com coisas sérias e apetecia-me muito, muito brincar com coisas sérias”

Fotografia: Inês Condeço
Publicado a: 19/11/2025

Há quem tenha receio de pôr o dedo na ferida, depois há os que, como Femme Falafel, fazem disso uma actividade lúdica, aplicando elevadas doses de ironia e sarcasmo às amarguras da vida. Essa sua peculiar visão transparece totalmente na música que cria e não terá sido por acaso que escolheu intitular o seu álbum de estreia de Dói-Dói Proibido, um conjunto de 10 canções que ajudam a refrescar a visão que temos em torno da canção pop portuguesa, em que o jazz desempenha um papel de grande importância, mas não sem também dar uma perninha a géneros como o hip hop, a house ou a MPB.

Editado há um mês pela Revolve, Dói-Dói Proibido tem vindo a ganhar rotação nas plataformas digitais, mas prepara-se agora para saltar para os palcos, para um par de concertos que, segundo a artista, dificilmente se repetirão. São, por isso, oportunidades únicas aquelas que acontecem já hoje — no B.Leza, em Lisboa — e no dia 28 de Novembro — no RCA, no Porto. Mas antes, vale a pena mergulhar mais a fundo no universo de Femme Falafel através da entrevista que concedeu recentemente ao Rimas e Batidas e que podem ler já de seguida.



Este trabalho já está a ser feito há algum tempo, não é?

Há muito tempo, mesmo. Não sei se isso se reflecte muito na música que está no disco, mas acho que comecei a escrever para ele enquanto ainda estava a estudar jazz, na ESML. Eu queria ser muito prodigiosa, mas era demasiado preguiçosa para ser muito boa naquilo que fazia, então vivia ali numa frustração. E comecei a tentar ver se conseguia arranjar outros caminhos [risos]. Ou seja, com aquilo que eu já tinha aprendido, queria ver se conseguia arranjar ali qualquer coisa que não implicasse ser uma pianista de jazz incrível. Foi assim uma ambição meio furada [risos]. Na altura, eu estava tão frustrada com aquilo, que estava a fazer versões meio meme de standards de jazz no Garage Band. Eu não percebia nada daquilo, mas estava a brincar um bocadinho com aquilo que… A ESML era um sítio tranquilo, mas havia um bocado aquela entidade do jazz, tipo o jazz é uma coisa séria.

E não se brinca com coisas sérias [risos].

Não se brinca com coisas sérias e apetecia-me muito, muito brincar com coisas sérias [risos]. Então acho que Femme Falafel começou um bocadinho por aí, era eu a brincar com coisas que não era suposto.

O nome vem desde essa altura?

Sim.

E há alguma história curiosa por trás do nome?

A história foi que eu enviei uma música do Haruomi Hosono a uma amiga e a música chama-se “Femme Fatale”, um nome super comum para uma música. E ela: “Amiga, li mal. Sabes o que é que eu li? Eu li Femme Falafel”. E aí parou tudo. Ela leu totalmente certo [risos].

E estavas a falar-me que isso começou na escola.

Foi isso. Começou por ser um registo super de brincadeira, continuou aí durante algum tempo, mas depois comecei a ganhar o gosto de escrever. Primeiro escrevi em inglês, mas aquilo ficava meio pedante e estranho, não estava a resultar muito bem. Depois comecei a escrever umas letrazinhas e a cena foi-se desenvolvendo.

O teu trajeto académico foi até ao fim? 

Sim, sim.

Tens o diploma lá na sala, por cima da lareira? [Risos]

Não faço ideia onde está o diploma [risos]. Provavelmente está num PDF qualquer que me enviaram. Mas existe. Eu tenho síndrome de boa aluna e gosto de terminar as tarefas. E depois disso ainda fui estudar para a Dinamarca.

A tua escrita é aquilo que eu acho que te distingue. Eu costumava dizer — disse isso durante muitos anos — que música e humor não combinam. Talvez aquilo que te diziam do jazz, eu pensava da música em geral — música é uma coisa muito séria. Ser músico é uma coisa, ser humorista é outra coisa. Não estou a dizer que tu estás a tentar fazer stand-up comedy nem nada que se pareça, mas… Sempre achei que era certo a música fazer-nos chorar, pensar, agir, apaixonar, o que seja. Mas fazer-nos rir, não sei porquê… Só que, nos últimos anos, têm surgido alguns autores na música portuguesa que têm, se calhar, uma atitude muito mais desprendida em relação a essa seriedade e têm uma outra capacidade de olhar para o mundo, o que me tem feito perceber que não faz mal nenhum rirmos enquanto estamos a dançar ou enquanto estamos a ouvir música. De onde é que tu dirias que vem essa caneta que tu tens? Essa veia tão mordaz e sarcástica.

