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Fotografia: Federico Ienna
Publicado a: 24/10/2019

A organicidade do MIDI

[Estreia] ZZY e o “jazz plástico” que encontrou fora da sua zona de conforto

Fotografia: Federico Ienna
Publicado a: 24/10/2019

José Veiga, o jovem e prolífico produtor do Barreiro, apresenta o seu novo EP, Plastic Jazz, no Rimas e Batidas. Ao longo de seis faixas, ZZY explora o jazz e incorpora-o na electrónica e ambiente que lhe reconhecemos de outros lançamentos anteriores.

À primeira vista, o projecto lembra-nos o que se faz nos Mazarin (embora menos quadrado) ou remete-nos, aqui e ali, para alguns sintetizadores do último disco de Roger Plexico — e ainda coloca-nos mais timbres e ambientes de Jon Hopkins na mistura. ZZY pode ser uma fusão de vários mundos e estilos, mas já tem uma impressão digital relativamente demarcada pelas harmonias em pianos e teclados aliadas a efeitos e texturas de desenho sonoro espacial. Num ambiente chillout – de quase easy listening, mas que é demasiado emotivo para sê-lo – percorremos uma linha, o “jazz plástico”, construída coerentemente como se de um novo género se tratasse. Num mundo em que colidem trompetes, baterias exasperantes/irrequietas e teclados de harmonias típicas do jazz com o mundo tímbrico do ambient e da música electrónica, ZZY mostra-se com uma sonoridade orgânica que nem parece ser trabalhada em MIDI. Com o ReB, José falou sobre a amálgama estilística na sua produção, a liberdade artística e o mutante Conan Osiris.

Além de produtor, és também músico – pianista, mais concretamente. Quanto do Plastic Jazz são instrumentos tocados por ti e quanto dele são samples?

Eu não me considero um pianista. Na verdade eu sou um pianista terrível, mas a produção musical, neste caso, oferece-me a liberdade necessária para criar e compor, e acho que esse é que é o meu ponto forte e é aí que eu me sinto bem, quando consigo expressar as minhas ideias e materializá-las em músicas. Respondendo à segunda questão: sim, todos os instrumentos de Plastic Jazz são tocados por mim através de programação MIDI. Eu usei um monte de livrarias/bancos de sons, várias layers de teclados e, claro, tento sempre adicionar o meu cunho através do sound design. Neste caso inspirei-me muito na bass music e isso é visível nos reeses e texturas mais “neuro” que podem ser encontrados ao longo das faixas. Eu acho que este trabalho incidiu mais sobre a programação MIDI, em que o digital claramente tenta reproduzir a função do acústico, de forma imperfeita, mas são essas imperfeições e idiossincrasias que ajudam a moldar o som de Plastic Jazz.

És relativamente multifacetado na tua produção, visto que tanto podes estar a procurar sonoridades mais em torno do jazz, como, neste caso, ir até ao ambient de Jon Hopkins ou Ólafur Arnalds e ainda à electrónica mais abrasiva de Qebrus ou Aphex Twin. Quão fácil é para ti compilar trabalhos, ideias e músicas que vais fazendo?

Eu acho que nunca pensei na criação e produção musical como algo estanque, que se confina a um determinado espectro sonoro. Eu próprio, enquanto produtor musical sou o resultado de diversas influências. Eu oiço música electrónica, jazz, hip hop, música concreta, música clássica, bossa nova e muitas outras coisas. Mas não é só a música que me influencia: as pessoas que vou conhecendo, os diferentes ambientes e espaços onde me insiro, tudo isso ajuda a moldar a minha identidade enquanto artista. Acho que são essas experiências e vivências que nos tornam peculiares. Portanto, para mim é impensável fazer música regendo-me por um só estilo se sou influenciado por uma variedade de coisas. Há dias que eu acordo e apetece-me fazer jazz plástico, noutros dias apetece-me fazer glitch, noise, drone music e há outros que não me apetece fazer [coisa nenhuma]. Acho que não me defino como um artista de um género só. O mundo é tão plural, existem tantas coisas bonitas e fantásticas que não vale a pena afunilar tudo num único desígnio, e o mesmo se aplica à música. A música, para mim, só faz sentido enquanto vertente exploratória, verdadeiramente livre, sem entraves previamente delineados. É engraçado teres mencionado esses quatro nomes, eles são de facto uma grande influência para a música que eu faço, mas há tantos outros que me influenciam, as minhas influências não começam e não acabam nesses quatro nomes.

Houve alguma razão para explorares este tipo de linguagem jazzística desta vez? Houve influências particulares ou deu-se mais pela escolha de samples e instrumentação das faixas?

Na verdade foi um desafio lançado por um amigo meu. Isto aconteceu há cerca de um ano, eu estava-lhe a mostrar algumas músicas minhas e de repente tocou a “Plastic Jazz” e a reacção dele foi algo do género (já não me lembro ao certo): “puto, tens de fazer um álbum dentro deste registo! Isto tem potencial”. E eu aceitei o desafio, aparentemente resultou. Foi mera coincidência, provavelmente teria explorado outro registo, algo mais ambient, cinemático, mas achei que seria interessante explorar algo fora da minha zona de conforto. Eu não sou um músico de jazz, nunca tive formação nesse sentido, nunca toquei obras de jazz sequer. Mas para mim esse foi o aspecto mais aliciante: conseguir algo que à partida não sou capaz de fazer. É essa a magia da produção musical, tu podes recriar coisas que ao vivo não consegues reproduzir ou consegues mas sem a mesma mestria. Daí eu dizer que sou um músico péssimo, mas acho que compenso na parte da produção em que consigo criar mundos distintos e navegar por diferentes estilos.

