Amanhã, dia 23 de Julho, celebra-se o centenário do nascimento de Amália Rodrigues, a grande diva da música portuguesa. Entre várias iniciativas — uma delas é a edição de uma caixa que reúne gravações registadas no Olympia, em Paris, pela Valentim de Carvalho –, surge Eu, Amália, documentário que passará às 21 horas na RTP1.
A peça documental, que é assinada por Nuno Galopim e Miguel Pimenta, dupla que trabalhou em conjunto em Sem Fazer Planos do Que Virá Depois ou Vejam Bem, foi concebida em confinamento e partiu da vontade de se contar as histórias da cantora a partir dos seus próprios testemunhos, recorrendo-se aos arquivos de rádio e televisão da RTP.
Falámos com o jornalista e radialista sobre o que vamos poder ver e o processo que nos trouxe até aqui:
Qual o conceito principal de Eu, Amália?
A ideia principal tem a ver com a possível construção de uma narrativa contada na primeira pessoa (a voz de Amália) mas feita através do que ela mesma nos deixou. Ou seja, o documentário emerge como uma colagem das muitas entrevistas, reportagens e participações em programas que cruzam a história da RTP. O arquivo da RTP (de televisão e também de rádio) forneceu a matéria prima. Os samples… E do arquivo surgem assim as peças de uma história que, inevitavelmente, tem a ver com o modo como o autor olha para aquele mundo e dele selecciona fragmentos que depois arruma como um puzzle que dá origem a uma narrativa. Quer isto dizer que, perante aquele mesmo universo de memórias de imagens e de sons, outros autores encontrarão outras histórias ou modos alternativos de a contar. Não queríamos (eu e o Miguel Pimenta, com quem fiz já vários outros documentários) ultrapassar a barreira dos 50 minutos de televisão. A narrativa tinha de por isso desenhar um arco e resolver-se nesse tempo (o que é um exercício de contenção por um lado e, por outro, um desafio de ritmo)… E perante todas estas coordenadas assim nasceu este retrato que, mais do que uma biografia, é sobretudo um olhar sobre a personalidade de Amália, o modo como a vida a moldou e, depois, o jeito único como essa vida e a sua maneira de ser se expressaram através de uma obra absolutamente ímpar na música.
Como é que o doc foi produzido, em que condições e com que recursos?
Aqui há uns meses tinha manifestado ao Gonçalo Madaíl uma vontade em criar um retrato de Amália mas, ao invés do que temos vindo a fazer na série (também da RTP) Vejam Bem ou nos documentários que criámos sobre a canção “Amar Pelos Dois” de Luísa e Salvador Sobral, a Eurovisão em Lisboa em 2018 ou os 60 anos de carreira do Júlio Isidro (curiosamente fiz também estes três com o Miguel Pimenta), queria evitar aqui um trabalho centrado em novas entrevistas. Tinha vontade de encontrar as histórias na voz da própria Amália… O facto de toda a equipa da Inovação RTP (que produz o documentário) ter entrado em confinamento poucos dias depois de termos regressado da final do Festival da Canção (em Elvas), tornou esta opção como a preferencial para podermos trabalhar, cada um em sua casa, a partir de material preexistente e sem exigir, por isso, trabalhos de captação (o que em Março e Abril teria mesmo sido praticamente impossível). Na verdade, só em inícios de Maio tivemos a definitiva luz verde para avançar estando então criada uma plataforma de gestão de media que permitia aceder ao material do arquivo que íamos procurando (aí contando com a preciosa ajuda do António Faria, também da nossa equipa), ver e escutar esse material e, depois, editar imagens e sons… Passei umas seis semanas a ver e escutar os ficheiros que iam chegando (e foram muitos). Identificava temáticas, por vezes frases, indicando sempre timecodes dos momentos a eventualmente usar. O Miguel Pimenta ia lançando essas recolhas num ficheiro Excel (eu, como sou velha guarda, mantive sempre junto de mim um caderno em bom e velho papel com todas as anotações escritas, como sempre, a caneta Muji… velhas