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Fotografia: Stephen Vanasco
Publicado a: 25/06/2021

Um mestre que é, também, aluno.

Evidence sobre Unlearning Vol. 1: “Isto não é mais do que um reflexo daquilo que se passa à minha volta”

Fotografia: Stephen Vanasco
Publicado a: 25/06/2021

Nunca será possível falar de um circuito mais alternativo dentro do hip hop feito nos Estados Unidos da América sem referir o nome dos Dilated Peoples. Foi por lá que a carreira de Evidence despontou, ao lado de Rakaa e DJ Babu, tendo o rapper e produtor, mais tarde, envergado também por uma carreira a solo carregada de referências ao tempo, que em 2007 teve The Weatherman LP como pontapé de saída.

Em Março de 2020, Michael Taylor Perretta dava sinais de estar a querer desaprender todos os vícios que foi acumulando com tantos anos de experiência ao serviço da industria musical com a apresentação de “Unlearning“, um single minimal que abria o caminho para um novo disco do veterano de Los Angeles, cada vez mais enturmado com os novos talentos que vão surgindo um pouco de todo o lado em solo americano.

Agora, Unlearning é o título de uma saga de LPs que hoje vê nascer o seu capítulo inaugural através da Rhymesayers Entertainment. Composto por 14 faixas, o sucessor de Weather or Not mostra-nos um mestre que se assume, também, um eterno aluno, já completamente enquadrado com a nova estética que tem conseguido manter a cena boom bap relevante nos dias que correm, graças a nomes como Navy Blue, Fly Anakin ou Conway The Machine, todos eles convidados em destaque nesta peça que até já tem sucessão à vista.

No passado dia 10 de Junho, um final de tarde em Portugal e uma manhã na Califórnia cruzaram-se através de uma chamada telefónica para ouvirmos Evidence falar sobre a sua nova obra e do universo criativo que a rodeia.



Estamos todos inseridos neste quadro muito estranho do COVID-19. Aqui em Portugal já estão a regressar, aos poucos, os espectáculos ao vivo. Como estão as coisas aí pela América?

Aqui os concertos também estão a acontecer mas só em salas muito pequenas. Creio que as coisas vão voltar à normalidade lá para Setembro.

Presumo que tu, até por ainda não teres este novo álbum editado, estejas afastado dos palcos há algum tempo. Sentes falta dos concertos?

Sinto, sim. Eu não toco ao vivo para aí há um ano e meio. Acho que não tinha bem a noção do quanto eu gosto disso até estar nesta situação. Também porque há coisas que fazem parte desse processo e das quais eu não gosto assim tanto — as viagens, as dores de cabeça que advêm da parte da promoção, etc. Mas o palco em si… Eu estou ali uma hora durante a qual tenho a possibilidade de me solta e deitar tudo cá para fora. Acho que é quando te retiram algumas coisas que tu começas a sentir o quanto elas te fazem falta.

Olha, eu já tive a oportunidade de estar a ouvir o teu novo disco, mas gostava de recuperar aqui uma citação do teu anterior, em que tu, na faixa “Jim Dean“, referes algo como “this is not your thing, this is ours”. É curioso que o Alchemist, um grande companheiro teu, tenha lançado um EP este ano intitulado This Thing Of Ours. Para nós, que estamos do outro lado do oceano, é legítimo concluir que estamos a assistir a uma espécie de renascer de um movimento muito específico dentro da cena hip hop? Eu costumo chamar-lhe de indie rap ou rap alternativo. Não sei se tens outra forma de o definir e que aches mais correcta.

