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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 17/07/2025

Busca e inquietação musical colectiva.

Facada Records: “É a expressão de uma comunidade que tem existido à volta de música inclassificável”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 17/07/2025

João Almeida e Yaw Tembe, cabeças pensantes da Facada Records, e Norberto Lobo, membro da comunidade que se reúne sob esta “marca”, conversam com o Rimas e Batias a propósito da edição recente de novos trabalhos dos três projectos que integram — Chão Maior, Lucifécit e Peachfuzz. Entretanto, já depois desta entrevista, também Orogénese viu a luz do dia, fruto de um esforço a quatro mãos de Yaw Tembe e Joana Gama.

Snakes & Thunder de Chão Maior, Devoção de Lucifecit e Impeachment de Peachfuzz é um tríptico que resulta de inquietação criativa desses três músicos e de mais uns quantos espíritos alinhados com a mesma sede de procura. O estúdio de design Desisto assina as embalagens destes trabalhos, todos com dimensão física (disponíveis no Bandcamp da Facada), todos com música desafiante que parte de ideias e estímulos específicos e diferenciados, como nos explicam na entrevista que podem conferir mais abaixo.

Convém ainda sublinhar que Lucifécit — com Norberto Lobo a assumir baixo e composições, Yaw Tembe em trompete e Electronic Wind Instrument, João Almeida no trompete e electrónica e João Pereira na bateria e percussões — tem data já marcada para apresentação de Devoção no âmbito do Robalo Satélite: será a 27 de Julho, pelas 18 horas, na Tasca das Artes. Oportunidade de ouro para conferir ao vivo e sem filtros a que soa, afinal de contas, a inquietação e a busca colectivas.



A Facada lançou estes três projectos numa altura em que se discute muito a falta de atenção, tanto das pessoas como dos media. Não me deixa de parecer estratégia ou, pelo menos, declaração de princípio o facto destas edições acontecerem em simultâneo. Qual é a razão por trás dessa decisão?

[Yaw Tembe] Acho que há várias razões. Uma delas relacionada com o propósito da própria Facada, que é assumir-se como uma editora gerida por músicos e ser uma plataforma que acaba por ser a expressão de uma comunidade que tem existido à volta de música que é inclassificável, mesmo para nós. É-nos muito difícil colocar rótulos na nossa música. Estes três lançamentos acabam por ser uma concretização disso: três projectos muito distintos entre si, mas que acabam por agregar os mesmos actores em vários momentos. Há pessoas que se repetem ao longo desses três discos, mas a música é sempre bastante diferente. Foi também uma forma de dizer: “Há esta comunidade que está a fazer coisas diferentes. Somos os mesmos, mas as propostas apontam em diferentes direcções.” Era um pouco esse o statement — se é que havia algum statement [risos].

Falas nas diferenças sonoras entre todos estes projectos, mas e as gravações? Aconteceram todas num momento definido? Ou seja, vocês sabem à partida que: “Agora vamos trabalhar para Chão Maior” ou “agora vamos trabalhar para Lucifécit”? A vossa cabeça e modus operandi distinguem o que é que está a acontecer em cada momento? Há uma vida de banda que diferencia estes projectos, tendo em conta que praticamente todos vocês se cruzam neles?

[João Almeida] A meu ver, acho que Chão Maior, Lucifécit e Peachfuzz partiram de ideias de uma pessoa. Neste caso, Chão Maior foi o Yaw que concebeu; Lucifécit é à volta da música do Norberto; e Peachfuzz surgiu um pouco pela minha vontade. Pelo menos para mim, meio que me apercebi que é possível fazer muita música diferente com estas mesmas pessoas.

[Yaw Tembe] São projectos com algum tempo de existência, sendo Lucifécit o mais recente. Eles têm seguido esse modelo, de haver alguém que propõe o projecto, traz a música, e depois a coisa vai-se abrindo e contaminando quem participa nele. Mas partem todos de formas de pensar muito diferentes, diria eu.