manias). Fiz uma primeira estrutura da narrativa quando vi que começava a ter material para desenvolver alguns blocos temáticos. E escrevi então um primeiro guião (que foi sendo modificado) procurando encontrar não apenas uma ordem para os fragmentos de programas de rádio e televisão dentro de cada um desses blocos temáticos, como tentando que cada um pudesse sugerir uma passagem natural para o tema seguinte. E assim por diante até se desenhar um arco que, creio, flui de fio a pavio. O Miguel viu também todo o arquivo. A construção final partiu assim da soma do guião e da edição com muitas sugestões trocadas entre os dois… Tudo em confinamento… Tudo em ligações de áudio e vídeo. A gestão de media, pelo Rui Barros, permitiu um bom fluxo de trabalho (nesse departamento nem imagino o trabalhão que ali está)… A nós juntaram-se depois o Paulo dos Passos que criou os elementos do grafismo e o Alexandre Lau que teve em mãos a filigrana detalhada dos muitos elementos de áudio em jogo… A Inês Santos produziu e o Gonçalo Madaíl coordenou a equipa… Cada um em sua casa…
O teu conhecimento dos arquivos da RTP o que te diz sobre material para futuros trabalhos? Continua a existir acervo para explorar?
Sempre gostei de arquivos e de neles poder encontrar histórias para contar… E tenho trabalhado muito com o arquivo RTP desde 2017. Sobretudo na série Vejam Bem na qual já dedicámos episódios a Simone de Oliveira, José Mário Branco, José Cid, Jorge Palma, Marco Paulo, Lena d’Água, Paulo de Carvalho, Pedro Abrunhosa, Carlos do Carmo, Fernando Tordo e António Manuel Ribeiro (estão todos disponíveis na plataforma RTP Play). Mal seja possível, retomaremos o fio a esta meada… Cada episódio da série deu-me a conhecer o acervo de imagens e por vezes também de sons de rádio, sobre os artistas em foco. Mas estas pesquisas também me fizeram descobrir tesouros da história da RTP como, por exemplo, o programa Discorama, inúmeros programas de música de várias épocas ou reportagens sobre o fabrico de discos… E tenho clara consciência de que ainda não vi praticamente nada do vasto mundo que ali está guardado… Amália foi a busca mais intensa que já fiz em trabalhos para televisão… Mas o que fica sempre claro em cada projecto que envolva o arquivo é a espantosa riqueza de memórias que ali estão. Cheias de histórias em potência para serem contadas em novas narrativas.
Sem levantar demasiado o véu, podes indicar um exemplo de conteúdo que tenhas descoberto e incluído no documentário que vá surpreender as pessoas?
Ao contrário das buscas que o Frederico Santiago tem vindo a fazer nos arquivos da Valentim de Carvalho, dos quais têm saído muitas incríveis gravações inéditas agora fixadas em disco (e quinta-feira sai uma caixa de discos com gravações registadas em Paris entre os anos 50 e 70), eu tinha a consciência de que dificilmente encontraria aqui tesouros esquecidos ou raridades absolutas… O arquivo está arrumado e catalogado e não foi em modo garimpeiro que mergulhámos neste desafio… De resto, Amália é uma figura muito visitada pela memória das imagens e algumas são até bem conhecidas. Talvez haja no corpo de fragmentos que usámos, algumas reportagens de programas de informação, entrevistas de rádio ou participações em talk shows menos vezes recordadas… E a clareza do discurso gera aqui e ali alguns momentos dignos de um bom livro de aforismos. Acho que para muitos poderá ser surpreendente a tomada de consciência da dimensão global da projecção de Amália (temos imagens em que a vemos a passar por vários cantos do mundo), assim como poderá ser mais alguns interessante o observar da rara versatilidade de géneros e geografias musicais pelos quais a sua obra passou. Creio que algumas tiradas de bom humor (e o riso de Amália era irresistível) poderão ajudar ainda a estabelecer laços de identificação que podem assim ir para lá da música… Gosto de ter sempre uns sorrisos em algumas das esquinas destas narrativas.