Esta junção de sons electrónicos a contrastar com a instrumentação típica do jazz ou da fusão vem do teu background mais electrónico? É o plástico do teu jazz?

Sem dúvida é uma tentativa de incrustar o meu lado electrónico – onde eu me sinto mais confortável – com o jazz, ou aquilo que eu sinto que é o jazz, numa vertente mais conceptual, indelével, como eu o imagino. E a definição de “plastic jazz”, como eu a idealizo, vai muito ao encontro dessa ideia: é música transformada e sintetizada de uma forma mais plástica, maleável, como se fosse uma espécie de plasticina que se contorce e que se vai ajustando a um som que apresenta características orgânicas, sem nunca o ser. Pode ser confuso, mas a ideia é criar essa ambiguidade, é uma tentativa de transformar um som que idealizamos como orgânico em algo plástico, mais electrónico, simplificando.

Já tens estado em contacto com algumas editoras independentes de electrónica, correcto? Por que razão escolheste lançar este projecto de forma independente?

Sim, tenho lançado a maior parte do meu material pela Abstrakt Reflections, que é uma editora de música electrónica experimental independente, que distribui música de maneira totalmente gratuita. Inclusive tenho algumas colaborações com outros artistas que fazem parte da editora, como o Pablo, por exemplo, que é o boss label. De certa forma, sinto que a Abstrakt é a minha casa, já lancei três discos por lá, nos últimos três anos lancei sempre coisas na Abstrakt. Mas desta vez decidi lançar este disco de forma totalmente independente, acho que senti que era a altura indicada para o fazer, de assumir o comando e de lançar as coisas por mim, sem depender de terceiros. Claro que há sempre pessoas envolvidas e eu não pretendo trabalhar de forma totalmente solitária. Apenas senti a necessidade de ser mais interventivo no processo pós-produção do álbum e achei que fazia sentido lançar o disco desta forma, porque também acho que é um trabalho muito pessoal, muito próprio.

Ainda tencionas explorar mais o EP visualmente ou mesmo em formato de performance ou é um projecto que para ti está terminado? Já estás a olhar para o próximo trabalho?

Posso avançar que não está excluída a hipótese de apresentá-lo ao vivo. Tenho o formato de apresentação mais ou menos delineado na minha cabeça, apenas faltam alguns ajustes, mas tenho muita vontade de apresentá-lo ao vivo. À parte disso, eu ando a trabalhar noutros projectos, noutros conceitos, estou sempre a fazer música e a criar coisas novas. Grande parte desse material vou disponibilizando publicamente na minha conta de SoundCloud. Não consigo parar de fazer música, é a minha paixão. Então sim, ando a trabalhar em muita coisa mesmo e há algumas colaborações pelo caminho.

Tens artistas com quem gostavas muito de trabalhar? Tens até algumas colaborações em vista?

Claro que sim, tantos. Um deles infelizmente já não está entre nós, que era o Thomas [Qebrus]. Foi provavelmente o artista que mais me influenciou como produtor no sentido de desafiar quaisquer limites sónicos e de ter um som verdadeiramente alienígena, irreproduzível, original – que para mim é algo praticamente impossível de conseguir nos dias de hoje – e, como tal, gostava muito de ter feito uma colaboração com ele. Outro artista que gostava de colaborar é o Hypercube que é outro boss que se inscreve nas ramificações mais ousadas da música electrónica experimental, glitch, IDM; eu já cheguei a remisturar um ou outro tema dele, mas ainda não colaborámos juntos propriamente, espero que surja a oportunidade [risos]. Há uns meses estive a ouvir no Hot Clube um concerto de uma banda chamada Entrevero Instrumental, que é uma mistura de jazz com música tradicional brasileira. O som deles é fantástico, verdadeiramente inusitado, e eu adorava misturar os meus experimentos sonoros com o som deles. E claro, também gostava de colaborar com artistas portugueses, desde malta do hip hop à electrónica e por aí fora. O estilo não interessa, na verdade. Se eu sentir que partilhamos o mesmo foco e que as ideias de parte a parte são aliciantes, para mim, de acordo com esses princípios, estão reunidas as condições para se iniciar uma collab.

Como vês o panorama da música electrónica actual em Portugal?

Acho que vivemos um momento fértil, com uma oferta musical bastante rica e diversificada. Tens malta da cena mais experimental, do glitch, do IDM, a fazer música muito interessante e não só… Há tanta riqueza na verdade, toda essa música verdadeiramente desafiante que emerge nos subúrbios que já não é kuduro, nem tarraxinha, nem afro, é uma simbiose entre tudo isso; eu acho esse som verdadeiramente interessante. É algo tipicamente genuíno, peculiar, irreproduzível num outro contexto. Tu podes fazê-lo, é certo, mas não vai soar da mesma forma. Se calhar o Conan Osíris conseguiu isso. Eu vejo-o um bocado dessa forma, como uma simbiose, uma mutação de diversas influências e é isso que torna o som dele verdadeiramente interessante, sem outro termo de comparação. E não só; há malta fantástica, no techno, no drum & bass e outras variantes da bass music. Acho que a música electrónica vive um bom momento e a oferta não se confina a um único segmento. Claro que existe ainda muita margem para evolução e penso que vamos continuar a evoluir, mas a meu ver estamos num bom caminho.

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