Não sei. Acho que, desde cedo…

Nos jantares de família eras a que fazia os tios rirem?

Não foi desde sempre, foi um mecanismo posterior. De repente, comecei a achar piada a coisas e a gostar de fazer rir as outras pessoas. Nem sempre com sucesso, mas às vezes com sucesso. Houve uma altura em que eu fiquei meio vidrada com uns humoristas noruegueses, eu via o programa deles legendado em inglês no YouTube. E fiquei meio vidrada porque eles também faziam músicas com uma cena humorística, mas muito bem produzidas. Eles tinham produtores da Rihanna a fazerem músicas para eles falarem dos assuntos mais estúpidos. E eu fiquei tipo: “Eu gosto que isto seja tão bem produzido, isto é muito engraçado.” E, obviamente, nunca quis ir com uma perspectiva de comediante, porque não sou comediante e isso é uma coisa muito séria. E acho que é mais tranquilo mandar uma piadinha assim com uma cama musical do que, sei lá…

Só com um microfone e a luz em cima dos olhos?

Ya. Isso acho que seria mesmo assustador. Seria incapaz. Mas foi um bocadinho por aí. E na altura não era tão comum e eu achava que isso era uma cena interessante de explorar, mas ao mesmo tempo, quando comecei a escrever, também comecei a ouvir mais coisas, como o Conan Osiris, e fiquei tipo:”Espera lá. É possível abordar isto de uma maneira completamente diferente?”

Tu sentes que essa tua forma de escrever é uma coisa natural e automática ou aquelas letras que nós ouvimos no teu disco são muito buriladas, são muito trabalhadas, são muito pensadas? Elas saem-te à primeira ou exigem trabalho?

À primeira não saem. Já aconteceu, mas acho que nenhuma do disco foi assim. Eu passo imenso tempo a escrever e a corrigir, a ver se a rima está bem e a ver se há alguma palavra ou ideia mais interessante. Mas não é um trabalho muito… Eu consigo estar quatro horas de volta disso sem me cansar. Ou seja, é trabalhado, mas é um gesto natural ao mesmo tempo.

E qual é o teu método? Depois testas aquilo? Lês ou mostras a alguém?

Não, não. É um processo é super solitário. Vou, sem dúvida, ao rimas.com.br, e às vezes é por encontrar uma palavra engraçada que começo a ter uma ideia qualquer. Por isso, não sou nenhum dicionário ambulante, faço a minha pesquisa. Mas é um pouco isso. E eu gosto que seja solitário, esse processo em si. O processo de criar a melodia, criar os acordes e escrever, eu gosto que seja solitário. O resto, aprecio ter um bocadinho de ajuda.

Quando começamos a espremer aquilo que escrevemos e quando percebemos que aquela parte mais humorística é apenas um ponto de vista e o que lá está dentro são coisas muito sérias… Tu abordas questões super complexas, sobretudo ao nível das relações humanas. Como é que tu olhas para a tua poesia? Tu estás em casa, vês uma notícia no telejornal e sentes que há um determinado assunto que merece ser reflectido ao ponto de inspirar uma canção? Como é que isso funciona?

Acho que a minha inspiração vem de muitas situações. O “Romance Feudal”, por exemplo, foi porque eu estava a ler O Segundo Sexo da Simone de Beauvoir e ela estava a falar sobre o patriarcado na época feudal. E eu pensei: “Hum, e se não fosse o patriarcado?” O “Electrocardiodrama” surgiu porque eu estava a fazer esse exame.

Coisas simples, portanto.

Sim, acho que são coisas simples, que me fazem pensar eme vão dando algum entusiasmo no dia a dia. Não é uma coisa tipo: “Eu acho que isto é um assunto nobre.” Até porque eu não acho que escreva sobre assuntos particularmente nobres. Alguns, se calhar, são mais importantes que outros, mas nunca abordo uma canção com aquela sensação de “é importante falar disto.” É só alguma coisa que me entusiasma e sobre a qual eu quero falar e inventar umas rimas.

