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Fotografia: Vera Palminha
Publicado a: 17/06/2025

Regresso à casa de partida para reequilibrar as baterias rumo a um novo LP.

[Estreia] Cachupa Psicadélica: “Quero voltar a essa sonoridade tão própria de Cabo Verde, menos electrificada, com menos efeitos”

Fotografia: Vera Palminha
Publicado a: 17/06/2025

“Qrê voltá” é a faixa-título que serve de avanço inaugural do próximo disco de Cachupa Psicadélica. O tema chega oficialmente às plataformas digitais amanhã, mas o seu videoclipe está hoje em estreia por cá, no Rimas e Batidas.

Dez anos após a estreia com Último Caboverdiano Triste e seis anos depois de Pomba Pardal, Luís Gomes — o rosto e coração da Cachupa Psicadélica — prepara o lançamento do seu terceiro LP, Qrê voltá. A primeira canção revelada do alinhamento não é apenas uma antecipação do álbum, mas uma afirmação emocional que se entranha — como saudade em estado líquido. “Qrê voltá” soa a uma oração moderna: uma súplica descomplicada por um reencontro com um lugar que é refúgio, onde a areia quente e cama estendida ao sol são luxos que a natureza oferece.

Mais aproximado de uma estética folk e do cancioneiro tradicional do seu país, Luís Gomes assume quase todos os instrumentos — da voz à percussão — neste primeiro avanço, contando apenas com a luminosa guitarra do timorense Kay Limak como único elemento exterior. O tema é íntimo, mas cinematográfico, sensação acentuada pela imagem poética da peça visual assinada por Raquel da Silva e pelo realizador Basil da Cunha, que complementa a fragilidade serena da música. Há em “Qrê voltá” um sopro de rock alternativo tropical, ecoando tanto ao Mindelo das noites estreladas ao som do violão, como à Lisboa das manhãs silenciosas e dos regressos difíceis.

Com o apoio da Fundação GDA, Qrê voltá ainda não tem uma data de lançamento definida, mas o plano passa por apenas revelar o alinhamento na sua totalidade após a mostragem de mais alguns singles, como nos revela o manda-chuva de Cachupa Psicadélica numa breve entrevista, em que também descortina um pouco a história por detrás deste seu próximo longa-duração.



O que andaste a fazer entre Pomba Pardal e este Qrê voltá? Queres fazer-me um resumo de quais foram os teus passos entre estes dois projectos?

Estive ali um bocado ligado ao pessoal da Acácia Maior, ali a fazer de vocalista com os gajos. Depois teve um meio termo, porque que já tinha começado a escrita do disco já há algum tempo. Só que, no ano passado, fui para Cabo Verde passar lá uma temporada, e aí deu-se… Nem sei se foi uma dúvida ou se foi um vazio, mas quis mudar um bocado a linha que eu tinha para o disco. Eu andava a escrever as músicas mais na guitarra eléctrica, que é o que eu tenho andado a usar mais nos últimos anos, e a ida para Cabo Verde bateu profundamente no meu ser cabo-verdiano

e isso levou-me a reescrever as canções. Eu queria que elas tivessem uma base mais acústica, pelo menos da minha parte, da composição. Aconteceu que, quando vou para Cabo Verde, em vez de passar umas férias curtas, fui lá passar mesmo uma temporada, quase meio ano. Foi aí que se deu esse momento que eu tive, de “quero voltar à acústica, quero voltar a essa sonoridade tão própria da ilha, menos electrificada, com menos efeitos.” Então tive de voltar a esse processo de repensar essas canções, mas tendo a guitarra acústica como base. Foi um bocado por aí que andei, a reescrever as coisas, a tentar simplificá-las também.

Tinhas uma guitarra acústica à mão ou há alguma história por trás do instrumento que tu foste agarrar para embarcar nesse processo de reescrita?

