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Texto: ReB Team
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 05/05/2023

Malandro não conta, malandro canta.

Faixa-a-faixa: Contos de Amor de um Bom Malandro de Ary Rafeiro explicado pelo próprio

Texto: ReB Team
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 05/05/2023

Mal Ary Rafeiro nos começa a mostrar o trailer do álbum-filme Contos de Amor de um Bom Malandro, reacende-se todo o imaginário pintado pelo vívido Cidade de Deus (2002). A deixa final “malandro não pára, malandro dá um tempo” confirma o palpite evidente: o mestiço rapper luso-brasileiro — filho de pai brasileiro e mãe angolana, e sediado por cá há quase duas décadas — quis representar a multi-culturalidade que o define no seu álbum de estreia pela Sony Music Portugal.

Assumidamente inspirado e em homenagem directa à longa-metragem realizada por Fernando Meirelles e Kátia Lund, o MC carioca dividiu o seu longa-duração em três actos à imagem da sétima arte. Estruturado em três contos, sob as deixas dirigidas a Cabeleira no célebre filme-quase-documental, Ary faz-se valer enquanto protagonista de interlúdios vários para construir a narrativa que atravessa o seu disco, em que o “bom malandro” encontra o primeiro amor, vê o seu coração ser partido e volta a apaixonar-se ao longo de nove faixas e sete skits.

Ao lado de ZOO (alguém que trabalha de perto, por exemplo, com Achero, Chippie, Mike 11 ou Jaca) na produção, o artista canarinho instalado em Santo António dos Cavaleiros propôs-se a casar a ginga do samba com a cadência afro, o espírito do funk com o sangue latino, a energia veranil da música brasileira que lhe é inerente com a escola do rap português que o formou. Tudo para, da mistura, mostrar de que cruzamentos e raízes é feito, não só enquanto artista em afirmação, mas — no seu caso, particularmente notório — também enquanto potencial representante de uma Nova Lisboa ainda mais rica daquela que já se faz, finalmente, ver.


CONTO 1 — “Malandro não pára, dá um tempo”

[“Mais um Pouco”]

Todo o álbum tem guitarras — era uma premissa do álbum. E lutámos muito para não fugir a esse padrão, porque a gente começou logo a pensar no conceito. Todo o álbum não era só para ser uma narrativa histórica — as cores, a época, os estilos de música, a instrumentalização mais acústica, até a apresentação ao vivo. “Mais um Pouco” foi a primeira música que a gente fez. Não tinha a intenção de fazer um álbum. E “mais um pouco” é uma expressão que vem de uma rima muito livre, de não ser tão métrico. No meu propósito de primeira música é me libertar um pouco do paradigma do rap. Botei o desejo de fazer vozes, para complementar com a parada do soul como um ginga brasileira, que é uma parada que não é muito desenvolvida. É uma constante que eu queria; eu queria ter muitas participações — não feats. — durante o álbum, para dar outra textura.


[“Vistas”] feat. Murta

Este é um dos favoritos, principalmente pela mistura que a gente fez. É o que falei no teaser do filme: a gente adora originalidade — acima de tudo, o álbum preza muito por isso. A parada mais latina do beat com um afro acho que é muito Lisboa. O Murta faz uma parada meio hispânica, mas que às vezes parece meio de etnia cigana. Ele ficou aqui horas a fazer o refrão; é um artista que eu admiro muito. Eu já fiz muitas colaborações porque eu também sou isso. Eu sou cultura, eu sou Brasil — e o Brasil é isso. Isso vê-se com os rappers brasileiros: o L7NNON faz um funk, depois um pagode, depois um sertanejo, e ninguém vai apontar o dedo para ele porque a gente é cultura brasileira antes de ser cultura hip hop. Então, tudo o que vai assistir aqui é um misto de coisas. O outro som tinha muito poucas rimas, aqui já tem muitas duplas e triplas. A minha escola de rima é, principalmente, de Lisboa, mas com um sotaque brasileiro. E o “Vistas” é eu me poder explorar em rimas com um refrão que é catchy na mesma, que eu dei total liberdade ao Murta para ele fazer o que quisesse. E, para mim, é um instrumental que eu não me canso de escutar — acho que é dos instrumentais mais bonitos do álbum.


CONTO 2 — “Malandro não ama, sente desejo”

[“Patricinha”]

Eu fiz o álbum com essa intenção de lusofonia, de provar que o brasileiro tem um lugar em Lisboa que vai muito além do cara que tanto está no restaurante tocando Tom Jobim ou Zeca Pagodinho como vai ao MOME [discoteca na Av. 24 de Julho] escutar funk. Tem uma presença maior que isso, e essa fusão que existe entre os crioulos, que têm uma força maior neste momento nessa presença de nova forma de multi-cultura — lisboeta, principalmente —, eu fiz de propósito para ter skits com o Stevão para cruzar o crioulo com o brasileiro, por causa disso mesmo.

