[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados
A frase entrou no léxico comum e identifica uma geração, uma postura, uma cultura: “Hip Hop Tuga”! O pedaço de calão tornado emblema que é a “palavra” “Tuga” não surge ali por acidente – é uma vincada marca de identidade, uma afirmação de um código genético que diferencia este Hip Hop daquele que se faz nos Estados Unidos, França ou Angola. E passados estes anos todos – a memória do Hip Hop em Portugal estende-se pelo menos até ao final dos anos 80… – é mesmo possível falar numa identidade Tuga para este Hip Hop.
A bandeira da língua – que recentemente até serviu de pretexto para uma polémica que opôs Sam The Kid aos Moonspell por causa do tema “Poetas de Karaoke” – não é o único alicerce dessa identidade definitivamente portuguesa que o Hip Hop que se faz por cá já pode reclamar. A língua é um meio, uma palete de cores específica com que os rappers pintam os seus quadros, não um fim em si, não a sentença final de uma qualquer obrigação poética. Até porque o Hip Hop Tuga fala português, mas também outras línguas – farrapos de inglês e até francês, por exemplo, além de importar pedaços de crioulo de forma sistemática e de inventar as suas próprias palavras (“cebem”, corrupção de “está-se bem”, aparece no discurso oral e escrito da actual geração Hip Hop com cada vez maior frequência).
No tal código genético – ou genérico… – do Hip Hop Tuga há algo mais que o faz nosso e de mais lado nenhum: há o fado, por exemplo. Desde pelo menos os Líderes da Nova Mensagem, representantes da geração original de 90 já desaparecidos, que o fado se vem infiltrando no nosso Hip Hop. Sam The Kid samplou a alma de Amália pela via de Dulce Pontes, re-esculpiu Carlos Paredes, confessou admiração por Carlos do Carmo e identificou Ary dos Santos como um dos seus “ni***s”. D-Mars, músico, produtor e rapper luso-croata, usou a guitarra portuguesa para injectar a palavra “Tuga” na sua visão do dancehall jamaicano. E, mais recentemente, ouvi o DJ Ovelha Negra e os Força Suprema, militantes da linha de Sintra com ascendência angolana mas sentir definitivamente Tuga, a citarem “Povo Que Lavas no Rio”… Os Força Suprema foram mesmo ao ponto de pegar nas palavras de Pedro Homem de Mello imortalizadas por Amália (mais uma vez…) para as entregar à voz de Daniel Nascimento, outro angolano. Miscigenação? Muito mais do que isso: busca de identidade. O Hip Hop Tuga quer ser daqui e de mais lado nenhum. É o primeiro género musical que singra em Portugal sem ser assombrado pelo fantasma da internacionalização: nos anos 90, sobretudo depois da bem sucedida experiência além fronteiras dos Madredeus, não havia entrevista a banda nova ou velha que não terminasse com uma inevitável questão – “e planos para a internacionalização, há?”. Haver até havia, mas por cada Madredeus, Moonspell e, em tempos mais recentes, Mariza, muitos mais Abrunhosas, Alas dos Namorados e The Gifts falhavam o alvo da carreira internacional. Ninguém interroga Sam The Kid, Valete ou Nigga Poison sobre os planos para a internacionalização. Mas todos estão a par dos seus planos de “nacionalização”.
Esta relação da geração Hip Hop com o fado não é no entanto estritamente musical e não se verifica apenas ao nível dos samples de guitarras ou vozes fadistas. É mais profunda do que isso e manifesta-se também numa certa melancolia que se adivinha em vários momentos da discografia de MCs tão diferentes quanto Boss AC, Sagas ou, uma vez mais, Sam The Kid. Escreve o rapper de Chelas que “Slides (Retratos da Cidade Branca)”, tema de “Pratica(mente)”, o seu álbum mais recente, “fala em tom poético de uma Lisboa de outros tempos”. O Hip Hop, pois claro, vive preso no presente e quase sempre retrata a realidade que rodeia os seus protagonistas, mas quando foge, quando viaja, vai quase sempre até ao tempo “dos pais”, até ao baú das memórias de uma certa ideia de infância. Em busca de inocência? Nem por isso. Acredito que é em busca da raiz da tal identidade que se constrói todos os dias e que a cada novo disco e rima e batida e concerto faz do Hip Hop Tuga uma peça cada vez mais incontornável do puzzle que é o Portugal cultural do século XXI.
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Texto originalmente publicado no Jornal de Letras em 2007.