Depois de um disco homónimo de estreia, de um II e de um III, eis que os Evols chegam a The Ephemeral. Um quarto álbum para quem a guitarra eléctrica — e todo o universo de cabos entrelaçados à sua volta, de amplificadores e pedais de efeitos de diferentes personalidades e feitios — tem sido sempre a principal força motriz, mesmo que dando origem a resultados sonoros distintos.
Desta vez, o grupo baseado no Grande Porto explora caminhos, escadas e alçapões sónicos diferentes, porventura mais ornamentados, ao mesmo tempo que convocaram novos ingredientes para cima de uma mesa que já de si estava composta — o saxofone de Rodrigo Amado e as vozes de Calcutá e Sara Macedo.
Os Evols — formados por Vítor Santos (voz e guitarra), Carlos Lobo (guitarra), Francelino Gomes (guitarra), André Simão Reis (bateria), Sérgio Bastos (sintetizadores) e agora Pedro “Jimmy” Feio (baixo e voz), que veio substituir Rafael Ferreira — apresentam The Ephemeral a 31 de Outubro no Understage, no Rivoli, no Porto; e a 5 de Dezembro na Casa Capitão, em Lisboa.
Enquanto não chegam aos palcos, Vítor Santos aborda nesta entrevista ao Rimas e Batidas o processo de construção do álbum, entre novos e velhos elementos, mas sempre com uma procura estimulante por sons e abordagens frescas.
Qual foi o ponto de partida para este quarto álbum, tendo em conta que os Evols já têm um currículo preenchido que tem navegado por diferentes sonoridades? Sendo que também houve uma alteração na formação do grupo, com a entrada do Pedro “Jimmy” Feio.
A mudança na formação foi mais um problema operacional do que estético ou pessoal. Porque o Rafa, entretanto, começou a trabalhar na produção do Theatro Circo, e como trabalhava muito aos fins-de-semana e nos dias anteriores, começámos a perceber… Uma banda de seis elementos arranjar tempo para ensaios… Ainda por cima com o André Simão que é dos Sensible Soccers, o Sérgio que também tem os projectos dele… A agenda começou a ficar tão complexa que chegámos àquela conversa mesmo triste. Ficámos todos mesmo tristes por não conseguirmos arranjar hipótese de ele se manter. Literalmente não conseguíamos ensaiar, sobravam muito poucas datas, até porque ele tinha os Glockenwise sempre a tocar e a gravar, mais os ensaios e o trabalho… Chegou a um ponto em que não dava mais. Ficámos todos muito tristes, mas tinha que ser. Entretanto arranjámos o Pedro Feio, que já nos fazia som, que já era nosso amigo, já pertencia um bocado à malta e ainda por cima cantava. Era uma das coisas que gostávamos, de ter alguém para fazer backing vocals porque nunca o tivemos. Isso deu logo outro impulso e ele integrou-se muito facilmente, até porque já conhecia as músicas, e foi um processo rápido. Mas, na composição deste disco, o Rafa ainda estava presente e compôs um monte de coisas. Só nesta fase final, quando começámos a preparar os concertos, é que chegámos a esta conclusão.
Certo, então a presença do Pedro Feio só se vai reflectir num próximo disco, ao nível da criação. E então volto à pergunta: qual foi a abordagem inicial para este disco? Aparecem no estúdio com ideias mais ou menos pré-concebidas, que depois vão trocando entre vocês, ou é sobretudo um processo de experimentação?