A história tem um lado interessante. Eu tinha sempre guitarras acústicas em casa, só que, há um ano e meio, uma pessoa amiga dos Rubera Roots que tinha um estúdio aqui na Amadora… Eles mudaram-se para os Países Baixos. E deixaram cá uma guitarra acústica muito boa, de um fabricante espanhol. De repente, dei comigo com um instrumento que tinha alguma qualidade, que tinha um som bom. Essa coisa de ter ali a acústica ao lado… De repente, em vez de ir ligar a guitarra eléctrica, a pedaleira e mais não sei o quê, comecei a adoptar esse lado prático da acústica. Ela está ali ao lado, pegas nela, tocas, não precisa ligar nada. Podes tocar a qualquer hora da noite também, em casa, não precisava de estar no estúdio. Mesmo em casa podia tocar nela a qualquer hora. Isso também teve um efeito, teve força nessa mudança. O facto de, de repente, me oferecerem uma guitarra acústica com uma qualidade extra trouxe esse lado prático. De repente está ali a guitarra no sofá, em vez de ligar a eléctrica, começo a tocar na acústica. Depois vou para Cabo Verde e agora, nestes últimos tempos, só quero saber da acústica.

Tu estás-me a descrever esse processo e eu estou a lembrar-me de um filme muito curioso que eu costumava mostrar aos meus alunos na ETIC, que se chama Cadillac Records. É um filme que conta um bocadinho a história de uma editora americana de blues que era a Chess Records, para a qual gravaram o Howlin’ Wolf ou o Muddy Waters. De certa maneira, eles dramatizam um processo que foi longo e complexo através de umas cenas com um belíssimo efeito, em que o Muddy Waters está lá no Mississippi, no campo, a tocar guitarra acústica no alpendre da sua casa e, de repente, vai para Chicago em busca de trabalho e percebe que a guitarra acústica já não funciona no contexto de uma cidade, vendo-se obrigado a procurar uma guitarra eléctrica para se conseguir fazer ouvir. Tu parece que fazes o processo inverso. Não faço ideia se em Cabo Verde estiveste em contexto mais rural ou mais urbano, mas de qualquer maneira, de certo que não será um sítio tão agitado quanto a Amadora, local onde deixaste a eléctrica para ir ao encontro da acústica. Vês algumas semelhanças nesse processo que eu estou a descrever?

Em Cabo Verde estive em Mindelo, que é uma cidade, mas consigo rever-me nessa cena de sair, sei lá, ali do sul, algures no Mississippi, e subir esse rio que vai dar uma cidade como Chicago. Acho que nessa relação faz sentido, porque eu estava na Amadora e de repente vou para o Mindelo, em que o ritmo é diferente, a densidade populacional é outra. Por exemplo, no Mindelo, à noite, vê-se muito mais pessoas a tocar e a cantar, ao invés de se ir a discotecas. De repente, se fosse beber um copo, o mais provável era ir a um spot onde estava alguém de vilão e voz. Tem muito isso, claro. Vou para os trópicos, né? O Muddy Waters sai do Sul, sobe para o Alto Michigan, vai lá para cima, para o frio, Chicago, a Windy City.

Exatamente.

Eu saio da Amadora, que é um bocado Windy City [risos], e vou para os trópicos, que têm um vagar diferente na vida, sem dúvida.

E fizeste essa vida de tocar à noite por esses sítios ou não?

Sinceramente, nem por isso, pá. Eu percebo que o músico local viva disso e tenha que fazer isso. Mas, do meu ponto-de-vista, não é fácil ser músico em Cabo Verde. A remuneração por uma noite, por três horas de música, é um bocado insignificante. Não sei se eu seria capaz de viver de música em Cabo Verde.

Percebo. Lembro-me, em tempos, de entrevistar, penso até que foi o Lloyd Cole. E ele dizia-me que as canções dele se alteraram quando ele, de repente, deixou de compor à guitarra e experimentou compor ao piano, que era um instrumento que ele nem sequer dominava. Como é que tu vês a mudança de ferramenta de trabalho criativo da eléctrica para a acústica? Que impacto é que isso teve na tua escrita?

Eu senti que me foquei em simplificar as coisas sem que elas perdessem força. Com a eléctrica, há o facto de eu curtir efeitos. Esses efeitos permitiam-me sempre ter outras cores em cima do mesmo acorde. Podia estar com o mesmo acorde e se mudasse o efeito isso podia alterar um bocadinho a textura, as cores. Na acústica tentei simplificar o máximo possível. Queria que as canções fossem simples, mas sem perder força. Acho que a mudança do instrumento ajudou um bocado no sintetizar as coisas e no voltar um bocado também às canções… Eu sempre curti canções, mas voltei um bocado àquelas coisas mais simples — menos Sonic Youth e mais, sei lá, é aquele gajo com a acústica na mão e a voz, sem aqueles efeitos que criam um outro mundo. Acho que foi mais por aí, tentei simplificar.