Eu diria mais que é rap DIY. Isto porque há cenas neste momento que têm o potencial de se virem a tornar maiores do que isso. Creio que dar-lhes outros nomes é estar a limitá-las ou a colocar-lhes rótulos nas suas sonoridades. Há, de facto, uma nova onda ligada a esta ética do do it yourself. Tu tens música DIY, vídeos DIY, edições DIY… O Pro Tools começa a surgir nos estúdios caseiros por volta de 2005/2006 e as pessoas têm vindo a descodificá-lo desde então. E, claro, todos os outros softwares que também foram surgindo — tens o Fruity Loops, o Reason, o Ableton… Neste momento já todos tivemos a oportunidade de absorver todas essas merdas e de tirar proveito delas. Vivemos tempos muito interessantes. As pessoas têm realmente capacidades e meios para fazer as coisas acontecer. Imagina que tu tens uma câmara. Tu podes muito bem fazer vídeos e fotografia por ti mesmo. E há algo de muito bonito nisso.

Esta é então uma boa altura para se ser independente?

Ya. Há uns anos tu sabias que a galinha do vizinho ia sempre parecer mais gorda do que a tua. Quando eu não tinha um contrato discográfico, eu queria muito ter um. Depois, quando tive um contrato, comecei a alinhar em grandes espectáculos, em festivais com alinhamentos cheios de nomes que eu não conheço. Eu ia aos clubes mais pequenos ver o que os putos do underground andavam a fazer e eles tinham aquelas plateias nas palmas das mãos. “Foda-se, sinto mesmo falta disto agora”. Entendes o que quero dizer? Nós desejávamos sempre o oposto daquilo que tínhamos. A cena é que, neste momento e pela primeira vez, tu tens uma data de malta que já conseguiu provar que tu não precisas de andar a perseguir um sonho qualquer. Podes ser tu mesmo a construir esse sonho. E eu adoro isso, até porque foi assim que os Dilated Peoples começaram. Nós fazíamos as nossas próprias merdas, levávamo-las à Fat Beats… Não eram necessários intermediários. Muita gente está a fazer sucesso assim e esse modelo de negócio agora soa atractivo. Os putos agora se calhar já nem ambicionam alcançar um contrato discográfico — “Posso fazer as cenas desta maneira e ganhar um bom dinheiro com isso.”

Tu lembras-te de algum momento específico que te tenha feito perceber que estávamos perante esta nova revolução dentro da estética boom bap?

Talvez. Mas sabes que, quando fazes parte da cena, tu acabas por não te aperceber muito bem das coisas. Elas simplesmente acontecem no teu dia-a-dia. Diria que faz parte da evolução. Eu sempre estive sintonizado naquilo que estava a surgir, alguns desses projectos cheguei mesmo a integrá-los. Gosto de pensar nisso apenas como uma coisa muito bonita que eu vi crescer mesmo ao meu lado.

O título do teu novo álbum, Unlearning Vol. 1, está relacionado com essa tal evolução, certo?

Sem dúvida. Eu tinha feito uma faixa, a “Unlearning”… Gravei-a num dia, fiz o vídeo no dia a seguir e lancei-a um dia depois. Foi tipo, “wow, isto é divertido”. E nem foi preciso fazer promoção nem preparar o pessoal todo para o que vinha aí. Gostei dessa ideia e deixei rolar as coisas com essa mentalidade. A coisa não ficou a cozinhar em demasia dessa vez. Não me preocupei em ter uma segunda faixa de voz nem demasiados ad-libs. Não tenho de fazer a tarola soar assim tão alto. Cenas assim que acabam por funcionar na perfeição. Eu sou o instrumento principal.

E esse processo de desaprendizagem pode custar tanto ou mais do que estares a aprender algo pela primeira vez. A mim até me soa a um esforço redobrado, porque tu não só estás a esquecer velhos hábitos como estás ainda a processar informações novas. Deparaste-te com alguns obstáculos no caminho?