É um misto dos dois. Lançámos o III em cima da pandemia e depois fomos trabalhando num próximo. O nosso processo de trabalho é um bocado: temos umas ideias muito básicas, depois pomo-nos todos a trabalhar e as coisas vão-se transformando, muito devagar, no meio dos concertos ou no final dos ensaios. É um processo longo e que não é fixo. Às vezes fica pronto antes de começarmos a gravar, noutras vezes começamos a gravar e depois é que vemos: é melhor fazer uma alteração aqui ou ali. Estas músicas foram aparecendo, foram evoluindo, e algumas ideias que eu achava que não iriam dar em nada foram transformadas em temas de que toda a gente gosta, e outras foram deixadas para trás. Foi assim também nos outros álbuns: começamos com ideias muito básicas e, depois, com o input de toda a gente, as músicas vão fazendo o seu caminho. Neste álbum conseguimos uma nova abordagem aos temas e à sonoridade, que era o que queríamos especificamente mudar, com a introdução do Rodrigo Amado nalguns temas e das vozes femininas, para não ser sempre eu a cantar e a fazer os backing vocals.
E como é que foi escolher essas vozes femininas, da Calcutá e da Sara Macedo, e como é que começaram a trabalhar com o Rodrigo Amado?
Já no III havia umas ideias para introduzir o saxofone, só que não foram a tempo. Na altura acho que o nome do Rodrigo Amado já tinha vindo à baila, porque o Carlos conhece-o muito bem. Então agora foi só o confirmar dessa ideia. Precisávamos de introduzir elementos que mudassem um bocado os temas e, sei lá, a introdução do saxofone, numa banda que sempre foi de guitarras, por si só já é disruptiva. E ele aceitou. Supostamente era só um tema, mas ele quis tocar em quatro, e nós só dissemos “eh pá, ficamos muito contentes”.
Ou seja, enviaram-lhe as canções que tinham e ele é que acabou por sugerir entrar em quatro.
Exactamente, nós só mandamos os temas e foi “oh pá, escolhe um e faz o que quiseres”. E ele escolheu o quatro. Foi mesmo altamente. No caso das vozes, há uns anos fizemos um concerto em Lisboa em que também tocavam os Mighty Sands, onde a Teresa [Calcutá] cantava, e aquele concerto ficou-me sempre, “há aqui uma banda muito fixe com uma miúda que canta”. Houve ali uma ligação qualquer, depois comecei a ouvi-los e nunca mais perdi ligação com o que ela andava a fazer. Tinha duas coisas interessantes: canta em inglês, o que para nós era importante, ser alguém que estivesse habituado; e era uma voz de que gostávamos e foi consensual entre todos. A Sara Macedo já é uma conhecida nossa aqui do Porto, foi mais numa perspectiva de conseguirmos gravar em mais temas e coisas mais específicas… Por vezes foram coisas mais técnicas, precisarmos de uma voz de fundo aqui e ali, e ficámos super satisfeitos com o trabalho.
E a introdução destas pessoas, destes músicos, que no fundo é como se fossem novos instrumentos para a banda — tanto o saxofone como estas vozes diferentes — é também uma forma de estimular e de trazer outro tipo de elementos criativos para dentro de uma banda que já tem, obviamente, uma identidade e uma história, mas que pode pegar noutros ingredientes, que não estão dentro da banda, para construir coisas diferentes?
Acho que isso é uma das partes mais interessantes. Às vezes pode ser uma voz, uma pessoa nova, com ideias novas, e uma forma de cantar diferente… Se durante algum tempo andamos um bocado fechados na nossa própria forma, se fico fechado numas métricas e numa forma de cantar muito hermética, quando aparece alguém de fora e canta aquilo de uma forma completamente diferente… Eu não estava a ver essa melodia, essa forma de cantar, e isso faz com que tenha de me reinventar outra vez. E às vezes até tiro essas ideias para outras coisas que vou fazer no futuro. Quem diz isso diz um instrumento novo, um pedal de efeitos… Andamos sempre em pesquisa, a tentar romper com a nossa zona de conforto, estamos sempre a tentar deslocar-nos um bocado para chegarmos a uma sonoridade nova, até porque fazermos sempre o mesmo estilo também não combina bem com a nossa forma de ouvir música. Porque estamos sempre à procura do disco daquela banda nova, que tem o som mais fresco naquele momento… Acho que toda a gente na banda tem esse bichinho de procurar o que está aí de mais interessante agora. Ou também pode ser pesquisar discos antigos, coisas que ficaram perdidas no tempo e agora se redescobrem. E essa procura constante de música nova leva-nos depois, ao compor e ao gravar os discos, a um puxar dos nossos limites.
