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Texto: ReB Team
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/04/2024

Agitação musical e espiritual.

Faixa-a-faixa: Casta Brava, de O Marta, explicado pelo próprio

Texto: ReB Team
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/04/2024

O folclore português ganhou um novo capítulo no final do mês passado, quando O Marta deu a conhecer o seu segundo álbum Casta Brava. Dos ritmos tradicionais ao drum & bass, Guilherme Marta mescla influências do passado e do presente para nos apresentar um disco de olhos colocados no futuro. E ao seu som moderno juntam-se as questões que inquietam o seu autor, que através da força da música ganham contornos quase épicos, como que injecções de ânimo para enfrentar o que o amanhã trará.

Casta Brava sucede a Ó Moça! É Folclore (2022) e já teve uma primeira ronda de apresentações ao vivo, que o fez passar pelos palcos do Musicbox (Lisboa), Maus Hábitos (Porto) e Carmo’81 (Viseu). Antes de partir para Aveiro, onde actua no GrETUA este sábado (6 de Abril), O Marta comentou cada uma das 8 faixas do seu mais recente LP, aproveitando ainda para deixar uma visão geral sobre a obra:

“Quando ouvi o álbum completo e fiquei a questionar sobre ele e sobre qual realmente deveria ser o seu nome veio-me á cabeça Casta Brava. Ser Casta Brava é ser difícil de engolir, como as palavras da mudança. É ser uma pessoa diferente, que provoca e coloca questões. É ser pensador e sonhador. É despertar quem se recusa a ver. É ser amargo porque é preciso ser, mas acima de tudo é ser bravo na luta por uma procura de liberdade.

Neste disco procurei encontrar uma energia brava, forte e diferente do comum, que deixasse questões. Muitas vezes me senti frustrado porque não as conseguia responder, mas quanto mais pensava nelas, mais tinha a certeza do caminho que o disco precisava de ter. Então rodei-me de todos os artistas e engenheiros de som que admirava para criar uma zona de conforto que me permitisse expressar sem quaisquer restrições, daí não apareceu só um disco, como a minha produtora XIBITA e estou muito contente com este percurso.”


[“Dia”]

Esta música começa como um despertador a anunciar o dia. Imaginem-se a ser acordados por uma grande orquestra de timbalões. O que mais me deu gozo neste single, foi levar-me a mim e aos músicos a fazer coisas que nunca tínhamos experimentado antes, como colocar 3 bateristas de estilos completamente diferentes a tocar música tradicional sincronizados e cheios de power. Pedir a uma flautista de música clássica para tocar com o som sujo e distorcido. Pedir à Francisca para gritar, rir e chorar no fim da musica enquanto faz um solo vocal, tentando ser melódica nessa euforia de forma a criar o caos que é a manhã. Todos nós já demos em loucos quando levamos com trânsito de manhã.


[“Rapaz”]

Este música caiu-me como um balde de água fria numa daquelas semanas que desejamos poder esquecer, onde a quantidade de questões parecia transcender as perguntas de uma vida inteira, ora pela aparência do meu vestido, ora pelo meu quarto desarrumado, ora pelo meu estado de querer ficar sossegado num canto, ora pelo meu sotaque beirão que surge em momentos onde me encontro mais stressado, ou mais exaltado, ora pela maquilhagem no rosto, ora pela crença ou descrença de uma entidade qualquer espacial, ora pela dificuldade em querer mudar. Dessas questões surgiu a canção “Rapaz”, uma canção que serviu como terapia, deixando-me cair nos braços do mundo de forma a poder ser abraçado ou rejeitado por ele, mas sempre com a esperança de um dia conseguir mudar, para ser “livre sem definição”.  Escrevi a letra num estado de revolta e fragilidade, chateado com um mundo que não se torna fácil de se pertencer e chateado comigo mesmo por não me querer deixar abrir para ele, viver nele e ser feliz. Nesta canção deixei-me soltar e mostrar-me mais do que alguma vez me mostrei, exibi nela a minha pele e a minha face, para que um dia se torne mais fácil de falar para o mundo, sem me esconder num quarto entulhado de roupas, e poder viajar numa barca, rumo à mudança, sem ninguém fazer questão.