Os momentos da escrita e da produção acontecem em separado? Ou seja, vais para o estúdio já com um caderno cheio de rimas escritas ou vais escrevendo, gravando e testando? Como é que funciona?

Eu acho que me sai melhor quando as duas coisas estão a ser feitas mais ou menos ao mesmo tempo ou com muito pouca distância temporal. Às vezes também faço a música primeiro e depois estou ali a martelar para ver se cabem as sílabas no beat que eu fiz.

E onde é que trabalhas?

Na cama, no meu quarto. Pego no computador e começo a fazer.

Não há um momento em que vais a estúdio?

Eu demorei muito a ir a estúdio, mas sim, fui. Eu tentei fazer muita coisa no cantinho do quarto e aquilo já não estava a funcionar.

Já não chegava?

Já não chegava, exactamente. E nós fomos a estúdio gravar há uns três anos, embora não tudo. O álbum também é super eletrónico e há partes das gravações que nem usámos. Depois desse processo andei ali super bloqueada durante muito tempo, ainda não tinha uma direçcão estética para o álbum. E pronto, depois lembrei-me de falar com o Luís Montenegro, pensei que ele poderia ser uma pessoa capaz de me ajudar. E desde então ele ajudou-me imenso a terminar estas coisas que eu não estava a conseguir finalizar.

Quem é que escutamos no disco além de ti?

São muitas pessoas, vou tentar não me esquecer de ninguém. O disco tem a participação do Francisco Santos, o Tiago Martins, a LANA GASPARØTTI. Nos sopros temos o Bernardo Tinoco e o Edison Otero, o João Capinha nas flautas. Mas não entram em todas as músicas, só em algumas. O Luís Montenegro também tocou baixo em algumas canções e percussão em outras. O Ricardo Martins também fez uma mini participação com sintetizadores modelares e a Leonor Arnaut fez back vocals.

Toda essa gente foi ao estúdio ou foste entregando os materiais e cada um gravava ao seu ritmo?

A maior parte foi em estúdio. Acho que só o Edison é que me enviou as gravações feitas em casa. Mas foi em vários estúdios. Nós gravámos no estúdio do Chico [Francisco Santos], também gravámos no estúdio do Pedro Ferreira.

Há uma questão que me intriga a mim, que não sou artista. Como é que um pintor decide que esta é a última pincelada e que o quadro está pronto para ser posto na galeria, no museu ou na parede? No teu caso, quando é que sentiste que o disco estava fechado?

Não foi nada esotérico, foi só porque havia um prazo [risos].

É uma razão tão boa como outra qualquer.

Eu precisei de definir esse prazo para mim porque eu não seria capaz de tomar essa decisão se estivesse a fazer tudo nos meus timings. As coisas nunca estão a 100% como eu quero.

Isso fica para o segundo álbum.

Exactamente, acho que sim. Acho que é mais saudável pensar dessa forma. Por isso, eu precisei mesmo de me impor um prazo para também sentir que consigo seguir em frente. As músicas já são antigas, também já gostava de explorar outras coisas e acho que é importante sair cá para fora.

Olha, tu surpreendeste-me um bocadinho no take de voz que me enviaste para o programa Notas Azuis com a tua enumeração de referências. Fala-me lá sobre qual é o mapa referencial deste disco.

Eu acho que vem das coisas que eu estava a ouvir na altura. Ouvia um bocadinho de tudo. Achava que trap era divertido, achava que MPB era divertido. Eu meio que queria fazer… Não era uma paródia a esses géneros, nada disso, mas achava piada tentar fazer uma música de um determinado género com alguma identidade minha. Estava com esse entusiasmo, de uma pessoa que não sabe produzir e que achava essas coisas divertidas. 

Uma das coisas que eu acho mais curiosas no teu disco é que me faz lembrar um bocadinho aquele exercício dos livros de Onde Está o Wally?. Tu tens um monte de pequenas citações ao longo do disco — coisas do House ou da “Bitch Don’t Kill My Vibe” do Kendrick. Enfim, há uma série de pequenos jogos que tu vais fazendo ali que são muito, muito engraçados e que, no fundo, te situam num determinado tempo, não é? Foi uma coisa natural ou planeada?

Acho que são só coisas que eu fui achando piada na altura. Depois, à medida que o tempo foi passando, fui começando a ficar com um bocadinho de receio de: “Isto se calhar é o tipo de coisa que pode ficar datada com muita facilidade.”