E tirando estes elementos em concreto que são novos neste álbum e que já abordámos, como é que encaras o disco em termos dessa novidade sonora que trouxeram?
Houve ali coisas polémicas. Formas de cantar a que eu não estava habitado, porque em casa gravo muitas coisas que são só ideias, para depois introduzir uma letra, mas digo que “isto não pode ficar assim gravado”. E eles: “Não, não, assim é que está bem”. Então às vezes andamos ali a puxar por zonas desconfortáveis para alguns dos elementos, mas que acabam por ser: “Ok, isto é um bocado novo para nós”. E isso acontece muito com a voz. Mas andamos sempre à procura de sons diferentes. Somos um bocado fanáticos de cenas de guitarras, amplificadores e pedais de efeitos. Então há sempre um elemento novo a acrescentar nas gravações e isso faz com que as músicas nunca tenham um som muito parecido em comparação com os álbuns anteriores. E mesmo entre elas, às vezes, muda radicalmente porque, como gostamos de experimentar sons novos… Até podem parecer que não pertencem ao mesmo objecto. Mas não me chateia, porque é a nossa forma de gravar discos. Não gostamos de ter aquele disco que parece toda a mesma música do início ao fim, tudo com a mesma forma de gravar, o mesmo tipo de voz, o mesmo tipo de som de guitarras, porque os concertos também não são assim. Não faria sentido ser de outra forma.
Isso também demonstra, da vossa perspectiva, que as possibilidades da guitarra eléctrica são infinitas.
Sim, hoje em dia. E eu próprio posso dizer que às vezes a minha guitarra não soa a uma guitarra ao vivo. Aquilo mistura-se ali na facção dos synths. Hoje o Carlos tem um som mais clássico, mas estamos sempre… Se a guitarra tiver que soar a um synth, ou se tiver que soar a uma cítara, está-se bem. O que interessa é que, no final, o mix de tudo soe bem. E essa é a maior dificuldade: pôr seis pessoas em palco e tentar conjugar todos os sons para que aquilo soe bem, que haja um equilíbrio. Porque já houve momentos em que tínhamos uma profundeza das guitarras muito agressiva e depois não conseguíamos criar um equilíbrio. Com os teclados, com as vozes, agora acho que já conseguimos criar um equilíbrio.
E ainda é mais difícil, suponho, fazer esse exercício de equilíbrio no palco.
Pois, sim. Em disco é fácil, há muitas ferramentas, mas para o palco é mesmo necessária muita disciplina de ensaios e temos mesmo que saber, porque não estamos sozinhos, e baixar e equalizar volumes, não tocar em determinadas partes para criar aquelas dinâmicas certas. Tem sido uma batalha. Aliás, sempre foi uma batalha dos Evols, porque é muita gente, são muitos amplificadores, mas acho que agora conseguimos chegar a esse ponto em que: OK, temos que controlar isto, porque não estamos a tocar só para nós. E é preciso mostrar o que realmente as músicas são e não estar ali numa posição de “vamos tocar isto muito alto e não quero saber se o som que sai para fora vai ser”… Isso não faz sentido nenhum. Mesmo os ensaios transformaram-se num momento de análise do que é que se pode melhorar aqui ou nesta parte.
E como é que vão fazer, agora, com o saxofone e as vozes femininas?
Nos concertos em que conseguirmos convidar a Teresa e a Sara, vamos trazê-las. Depois depende das agendas. Em princípio, para a Casa do Capitão, vai a Calcutá e o Rodrigo Amado. Por isso vai ser assim uma experiência, porque nunca ensaiámos todos juntos. Mas tecnicamente ele é muito bom e estamos a ensaiar as músicas muito parecidas com o disco. Pela primeira vez vamos ter oito elementos nalguns momentos, mas acho que vai correr bem e vai ser uma experiência incrível, ter saxofone em palco pela primeira vez, depois destes anos todos. E ter alguém como o Rodrigo Amado a tocar em palco connosco… É um orgulho.