Conseguem especificar algumas dessas diferenças? Sem falar em géneros musicais, o que é que distingue, na vossa cabeça, cada um desses projectos? Onde é que vocês traçam essas linhas divisórias?

[Norberto Lobo] Acho que o material, no caso desses três projectos, acaba por “ditar” a direcção musical de uma forma muito natural. Não me lembro de alguma vez termos discutido isso, mas acho que a própria música e a forma de a trabalhar são muito diferentes nesses três grupos. Ou seja, mesmo sendo os mesmos músicos, os resultados acabam por ser muito diferentes por causa da origem do material. No caso de Chão Maior, o material do Yaw leva-nos por um certo caminho e já temos uma linguagem de grupo. Peachfuzz, talvez por ser um grupo mais à volta da improvisação, tem outra abordagem. No caso de Lucifécit, falo por mim, acho que foi o caso de criar duas ou três malhas que soaram logo àquilo que eu tinha em mente. Tem a ver com o material e com a abertura dos músicos para o interpretarem de maneira diferente.

[João Almeida] Também trabalhamos de maneira diferente. Temos essa abertura para ver várias formas de trabalhar a música e não serem sempre iguais nos diferentes projectos.

Dois destes projectos, Lucifécit e Peachfuzz, foram registados no Boavista Studios, segundo apontam as notas dos lançamentos. Em Chão Maior, essa informação não nos é oferecida, portanto não sei se terá sido no mesmo local. Mas aquilo que nós escutamos nos três discos é o resultado do quê? Foram dias, horas de trabalho em estúdio? São sessões espalhadas ao longo de um período dilatado de tempo ou, ao contrário, ocorreram todas muito próximas umas das outras?

[João Almeida] No caso de Pachfuzz e Lucifécit, nós fizemos mesmo residências de quatro ou cinco dias, em que trabalhámos o material diariamente, sempre a gravar, a registar. Depois, a selecção é feita após muitas horas de escuta, basicamente. Foram muitas horas dedicadas a encontrar o que faz ou não sentido, o que é bom ou não.

[Yaw Tembe] Isso também espelha as diferentes formas que temos de trabalhar os diferentes projectos. Por exemplo, em Chão Maior, este é o segundo disco e desta vez tivemos a possibilidade de rodar os temas que constam neste alinhamento ao vivo. Então já havia uma outra relação com esses temas quando fomos para estúdio, por isso precisámos de pouco tempo — uns dois dias, por aí — para o gravar nos estúdios da Valentim de Carvalho. E foi um trabalho muito mais focado. Já sabíamos o que queríamos fazer, já dominávamos o repertório. Com Lucifécit, sinto que aconteceu algo muito idêntico. Nós tocámos bastante os temas ao vivo. Aconteceu uma coisa engraçada: nós íamos com uns quantos temas para o estúdio, mas muita coisa surgiu na própria residência. Alguns temas que já estavam preparados acabaram por não entrar no disco para dar lugar a temas novos. Houve essa flexibilidade de criar ao longo das sessões. Em Peachfuzz, o João e o Norberto poderão explicar melhor, mas acho que a coisa foi muito mais espontânea, sendo que esse trabalho de banda acaba por se reger não em torno de temas, mas de estruturas.

[João Almeida] Sim. Peachfuzz é um bocado mais à volta de som, de qualidades de som, e de estrutura também. Mas acaba por ser uma coisa muito espontânea, que eu sinto que vem do facto de passarmos muito tempo a ouvir música e a tocar juntos. E o disco acaba por ser uma fracção da residência. São uns 45 minutos que resumem cinco dias de gravação. A selecção foi muito cuidadosa.

O que se escutam são partes completas dessa residência ou houve muita edição naquele que é o resultado final que nós escutamos? Há pedaços de um tema gravado num dia colados a outro tema gravado noutro dia, por exemplo? Ou são coisas muito lineares?