Olhando para o panorama geral da música portuguesa neste momento, onde é que tu arrumas o teu disco? Nós estamos num momento em que ouvimos falar da Margarida Campelo, da Raquel Martins, da LANA GASPARØTTI, e de ti também, obviamente. Há uma série de mulheres que estão a apresentar finalmente um novo ângulo para a canção pop portuguesa, à falta de melhor termo. Tu sentes isso? Que há uma nova força criativa feminina a empurrar a música portuguesa para a frente?

Sem dúvida. Eu lembro-me de estar no Bons Sons e estar lá com a Sara Badalo, com a emmy Curl, com a LANA… E eu digo: “Pá, realmente, se calhar está aqui a acontecer alguma coisa que é fixe.” Foi um sentimento qualquer desse género. É fixe ver cada vez mais mulheres aí e com perspectivas muito, muito frescas. Isso é super inspirador.

Uma das coisas que eu sinto que estas mulheres estão a fazer — e por isso é que eu achei curiosa a tua enumeração de referências, porque não te ouvi mencionar isso, mas de alguma maneira escuto isso na tua música — é um certo descomplexificar da nossa memória, que de repente valoriza as Ágatas da vida. Ao ouvir o teu disco, penso na Gabriela Schaaf e na Lara Lee. São nomes que te dizem alguma coisa?

Não foram uma referência para mim. Aliás, porque estas canções já são bastante antigas, eu nessa altura até ouvia muita música que não era feita por mulheres. E isso fez-me pensar: “Eu sou mulher, mas eu posso fazer isto também.” As minhas referências, se calhar, eram tipo a Little Simz. Mas não tive muita inspiração directa de mulheres.

E nunca tiveste curiosidade de pesquisar quem é que antes de ti andou a fazer coisas parecidas?

Vou tendo. Volta e meia encontro aí umas coisas.

Agora vêm aí os concerto, não é? Fala-me sobre isso.

Vamos ter o primeiro concerto no B.Leza, dia 19 de Novembro, com vários convidados. Vai ser um concerto especial, diria eu. Ou seja, à partida não estou a pensar repetir. E vamos também tocar no RCA, dia 28, no Porto.

O que é que o palco representa para ti?

Pergunta difícil. Eu acho que é isso acho que a partilha com as pessoas é super importante e isso também faz com que, se calhar, uma canção que já é super antiga e que nos aborrece tocar, de repente, se as pessoas estiverem a vibrar com aquilo, tenha outro significado e pode ser uma experiência super boa. Mas eu diria que não há nada tão prazeroso como o momento de ter a ideia e de começar a escrever e a fazer os acordes. Acho que isso é mais prazeroso para mim.

Do que o palco?

Sim. Diria que sim.

Para ti, que estudaste jazz na ESML, onde é que encontras o jazz neste projecto?

Acho que é nas harmonias, nos acordes… Eu nunca mais consegui tocar um acorde só com três notas, o que é um problema [risos].

Eu diria que é uma vantagem, não é um problema [risos]. Porque esse é precisamente um dos trunfos do teu disco, essa riqueza e imaginação. Não são coisas simplistas.

Eu tento caprichar um bocadinho mais aí. Tem essa questão das harmonias, depois aquilo também está cheio de solos, mas que nem foi muito intencional. Aconteceu porque eu usei as músicas numa tese de mestrado que eu fiz na Dinamarca e, no concerto final, o meu professor disse-me: “Olha, tens de ter solos, porque nós temos de avaliar a tua técnica. Tens de fazer alguma coisa que mostre isso.” Depois as músicas ficaram todas com solos, mas nem sequer era uma direcção estética que eu tinha definido.

E desses teus estudos de jazz, quais foram os mestres que te ficaram na memória? Quem é que te ensinou grandes lições?

Eu tive aulas com o Filipe Melo durante alguns anos, ele é um óptimo professor, uma pessoa mesmo dedicada com quem eu sinto que aprendi muito. Também aprendi muito com João Paulo Esteves da Silva.

Estás a mencionar-me nomes de professores. A minha pergunta ia mais ao encontro daquelas que podem ter sido as tuas referências. Sei lá, um Herbie Hancock, um Wayne Shorter… Quem é que tu dizes que são os teus heróis?

Eu diria Bill Evans, Herbie Hancock Cox. No meu período formativo, eu era muito obcecada pelo Bernardo Sassetti, apesar de não ter nada a ver com o que eu faço agora.


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