Vocês têm nomeado os discos simplesmente como II ou III, mas agora escolheram The Ephemeral para título do quarto trabalho. Aconteceu por algum motivo específico?
Desde o início, nas gravações do álbum, que iria ser o IV. Não havia dúvidas nenhumas. E o Carlos chegou lá um dia e disse: “Eu acho que não devia ser”. E deu aquele nome. Que é, obviamente, uma crítica. Por mim teria ficado mesmo IV, mas acho que este nome fazia sentido, porque é uma crítica à forma como a música agora é lançada. Acho que não existe nenhuma banda agora que consiga ficar sem lançar um álbum durante cinco anos, que tenha feito um disco que seja mesmo importante para aquele momento e que fique assim. Acho que os momentos agora duram seis meses. Depois desvanecem porque apareceu outro álbum, ou outra música, ou outro artista, e as coisas são completamente efémeras, já não se consegue tratar os discos com o respeito que era suposto se dar — porque é um trabalho de, às vezes, anos. E por vezes fica esquecido num prazo de cinco ou seis meses. Por isso é que chamamos a este disco efémero, porque é o que acontece agora. Todos os discos que são lançados são conhecidos durante um período muito pequeno e depois são completamente esquecidos.
E sentes que o disco em si também acaba por dar um pouco esse perspectiva?
Em termos de letras, aquilo tem algumas coisas pessoais, obviamente, mas tem muitas críticas mais à forma de, sei lá, a nossa relação com o trabalho, uma crítica às instituições bancárias… E também críticas à forma como artistas, conhecidos mundialmente, no caso da “Euro Tragedy”… Enfim, pessoas que se levam demasiado a sério e, em vez de se restringirem a fazer música, que era aquilo em que eram realmente boas, tornam-se uma espécie de deus na terra em que “eu sei fazer tudo e sou um génio, e vou agora criar uma nova realidade”. É uma crítica a essas pessoas, artistas de que gostavas e que, de repente, parece que a música ficou para segundo plano e se criou uma persona completamente descabida e longe da realidade. E depois chega-se a um momento de auto-destruição e toda a vida de um artista que respeitávamos resume-se a uma sucessão de gossips, de acontecimentos tristes, e ele nunca mais consegue voltar ao início de carreira brilhante. É uma crítica a esta indústria da vangloriação.
E as letras normalmente surgem ao mesmo tempo que estão a ser criados os instrumentais? Ou é uma coisa que vai acontecendo e vais escrevendo?
Os instrumentais aparecem sempre primeiro, porque às vezes começa com uma batida ou com uma linha de guitarra. Depois as letras, que eu sou muito lento a escrever. Quando a música já está mais ou menos definida, tenho algumas notas vocais. Às vezes até uso letras antigas para criar melodias, e depois vou construindo com as métricas certas as letras. Mas essa é quase a última fase. Às vezes começamos a gravar e alteramos frases, palavras, porque a frase não fica bem ou o que seja… E como estou a cantar em inglês, se não conseguir dizer bem a palavra elimino-a e tentamos substituir por outra frase. E só são fechadas já no processo final de gravação.
E são os próprios instrumentais que te remetem para um determinado tema? Ou, mesmo que subconscientemente, sentes que vais pensando em coisas que queres abordar?
Acho que não. Às vezes estou a ouvir a música e, eh pá, tenho que fazer uma letra e ponho o papel à frente e vai disto — aquilo começa a sair. E, quando começa a sair, peço ajuda ao público, que é o resto da banda, e tento arranjar os temas, ou uma frase para começar, ou qualquer coisa do género. E depois é que conseguimos chegar ali a um consenso na letra. Varia muito de música para música. Mas não consigo definir uma temática inteira para um disco. Não consigo criar assim uma coisa tão… É mais a música que é importante.