[João Almeida] Por norma, são coisas bastante lineares. Nós fazemos bastante selecção, mas não tanto edição. Isto com Peachfuzz, pelo menos.

[Norberto Lobo] É isso. Varia de projecto para projecto. Em Peachfuzz é tudo muito straight, é o que é. Em Lucifécit, talvez haja um momento ou outro de retirar uma intro de uma malha e pôr noutra malha — mas muito pouco. No caso de Chão Maior, fizemos alguns overdubs, mas coisas assim, muito subtis, que foram acrescentadas tardiamente.

[Yaw Tembe] É o tentarmos aproveitar um take ao máximo, depois fazemos uns overdubs e umas edições de electrónica também. Mas o que está gravado costuma ser quase o objecto final.

Fazia-vos esta pergunta porque, famosamente, o Teo Macero, na fase dos anos 70 do Miles Davis, pegava em horas e horas de gravação e depois, aquilo que nós ouvíamos em discos como o Bitches Brew ou outros da mesma era, acabava por ser muito um resultado de “corte e costura” de diferentes pedaços de diferentes jam sessions. A vossa abordagem é muito mais directa, digamos assim. O material tocado em estúdio corresponde, essencialmente, àquilo que depois escutamos em disco.

[João Almeida] É isso. Diria que apenas em casos pontuais é que fazemos um overdub, porque sentimos que podia acrescentar alguma coisa, mas no que toca a “corte e costura”, não foi algo muito feito nestes discos.

Portanto, há uma praxis comum nestes três projectos, nesse sentido de que é música que resulta do acto de tocar em conjunto.

[João Almeida] Diria que sim.

[Norberto Lobo] E, falando por mim, também acho que nós a tocar ao vivo soamos bastante próximos ao que se escuta nos discos. Quando assim não o é, trata-se apenas de uma questão de estética, porque os discos reflectem muito a forma como nós tocamos ao vivo.



Falem-me agora daquilo que é a Facada. Começa a ser algo comum vermos editoras a serem geridas por músicos, lembro-me agora da Phonogram Unit ou da Profound Whatever. Isso acaba por trazer algo de diferente ao produto final que é lançado. O que é que vocês diriam que são as caractrísticas fundamentais da Facada enquanto editora gerida por músicos? Há reuniões, deliberações em conjunto?

[Yaw Tembe] A Facada é gerida por mim e pelo João e temos a parceria com a Desisto para a parte gráfica da editora. Ela surge da necessidade de encontrarmos um meio de divulgar a nossa música e de termos, também, controle e mão sobre todas etapas dos processos. Digo que ela vem por necessidade porque… Acho que, idealmente, é bom ter os músicos apenas focados na música e existirem outras pessoas dedicadas a essa parte do lançamento, para fomentar uma indústria saudável. Mas como muitas vezes isso não acontece, surge a necessidade de tratarmos das coisas com as nossas próprias mãos. Não é necessariamente pelo prazer de criar uma editora. E, como disse há bocado, vem duma constatação de que há nomes que se repetem nas bandas que temos e faria todo o sentido juntarmo-nos e criar uma plataforma para distribuirmos essa música, criar uma organização em torno da comunidade. Apesar do projecto ser gerido por mim, pelo João e pela Desisto, temos todo o interesse em agregar todas as pessoas que nos têm acompanhado nos vários projectos. Assumimos tudo dentro deste pensamento comunitário. E vem também da necessidade de fecharmos estes projectos dentro de diferentes géneros específicos, assumindo isto como algo mais fluido, em que esse pensamento criativo é mais importante do que propriamente o tipo de música que é criado ou proposto.

O projecto Chão Maior, de acordo com a informação que vocês disponibilizam, contou com o apoio da da GDA. Os outros, tanto quanto percebo, nem por isso. Foi isso que determinou que este disco tivesse sido gravado na Valentim de Carvalho e os outros num outro estúdio? Essas condições financeiras também vos permitiram ser, digamos assim, um bocadinho mais ambiciosos?