Sim, porque eu sei demasiado. Cresci a apreciar certos pormenores técnicos na música e eu sou um gajo que produz, mistura, masteriza… Se eu tivesse uma demo vocal, toda a emoção estaria lá, nessa gravação. E eu podia pegar nessa demo e levá-la para um grande estúdio para trabalhar nela, “corrigi-la”. Era o que eu faria antes. Desta vez caguei. Deixei a cena como estava. Dá-lhe um ar mais marado. Ou seja, acaba por ser uma gravação mais autêntica e que representa melhor aquilo que eu sou. Já não é apenas uma performance minha no estúdio. Mas isso também pode ser assustador às vezes. Porque também queremos usar alguma maquilhagem, metaforicamente [falando].

Tu quando lançaste a “Unlearning” já sabias que ias apresentar um álbum a seguir?

Eu já tinha algumas faixas. Essa não foi a primeira que eu fiz dentro deste registo. Tenho feito muita música nos últimos anos, na verdade. Foi uma questão de escolher quais é que ia querer para este álbum, que intitulei de Unlearning Vol. 1. Podes olhar para isto como uma primeira fornada de material que eu quero pôr na rua. E tem aquele efeito… Boom! Isto já não é o Weather Man, uma vez mais. Estou a tentar algo novo. E é divertido! Depois, a faixa chama-se “Unlearning”, o álbum chama-se Unlearning Vol. 1 e nem contém essa mesma faixa. É a minha música e eu faço o que bem me apetecer com ela [risos]. E pelo meio fiz mais coisas dentro desse registo. Certamente que vão ter a oportunidade de sair cá para fora no futuro. Seja num EP novo ou numa versão deluxe do álbum.

Presumo que até já tenhas em mente alguns esboços daquilo que serão os volumes que se seguem.

Certo. Posso dizer-te que estou empenhado em acelerar as cenas. Não quero continuar a fazer as pessoas esperarem mais três ou quatro anos. A minha ideia é ir soltando estes volumes.



Há uma particularidade neste álbum de que eu gosto muito. Tu deixaste de soar ao Evidence “antigo”, dos álbuns anteriores, para nos mostrares uma versão mais actual de ti mesmo, já mais alinhada com aquela narrativa sónica que malta como o Earl Swetshirt ou a turma da Griselda andam a fazer. E a julgar pelos nomes que surgem nos créditos deste disco, imagino que sejas um gajo que anda muito atento ao que surge de novo por aí.

Serei sempre um aluno. Há tanta coisa a aprender com quem aparece a seguir. É o que é. E considero-me um sortudo. Já produzi duas ou três faixas para o Westside Gunn, por exemplo. Uma delas até herdou o meu nome. Ele chamou-lhe “Evidence Joint” [risos]. Foi a primeira vez que alguém me fez uma coisa dessas na minha carreira. Senti-me honrado. Também trabalhei com o Boldy, no álbum que ele fez com o Alchemist. O Earl e o Navy Blue também andam sempre nas redondezas. Também tenho andado a produzir para o Fly Anakin e o Graymatter, da crew dele, já produziu para mim. Isto não é mais do que um reflexo daquilo que se passa à minha volta. E eu quero mostrar isso às pessoas.

Esses nomes que me estás a dar vêm de três ou quatro estados diferentes dentro do território dos EUA. Como é que mantêm essa “vossa” cena acesa? É uma consequência do mundo digital em que vivemos ou vocês também facilmente se metem num avião para estarem uns com os outros?

Muita gente está em Los Angeles. Independentemente de onde quer que essa pessoa venha, eventualmente há-de ir parar a L.A.. Creio não ter conhecido nenhuma dessas pessoas noutro lado que não em Los Angeles… Esquece. Até tenho uma história para te contar. Houve uma vez em que fui dar um concerto a Buffalo com os Atmosphere. O DJ Skizz, que é o meu DJ, andava a falar imenso com o Conway na altura. Ele ligou ao Conway e o mano foi-nos buscar, levou-nos a dar uma volta pela cidade, a conhecer alguns locais. Depois fomos ao estúdio, ele arranjou-nos erva… Uma hospitalidade do caraças. As pessoas são reais. Sei lá… Por vezes acontece tu conheceres um gajo pessoalmente e depois ficas, “ok, ele é simpático, mas há ali qualquer coisa…” Creio que isso possa também ser parta da razão pela qual eles chegaram onde chegaram.

