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Texto: ReB Team
Fotografia: Lima
Publicado a: 16/12/2021

Que Nossa Senhora do Osso nos proteja.

Faixa-a-faixa: RAFEIRO de Stray explicado pelo próprio e por Raez

Texto: ReB Team
Fotografia: Lima
Publicado a: 16/12/2021

O RAFEIRO acaba de se revelar a todos. Editado pela Monster Jinx e produzido na íntegra por Raez, o novo álbum de Stray aproxima-se mais de Tom Waits, Aquilino Ribeiro e Miguel Torga do que do universo hip hop, tomando uma direcção diferente do que fez para trás em O Diabo (2011) e Coraçãozinho de Satã (2013). Porém, não se ache que Pedro Tavares tenha fugido das rimas e batidas: simplesmente decidiu dar-lhe mais um caminho possível.

Para o ReB, o artista portuense e o seu companheiro de produção tomaram a gentileza de explicar como chegámos a este particular objecto da música portuguesa feita em 2021.



[“Paga-me em Ouro”]

Stray:

“Em 2016, de uma assentada só, criei quatro demos de músicas completamente diferentes de tudo o que tinha feito até então. A ‘Paga-me em Ouro’ fazia parte desse leque. Durante muito tempo acreditei que não conseguiria dar forma efectiva a estes temas, sobretudo porque não tinha encontrado ainda um produtor que ‘percebesse’ o que eu estava a tentar fazer — isto, claro, até em 2020 ter mandado estas demos ao Raez. A partir daí, deu-se, a duas mãos, um processo criativo tão fluído que apenas o posso descrever como mágico. 

Esta música abre o disco como um prefácio e como uma profecia. Quem temos perante nós é o ‘homem-cão’ (a personagem central do RAFEIRO) que, tão cansado de contar a sua história quanto de viver na sua condição, exige que a sua aparição seja paga a peso de ouro. 

A partir da próxima faixa, entraremos na narrativa propriamente dita do disco, onde esta personagem nos narra as suas aventuras e desventuras humano-caninas. Assume-se, portanto, que o preço foi pago.”

Raez:

“A Paga-me em Ouro nasceu de uma ideia desenvolvida anteriormente pelo Stray. Ele enviou-me uma demo (voz e batida) que tinha e eu comecei a desenvolver. Tive a ideia de ir para um cenário épico que desse ênfase àquele refrão poderoso, pois sabia que no momento em que entrasse teria de ter impacto. Encontrei o sample certo e choppei de forma a criar a melodia que melhor se adaptava à voz. Este foi o segundo instrumental a ficar pronto.”

[“Mordo a Cauda”]

Stray: 

“Aqui ouvimos a ‘história de origem’ do Rafeiro, contada em tons de rock n’ roll de canil que já devia dormir mas que ainda está em festa. Ao fim de muitos e muitos ‘dias de cão’, aprendemos a não deixar que ninguém nos morda a cauda — a não ser, claro, nós mesmos. 

Aqui começamos a perceber que o ‘homem-cão’ nasceu, efectivamente, cão e que, daí para a frente, se tem vindo a humanizar (possivelmente contra a sua vontade). 

Esta também faz parte do leque original das quatro demos.” 

Raez:

“Esta faixa nasceu de uma demo que o Stray fez sobre um trecho de guitarra, como se a alma do Elvis tivesse abençoado aquela performance. O desafio para mim seria criar um instrumental que não perdesse a energia da demo e que, ao mesmo tempo, fugisse dos cânones do rock’n’roll tradicional, tornando-se num rock’n’roll sem regra, descontrolado, como se um demónio se apoderasse do corpo do Rafeiro.”

[“Rafeiro”]

Stray:

“Esta é a minha música favorita — não só deste disco mas de toda a minha discografia. 

Quis criar um hino aos desarranjados, aos maltrapilhos, aos excomungados. A personagem do Rafeiro representa o campeão dos desajustados, que aqui tomam a forma de cães vadios. ‘Podia jurar que nunca viste um cão descalço’ é uma provocação: estamos tão desligados da simplicidade e da autenticidade que, eventualmente, até um ‘cão descalço’ pode vir a parecer algo inaudito.

Eu e o Raez cruzámo-nos numa fase em que as nossas preocupações pessoais e universais, filosóficas e políticas, se sintonizaram muito (e assim continuam). Há uma mensagem de decrescimento, de viver melhor ao ter menos, velada nesta música — algo a que ambos almejamos e que acreditamos ser uma das causas maiores da simbiose criativa a que chegámos neste disco.”

Raez:

“Este instrumental foi uma sugestão minha, fui eu a dar o pontapé de saída para este tema. Terminei a primeira demo e enviei-lhe. Inconscientemente ou não, expressei logo que este era um dos meus instrumentais preferidos, o que podia não ter sido boa ideia. Como ele ainda não tinha escrito, poderia estar a colocar-lhe alguma pressão. Não fazia ideia como é que ele se iria entregar a este tema, mas, quando me enviou a primeira demo gravada, ouvi a primeira linha e superou logo qualquer expectativa. Não poderia ter sido melhor.”

[“Anedotas do Coveiro”]

Stray:

“Esta é outra das quatro demos originais. Esta nova personagem é-nos descrita através do olhar do Rafeiro que, nesta fase do disco, se debruça cada vez mais sobre a estranheza dos humanos — condição que já consegue reconhecer mas que ainda lhe parece uma doideira pegada.