[Yaw Tembe] O apoio da GDA é sempre muito precioso. É sempre uma salvação para muitos músicos [risos]. Acho que toda a gente está ciente disso. Obviamente que isso nos dá outras condições de gravação, de edição…

Os outros projectos não se candidataram? Chão Maior foi o único?

[João Almeida] Eu acho que não nos chegámos a candidatar com os outros projectos. Foi tudo feito por nós.

[Yaw Tembe] Isso tem-nos ajudado para testar vários formatos dentro da editora, o lançarmos coisas em cassete, vinil… Depende do orçamento que temos disponível, dos apoios… Mas não queremos estar completamente dependentes desses apoios, se bem que eles são, obviamente, bem-vindos.

Mencionavas aí os diferentes suportes em que a música tem sido disponibilizada. Continua a ser importante dar uma dimensão física a esta música?

[Norberto Lobo] Eu sou suspeito, porque eu adoro discos e sempre que falamos eu fico aqui a namorar a tua colecção [risos]. Pelo menos, eu gosto muito que os discos que fazemos tenham formato físico, nem que seja porque gosto de os ter e de pegar neles de vez em quando. Mas voltando um bocadinho atrás, eu também acho que os subsídios são bons e tal, mas eu acho que nós também vimos de uma escola que faz coisas demais e que tem demasiado entusiasmo para mostrar a música para nos estarmos a reger por essas lógicas dos apoios, porque, como tu sabes, nem sempre os temos. Acho que arranjámos uma forma muito eficaz de sermos independentes, apesar de, como o Yaw diz, toda a ajuda ser bem-vinda, claro. Mas nós temos um grande entusiasmo em mostrar a música que fazemos, então… O João cuida muitas vezes da parte do som, muitas vezes é ele que grava e que mistura. Ele tem estado dedicado a isso e está a ficar um engenheiro de som muito bom. Portanto, nós arranjamos maneira de fazer as coisas em equipa. Fazemos as coisas por nós próprios, se necessário. Até porque há timings para gravar os discos e, às vezes, dá-se o caso de se ir gravar uma coisa que já “morreu” — ou somos nós que estamos “noutra”. Há uma certa urgência em fazer as coisas.

[João Almeida] Para mim, as edições físicas são essenciais. Se nós pensarmos nestes projectos a longo prazo, é mais fácil conseguirmos retorno destes trabalhos havendo discos à venda quando vamos tocar. Depois, também existe aquele lado romântico de ter o disco e ver o trabalho solidificado, digamos assim. Também há a cena de estarmos a tocar com outras bandas e existir aquela coisa da troca do disco. Para mim, essas coisas contam bastante.

Enquanto Facada num todo, mas mesmo nas diferentes bandas pelas quais se desdobram, sentem fazer parte de um mosaico maior? Sentem existir uma cena na qual se sentem integrados, ou vêem a vossa existência como sendo um bocadinho paralela e distante do que se está a passar no resto da música portuguesa?

[Yaw Tembe] Essa é difícil [risos].

[Norberto Lobo] Eu acho que, como já disse o Yaw e bem, há um sentido muito forte de comunidade. Eu não quero envergonhar ninguém, mas acho que temos um grupo muito forte, que colabora muito, mas nós próprios estamos inseridos num grupo muito alargado, que acolhe e dispersa. Portanto, diria que somos uma comunidade dentro de uma comunidade ainda maior. Não sinto que haja… Sinto que as comunidade fazem pontes e, musicalmente, isso é muito notório.

O que é que vão projectando para o futuro mais ou menos imediato da Facada? Há outros projectos em marcha, concertos a serem preparados?

[Yaw Tembe] Acho que podemos já revelar os próximos dois lançamentos, que virão em breve. Um deles será de um duo que junta o Norberto Lobo e o João Lobo, de seu nome Calças de Fato de Treino. O disco chamar-se-á Parkour Lunar. Teremos um outro duo, que é comigo e a Joana Guerra, cujo disco se chama Orogénese.


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