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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Ana Viotti/Ao Sul do Mundo
Publicado a: 23/11/2022

Lembra-me um disco lindo.

Fausto na Aula Magna: o tempo pesa mas não dobra

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Ana Viotti/Ao Sul do Mundo
Publicado a: 23/11/2022

Enfim de volta à Aula Magna, em Lisboa, sabe Deus quantos anos depois. A primeira e última vez que entrara nesta majestosa (mais do que a memória havia guardado) sala tinha sido para subir ao palco que, hoje, dia 19 de Novembro, Fausto Bordalo Dias pisa — também para cantar cantigas. Na altura alocado ao coro num teatro de escola, voz de menino ainda cristalina, afinada em viagens de carro a acompanhar os discos do pai. Por Este Rio Acima era dos mais rodados. “A Guerra É A Guerra” era das preferidas. “Ó Ana, vem ver, ó Ana, vem ver, ó Ana vem ver o miúdo a cantar Fausto” — “Ó é tão lindo, ó é tão lindo”, respondia a mãe. 

A julgar pela fila que se estende Alameda da Cidade Universitária abaixo, não há-de ter sido, certamente, caso único nestes últimos quarenta anos, desde a edição da obra-prima de Fausto Bordalo Dias, pedra basilar de uma trilogia consagrada, celebrada este fim-de-semana em dois concertos a assinalar essas quatro décadas. É a primeira de duas noites de família, percepção reflectida no encontro de gerações que, num espírito pré-natalício, se reúnem momentos antes da hora marcada. “Ó avô, daqui a bocado estamos no carro outra vez!” ou “será que o primo Gonçalo vem? Era menino…” são provas, recolhidas ao acaso à entrada, desse ambiente de comunhão que se sente generalizado. 

A primeira noite antevia lotação esgotada, mas a sala tarda em encher. As conversas de fora continuam cá dentro, com novos (re)encontros a motivar deslocações entre lugares. Não há pressa no começo, porque ninguém quer, seguramente, que o fim chegue. Ultrapassada, então, a devida tolerância, é hora de embarcar. A tripulação entra a bordo, posiciona-se e espera pelo seu capitão. Está dado o sinal de partida: “O barco vai de saída…”

Ganham forma visões de O Velho e o Mar assim que Fausto, amparado, entra em cena a passo lento ao som da banda, para nos levar mais uma vez rio acima. Afinal, quarenta anos não são quarenta dias. E dá-se, assim, um primeiro choque de realidade em quem ao longo dos anos se fixou, alheio à passagem do tempo sobre os outros, na irreverente voz que narrou epopeias em 1982. Essa voz que, esta noite, se vê e ouve já sem a mesma força; apagada mas, ainda assim, inconformada até à última travessia. As fantásticas histórias engendradas à época com sujeito poético de vigor incomparável viram-se agora contra o próprio autor; a rede puxa e o marinheiro já não tem mãos a medir. 

Só que, aqui, o “velho” não sobe o rio sozinho. Tem onze músicos de excelência a apoiá-lo, reforçadamente equipados — duas baterias, dois teclados, duas cantoras e dois guitarristas são exemplos disso —, para levar este navio (com leme) a bom porto. Em especial, Roberto Afonso e Patrícia Relvas (que formam dupla em Lavoisier), que vão além dos seus papéis pré-estabelecidos para preencher os espaços em branco deixados por Fausto, visivelmente agastado pelo peso das suas próprias palavras. “Arrepia, arrepia e arrepia sim senhor”.

O vento também está a favor; o público empurra a embarcação com o poder de palmas ritmadas a cada canção e de um coro uníssono que levanta vagas de maior intensidade quando passa pelos refrões mais badalados. Jorge Fernando, com Francisco Pereira à guitarra, junta-se ainda de passagem em nome dos “Fonsecas” e dos “Madureiras”. O alinhamento, exclusivo ao intemporal Por Este Rio Acima, não tem nada que enganar, e, sejam quarenta, trinta, vinte, ou dez anos, passou tempo suficiente para todos terem na ponta da língua grande parte do disco. Cada paragem é devidamente celebrada, até porque o roteiro é certo e sabido. Já todos por lá passámos um sem número de vezes, uns enquanto pais, outros enquanto filhos, e alguns nas duas margens. Tanto rio cruzado em quarenta anos. Foi bonita a festa, pá.


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