Raez:

“Quando o Stray me enviou a acapella da demo original, achei-a bastante especial. Não eram versos nada convencionais e, para me habituar, deixei o loop a rodar um bom tempo de forma a entrar numa espécie de hipnose e incorporá-los na minha cabeça até se tornarem o mais familiares possível. Procurei acapellas de cânticos e encontrei um em que as palavras se prolongavam o suficiente para samplar apenas as suas terminações. Mudei o pitch, comecei a experimentar combinações de chops e cheguei a uma base que me parecia ter o feeling certo. Deixei a faixa a repousar alguns dias e, quando peguei novamente na música, fui acrescentando novos elementos e gradualmente retirando o protagonismo ao sample inicial.”

[“Flores”]

Stray:

“Os afectos humanos são osso duro de roer, percebe o nosso Rafeirolas ao senti-lo na pele.”

Raez:

“Este instrumental surgiu de uma ideia que o Stray teve. Ele falou-me que procurava uma faixa com um certo ritmo, e tinha as ideias bem claras, queria gravar o que estava a imaginar. Nesse momento, eu estava em casa mas tinha de sair em breve. Num instante, esbocei uma base simples que lhe permitisse registar a sua ideia sem que a inspiração lhe escapasse. Nesse primeiro esboço, tinha usado um teclado diferente, mais mellow, mas depois quis-lhe dar um toque western, como se o personagem estivesse perdido no deserto, e troquei o teclado para um Wurlitzer com efeito tremolo. Embora o Stray não se tenha sentido logo confortável com esta alteração, eu senti que era diferente, que era um lugar novo. Insisti, e ele confiou na minha visão.”

[“Cachimónia”]

Stray:

“Esta é outra das minhas músicas favoritas do disco. Aqui, o Rafeiro entrega-se a fundo à estranheza da condição humana que o devora cada vez mais, com pensamentos  particularmente rubros por estarem regados a vinho — ignorando ele, claro está, que esta meditação é o que há de mais normal e natural no bom humano. O processo de criação desta faixa foi delicioso, uma vez que procurei conscientemente criar uma cantilena digna de ser cantada quando as garrafas já vão para lá de meio.” 

Raez:

“Precisávamos de uma balada para cães bêbedos. Comecei por construir a melodia e por explorar uma progressão de acordes que trouxesse a emoção certa. Depois do Stray gravar a primeira demo, comecei a adicionar os restantes elementos de forma progressiva e interagindo com os seus versos.”

[“Caçador”]

Stray:

“Perniciosamente, tal como o castigado vira castigador, o caçado vira caçador. Depois de ‘abrir as portas ao canil’, o Rafeiro decide procurar a sua vingança — uma acção estapafúrdia e sem hipóteses de sucesso que, no entanto, é vivida de coração. Daí a ginga do instrumental e o tom de celebração do tema. 

Decididamente, a linha ‘eu sou o caçador e estes são os meu meninos’ é a passagem que mais gozo me dá de interpretar.” 

Raez:

“Antes de chegar aos instrumentais que compõem este disco, andei a produzir uma série de ideias através das quais procurava o som que tanto eu como o Stray imaginávamos. 

Até que um dia, ele envia-me umas demos antigas, que consistiam simplesmente num registo de uma ideia vocal e de uma batida, algo bem cru. Quando ouvi as demos ficou tudo mais claro para mim. Pedi-lhe que me enviasse a batida separada da voz e a partir daí o trabalhou começou a fluir.

‘Caçador’ foi o primeiro instrumental a ficar no disco, o momento decisivo em que ambos percebemos que estávamos no caminho certo.”

[“Lambujice”]

Stray:

“O Rafeiro apercebe-se dos dados viciados que permeiam a sociedade humana e, apesar de sentir esse tição no lombo, tenta convencer o resto dos desprestigiados da vida, o figurado canil, a revoltar-se e a criar um tumulto capaz de mudar o estado das coisas.”

Raez:

“Inspirei-me na lenda do misterioso Robert Johnson e no documentário Devil at the Crossroads,  que retrata o mito de este ter feito um pacto com o diabo de forma a obter o sucesso. Transpus essa narrativa para um contexto em que seria o cão a fazer uma travessia árdua até ao topo da colina, onde aí chegado, faria um pacto com o diabo para se tornar humano e passar a vivenciar os prazeres e os dissabores da sua nova condição.

A atmosfera que criei no instrumental pretende traduzir uma marcha penosa no meio de uma intempérie.”

[“Rachar Lenha”]

Stray:

“Sentindo-se cansado das tragédias humanas, às quais já não pode ser alheio, o Rafeiro isola-se, mascarando-se de lenhador que vive para lá das fronteiras emocionais — se é para ser homem, então que o seja nos seus próprios termos (por muito esquivados que estes sejam). 

O toque final de energia funk deste tema foi dada pela única participação vocal (humana) no disco, numa rara aparição da misteriosa Gata Corista.” 

Raez:

“O Stray pediu um funk e eu procurei o funk. Para os versos samplei pequenos chops de saxofone. Para o refrão construí uma melodia a partir de samples de um músico a ensinar a tocar harmónica.”

[“Aguardente”]

Stray:

“No final da história, o plano de viver à margem das emoções humanas desmorona-se. 

À primeira aguardente de medronho, o Rafeiro desfaz-se e deixa correr tudo o que tem vindo a conter. Ao seu último uivo, reconhece a sua humanidade… esgravatando o que há muito deixara enterrado.”  

Raez:

“Para terminar o disco, surge a Aguardente. Fiz um piano e enviei ao Stray que aprovou de seguida. A partir daí acrescentei todos os elementos necessários para manter a música expressiva e, ao mesmo tempo, despida, com o espaço para a voz preencher a alma da música. Foi gravada num dia de chuva, one take e sim: havia aguardente.”


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