[“Sinceramente”]

Esta música começou com uma ocarina. Inicialmente era só esse instrumento, a minha voz e guitarra portuguesa. Depois a produção foi acontecendo e ficou um punk rock que não quer bem ser punk rock. Gosto de achar que é ocarina punk, que é o punk do mundo das ocarinas. A letra desta música é na realidade uma nota que escrevi para mim um pouco revoltado na altura com o estado da cultura, talvez tenha sido isso que tenha levado a música a tornar-se mais agressiva.


[“Inferno”]

“Inferno” surge como uma nota pessoal e é uma crítica sobre a necessidade de existir sofrimento para a arte nascer, e os versos “eu sorri / com a faca no peito” falam sobre isso mesmo, o nosso tão português orgulho das dores pelas quais passamos e ultrapassamos. É para mim triste ter de pensar que preciso de sofrer para atingir realmente o que preciso de dizer — acho isso errado, quando não estou bem geralmente vou ao médico, não me meto a tocar guitarra. Nesta música aproveitei, juntamente com o produtor Tomé Silva, para fazer algo um pouco mais fora do que estava habituado a fazer, ou seja, ter uma fusão mais assumida com a música eletrónica underground, desde o drum & bass ao jungle, mas também queria ter ali um coro de vozes épicas, então acabou por ficar uma música tribalesca. Uma espécie de ritual. 


[“Snoopy”]

A melodia da “Snoopy” é como um abraço caloroso de todos os amigos que se entrelaçaram ao longo da minha vida. É uma espécie de lembrança, um eco do que significa viver fora das convenções, viver com paixão e alegria, sem o peso do julgamento. Viver livre, cercado por aqueles que amamos. Tentei transmitir esse calor através de uma sonoridade nostálgica. Quis que a música fosse uma viagem, que durasse o tempo que fosse preciso para contar uma história. Tive sempre uma referência visual para esta música. Lembro-me de imaginar estar num carro com amigos, numa estada sem fim, em direção a um pôr do sol, e quando finalmente chegávamos a algum lado, estávamos numa praia com um areal enorme e onde ao longe se via uma casa branca e vermelha, e quando oiço esta música sou sempre levado para esse momento. Quero que quem a oiça também se transporte para os bons momentos que tiveram com os amigos. O resto das músicas do álbum vive de questões, de procuras e inquietações, e a “Snoopy” é o oposto, é a ausência total disso, é o momento de se estar tranquilo, livre e feliz.


[“Vilão”]

Quis que esta música fosse a mais brincalhona de todas, tanto em termos composicionais, como os instrumentos que usei e até mesmo na letra, que é bastante irónica de início ao fim. É uma música com uma letra de confrontação, onde critico o estado da cultura, o estado do país e o pensamento derrotista do povo português, que não funciona se quisermos mudança. 


[“Homem Triste”]

Para esta música gravei um grupo fantástico de adufeiras e adufeiros, para conseguir ter uma massa sonora de adufes, contrastando uma voz calma e frágil do início. Muitos dos ritmos gravados nesta música foram com canetas e lápis a tocar em diferentes superfícies, e mesmo os pianos e as guitarras que se vão ouvindo são samples de instrumentos de brincar. Quis tirar algum peso à letra, que fala muito sobre um estado de negatividade constante, um rebaixamento pessoal. Decidi então criar um instrumental bastante mais brincalhão, como na faixa anterior, só que desta vez foi através do uso de brinquedos, lápis, canetas — tal como quando éramos miúdos e fazíamos música onde nos apetecesse e com o que tivéssemos à mão. 


[“Povo”]

Provavelmente a música mais desafiante do álbum. Foi a música que sofreu mais alterações. Inicialmente era uma música bastante indie pop português, com bateria, guitarra e baixo, bastante simples, mas foi-se moldando para se tornar a música que acabou por ficar no álbum. Lembro-me de retirar tudo e deixar apenas a voz, depois juntei-lhe gaitas de foles que levaram todo um processamento para se tornarem o sintetizador que ouvimos ao longo da música. Os coros polifónicos também têm grande importância ao longo da música e foram bastante desafiantes, porque as harmonias não estão feitas de forma fácil de se cantar, existem muitos intervalos perigosos, e a ligeira desafinação torna a música desconfortável e não era essa a minha intenção. Eu queria que a música tivesse um poder que só as vozes polifónicas têm: uma sonoridade mística, etérea, que transmitisse a mensagem de um povo em busca da liberdade. Porque é mesmo este o tema do álbum, a procura e busca por liberdade.


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