O Unlearning Vol. 1 passa por várias nuances e quando o estava a ouvir parece quase como um daqueles LPs que se dividem em dois. Tens momentos em que és mais sagaz enquanto MC, outros em que é mais poético e intimista. De que forma descreverias a narrativa deste disco?

A minha vida tem sido bastante dura nos últimos anos. Eu tenho andado a lidar com isso e, claro, tenho os meus altos e baixos. Eu não quero que este álbum sirva para terem pena de mim. Eu estou apenas a ser honesto e a partilhar as merdas pelas quais passo. Esses sentimentos foram mais fáceis de passar para o papel desta vez, também porque já não lido com algumas dessas coisas diariamente. Essas faixas são, literalmente, eu a conversar contigo sem qualquer tipo de filtros. Mas eu também creio que elas demonstram força e perseverança. Volto a dizer: estas faixas não são para as pessoas terem pena de mim. Só que se eu não as partilho… Vou estar a ser um rapper que pinta um quadro diferente daquele em que vive realmente? Aí vou ter de ficar danado comigo mesmo, por estar a criar essa personagem cujo único objectivo é entreter as pessoas e fazê-las rir. E não há nada de mal com isso! Eu também gosto de ser esse gajo às vezes [risos]. Só que se eu for apenas isso, vai-se embora a componente inovadora da coisa, que me permite simplesmente ser e dizer aquilo que eu quero. Isso ia cortar-me a liberdade.

Há bocado acabaste por tocar em todas as colaborações que convocaste para este disco excepto uma, que curiosamente me chamou bastante à atenção. Falo da contribuição do Murkage Dave na “Won’t Give Up The Danger”. Também és seguidor da cena britânica?

Não te possa dizer que esteja a par de muita coisa, não.

Como é que o nome dele surge no meio do alinhamento?

Man, foi bué aleatório [risos]. Eu tinha a faixa, sem refrão. Era uma cena estranha, porque o beat mudava e estava meio fora do tom. Pensei em convidar um cantor para essa parte mas estava ali meio perdido. “O que posso eu fazer com isto?” Enviei-a para o Slug, dos Atmosphere, e ele mostrou-me uma faixa, que acho que era dos Smif-N-Wessun, e que tinha uma cena cantada. Ele perguntou “era isto que procuravas?” E eu, “serve”. Ele a seguir volta a ligar-me e diz “tenta uma voz britânica. É isso que a faixa me está a dizer. Ainda por cima descobri este gajo…” Ele enviou-me o link e eu gostei. Para mim, nem tinha nada a ver com o facto do sotaque dele ser britânico. Gostei da cena dele.

Entre este primeiro volume do Unlearning e aquele que virá a seguir: o que é que se segue entretanto?

O álbum vai estar disponível nas plataformas digitais no dia 25 e vamos ter também edições físicas — vai haver um duplo vinil com uma pen USB que vai trazer as versões instrumentais de cada tema. Vou ter muito merchandise. Posso dizer-te que vão sair mais vídeos. Tenho feito uma data deles. Diria que ainda solto mais uns quatro ou cinco. Também quero planear uma digressão mal as cenas voltem ao normal. E comecei também uma editora que se vai focar no meu lado de produtor, a Bigger Picture Recordings. Vão sair discos por lá com as cenas que tenho andado a produzir para outros artistas — cenas que eu fiz para o Planet Asia, para o Navy Blue, para o Fly Anakin, Brother Ali, Defari, Madchild, Domo Genesis… Isto é apenas para eu conseguir controlar também a narrativa. É uma coisa que eu aprendi com o Alchemist.


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