Esse instrumental misturou o funk com uma primeira parte hispânica, mais o arranjo do refrão — que foi graças ao Bruno [ZOO], que eu nem sabia fazer esse arranjo que vem de uma escola que ele pegou com o Mike 11 — de guitarra portuguesa, do fado. E pegando o final do refrão em crioulo, que mistura a atmosfera da história mais antiga de romance, de Romeu e Julieta — “patricinha” significa “betinha”, com o vagabundo nesse caso. E é propositadamente a primeira da viragem, por ser mais agressiva, porque eu estava acreditando tanto no meu primeiro amor que, quando vi que não dava, fiquei muito puto.


[“Tão Linda”] feat. Uzzy, Rony Fuego & Mr. Marley

A minha manifestação artística sou eu, é aquilo que eu mais preciso passar para o público. E o álbum é tão livre, tão leve de abertura para os artistas e para mim, que o Rony, pela primeira vez, rimou num dialecto do Congo — que ele estudou no Congo. Outra coisa engraçada é que, sem querer, cada pessoa abordou a música de uma vibe diferente. O álbum é tudo Verão — eu adoro o Verão, sou uma pessoa de Verão, o meu espírito é carioca —, e [esta música] tem uma parada que é como se fossem quatro amigos: o Uzzy está vendo a primeira ‘mina daquele jeito de “quero-te hoje, já”; eu ‘tou vendo que me estou apaixonando de novo; o Rony ‘tá revendo uma ‘mina que ele já esteve; e o Marley já está à Marley — que ele é todo posturadão —, já dando um couro suave.

No vídeo, eu botei a galera do freestyle na festa, que é uma parada que está subindo e que hoje em dia tem muitas batalhas de improviso que foi a galera brasileira que recomeçou aqui em Lisboa, principalmente. Então, eu quis dar uma homenagem, ao mesmo tempo que queria bater o pé no chão e dizer, “Eu vim daqui” — não é porque o cenário vai ser todo bonito, não é porque eu estou na Sony assinado, vamos botar o pé no chão já. É tornar a parada muito mais que música, por mais que a música seja amor, ou dançante, ou alegre, ou divertida, há muito mais cenários que podes colocar. E o álbum também é muito sobre isso — e o filme, também, nas entrelinhas.


[“Nega”]

O “Louca”, que agora virou “Nega”, é a música que as ‘minas mais gostam. A primeira frase acho que diz tudo sobre a música: “Ela é do tipo que não quer estar mais com alguém que não seja sincero para si”. E o que eu mais gosto pessoalmente é que eu botei melodias tipicamente brasileiras em cima de um beat afro — eu não fui desenhando consoante o que se faz no afro swing.


[“Antes do Sol se pôr”]

Eu gosto muito dessa música; foi a favorita do Dino D’Santiago, por exemplo. O Murta também disse, “Esse é o single”. Por um lado, eu senti que quase que a certo ponto dava para agradar a gregos e troianos. E acho que já dá para sentir um pouco o que é o álbum: é aquele álbum que dá para botar num convívio de amigos no Verão sem ninguém reclamar. E aqui tem participação da Pry Antunes, que é uma artista angolana.


CONTO 3 — “Malandro não fala, manda uma letra”

[“Tipo R&B dos 00’s”] feat. Josslyn

Essa é aquela parada que até virou GIF: “Queria que o meu amor fosse como um som R&B dos anos 2000”. Foi nesse sentido que a gente criou, e fizemos três versões dessa. Foi a única que a gente batalhou mais. E a Josslyn… eu nunca contei isso para ninguém, mas quando eu vi a Josslyn pela primeira vez a cantar, pensei: “Um dia eu vou fazer um som com ela”. E um dia fiz o convite e ela aceitou. Foi o feat. que fiquei mais nervoso: ela ficou o álbum inteiro aqui parada, foi a única que não falou. Acabou o álbum e falou: “Amei, quero já botar isso no churrasco com os meus amigos. Vamos fazer essa faixa?”


[“Eu não vou”]

Essa música a gente tocou pela primeira vez no Lisboa Criola, e eu senti que precisava de tocar para esse público. O meu show era sobre brasilitude — mostrar ao público que brasilitude não é só funk e abanar o rabo, e que o funk não é só sexualidade, tem uma cultura. E pela primeira vez eu botei ali porque senti que as pessoas iam entender, o público de 23 anos para cima, que está procurando sonhos. E quando eu toco essa música, dou um discurso sobre esperança e fé, e agora a ver essas imagens para montar o filme, a câmara vai virando e tu vês vários negros chorando. E eu quero muito que o lance do álbum não seja uma parada muito superficial, que tenha esse balanço certo.


[“Bom Malandro”]

O início do filme [Cidade de Deus], que tem uma música do Seu Jorge, sem querer é a influência do samba dessa música que faz isso. Eu tenho muitas referências daí e me orgulho muito disso. Para mim é cultura, mas é uma maneira de transportar isso para a música. E os skits era mesmo para levar as pessoas para esse ambiente. Eu queria transformar fora do padrão e que não fosse só música, mas também cinematográfico.

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