[TEXTO] Miguel Alexandre
No início deste mês, o Rimas e Batidas publicou uma compilação de músicas que recorriam à autopreservação. Tentámos ser meticulosos, apelando um pouco às diferentes camadas políticas e sociais da actualidade e ao verdadeiro significado da palavra “autopreservação” para estas demografias. Escaparam-nos algumas músicas, é verdade. Se a lista fosse publicada à altura deste texto, “Dang”, de Fatima, seria sem dúvida uma peça indispensável: lenta, serena, mas ao ritmo certo, a faixa de abertura do novo álbum da artista resume-o afincadamente e prepara o ouvinte para a viagem atordoante que se avista. “Reevaluate all that’s been happening/ Love was meant for you to find”, canta, no final do primeiro refrão, de si para si. And Yet It’s All Love é um trabalho holístico feito para se ouvir de uma só rajada. Não há interlúdios, músicas a ocupar espaço, nem colaborações desnecessárias: há um lugar seguro onde Fatima pinta o seu coração partido segundo os diversos momentos e sítios que o deixaram assim. Ao seu lado, estão as influências de sempre: r&b, neo-soul, funk e jazz – mas desta vez organizadas de forma a fazer sobressair ainda mais a voz, a intimidade das palavra e, acima de tudo, a elegância da cantora.
O primeiro disco, Yellow Memories, de 2014, cimentou Fatima como uma voz emergente na indústria musical devido à sua abordagem pouco ortodoxa da música soul moderna e sobretudo à personalidade contida na sua voz. Quatro anos depois, as mesmas peculiaridades vocais e sónicas mantêm-se firmes, mas agora de uma maneira mais concisa e adulta, com a cantora a calibrar as diferentes temperaturas e os diferentes momentos do álbum.
Pode-se encarar And Yet It’s All Love como um ciclo emocionalmente fatídico: começa-se pela fase “lua-de-mel” das relações, caminhando-se lentamente para as primeiras complicações e inseguranças. No fim, tanto a artista como o seu parceiro amoroso estão condenados a terminar o namoro – ambos sabiam; a eventualidade do processo tornou-o perene. Este é o acepipe da longa jornada que Fatima tomou com o intuito de terminar no seu bem-estar mental — começando com “Westside”, a segunda faixa. Aqui, há uma aptidão para a fanfarronada, uma atitude intimidante que quase parece retirada de Kali Uchis ou até mesmo Lana Del Rey: “I’m getting high on the Westside/ Got my baby in my arm, feelin’ so tight”. O som é mais encorpado: guitarras eléctricas estão numa luta cerrada com os baixos, e a juntar-se no ringue surge uma percussão lustrosa. Fatima adquire uma postura mais desafiante e destemida, pouco registada em trabalhos passados, que se prolonga nos temas seguintes: “I See Faces in Everything” e “Somebody Else”.
A produção é espadaúda, mas a subtileza presente nas canções não se perde na sua totalidade, com a sua voz a preencher silêncios, numa toada intimista e reflexiva. Existe um dinamismo rítmico que engloba também o seu lado mais conhecido: o de cantautora, que eleva acima de tudo a sinceridade e a fidelidade das suas letras, algo que se adivinha precisamente em temas como “Caught In a Lie” ou “Waltz”; mas é “Movie”, possivelmente, o momento mais convincente de todo o disco — algo entre Jazmine Sullivan, Alicia Keys e Marsha Ambrosius.
Estas canções adunam-se devido ao conforto ambíguo que Fatima tem em relação à música jazz: em vez de simples acordes agudos ou graves que se referem a emoções de uma só composição, as estranhas e excessivas melodias frequentemente sugerem um tenso contrapeso de sentimentos conflituosos. Sendo assim, “Attention Span of a Cookie” é sensual, atrevida, e ao mesmo tempo contém um lado melancólico e desgostoso. Quando um compositor dá voz a uma tensão tão densa e complexa – não apenas em múltiplas notas musicais, mas também nos semitons emocionais que as acompanham – é quando começamos a compreender melhor os mecanismos das nossas relações com os outros e o quão confuso a natureza humana intrinsecamente é.
E realmente a maior parte destas temáticas baseia-se em batidas baixas e sólidas, em atmosferas expansivas de um pós-hip-pop, sempre acompanhada num balanço rítmico que embala. Por vezes, parece que regressamos a Blank Project de Neneh Cherry, ou a Velvet Rope de Janet Jackson: é como se a cantora olhasse para trás e para a frente ao mesmo tempo, reflectindo no que já foi feito e como pode torná-lo novamente interessante e misterioso, mas fazendo-o com música que impõe serenidade e uma grande reflexão. Em And Yet It’s All Love, tudo aparenta estar no sítio, menos o coração de Fatima, este desfaz-se em todo o lado, num esforço que começa com fragilidade, mas que termina em empoderamento e protecção.