Sentes que estás mais próximo da folk então?

Sinto que sim. É uma coisa muito mais simples, sem dúvida.

Esse álbum vai viver, então, sobretudo da tua guitarra acústica, voz e colaborações pontuais? O que é que me podes revelar em termos de estrutura e de recursos humanos usados no teu álbum?

As canções são todas minhas, da minha autoria. Eu também fiz a produção do disco. E depois tentei, em vez de usar synths, que era o que aparecia no Pombo Pardal, fazer com que o teclado ficasse mais próximo do piano. Aí eu pedi ao Henrique Silva para tocar com uma sonoridade mais de piano e menos de sintetizadores. Sendo que depois,

em alguns arranjos, tem alguns sons mais de synths. Mas a base do disco fui eu a gravar baixos, guitarras, alguns teclados assim mais simples, aquelas coisinhas mais de dois, três dedos — o que não era preciso tocar com duas mãos. Nos baixos, houve uma música ou outra em que entrou o Renato Chantre Almeida, que também faz parte de Cachupa. Mas eu quis sempre simplificar, talvez voltar a uma ideia mais próxima do som que eu tinha em Cabo Verde, antes de ir para Portugal. E quando eu digo “simples”, estou a falar de ter poucos solos, mais a focar na força do acorde e da letra. E depois convidar três ou quatro músicos próximos de mim, tipo o Kay Limak, que participa neste single. Ele vive em Timor e também já chegou a tocar na Cachupa Psicadélica há uns anos atrás, quando ele esteve a viver cá em Lisboa. O Scúru Fitchádu também é um dos convidados do disco, mas ele trouxe mais o lado da escrita dele. Mandei-lhe um convite, tipo… Nós fizemos uma música que fala sobre o bem-estar, o amor em casa. Como com ele as coisas têm sempre aquela energia toda, aquela chapada da música dele, desafiei o gajo para fazermos uma música em que o assunto fosse o bem-estar caseiro, a tranquilidade, o prazer que uma pessoa pode tirar disso. Depois tenho mais um convidado que, por enquanto, curtia manter segredo para ter a força da surpresa. Provavelmente, essa pessoa vai entrar no segundo ou terceiro single. É mais por aí. No disco entra o pessoal da Cachupa e esses convidados que são mais cantores e autores também — pessoal que escreve e de quem eu gosto.

Penso que a mensagem deste primeiro single é muito clara. Esse reencontro com as tuas raízes teve mesmo um impacto não só artístico, mas também pessoal, emocional.

Teve um impacto tremendo, mesmo. Tal como este single, o disco também tem o nome de Qrê Voltá. Isso teve muito a ver com esse sentimento de dúvida profunda durante a minha estadia em Cabo Verde. Chegou ali um momento em que eu já nem me lembrava do nome do primeiro-ministro de Portugal, desliguei mesmo. E a maior razão para eu ter voltado continua a ser a mesma razão pela qual fiquei cá a viver, é que o meu filho vive cá, então preciso de estar no mesmo país onde ele vive. Mas lá em Cabo Verde, houve um momento em que veio aquela dúvida, que eu acredito que quase todo o emigrante tem essa dúvida. De tempo em tempo questionas-te porque é que estás longe da tua terra, porque é que vais-te manter num sítio e não voltas lá. Fora essa questão, deu-me também alguma tranquilidade o estar num sítio onde o polícia tem a minha cara, o bandido tem a minha cara, o presidente da república tem a minha cara… É um sítio onde os valores não se definem pela cor da minha pele, eu faço parte daquele todo.

Eu ia perguntar-te exactamente sobre isso. Aqui, enfim, basta-nos ligar à televisão para vermos o tipo de notícias com que somos violentados todos os dias. Mas no momento em que crescem as vozes da extrema-direita em Portugal com a intenção de recambiar para fora das nossas fronteiras todas as pessoas que, como tu dizes, não têm as caras iguais às desses políticos… O processo que tu me descrevias é muito interior, muito pessoal, muito íntimo. Mas algum destes factores exteriores, do clima político e social que agora se vive em Portugal, também contribuiu para essa vontade de, de repente, ires de novo ao encontro das tuas raízes?

Diria que não, porque acho que desde que cheguei a Portugal… Se calhar, ao nível da comunicação social, isso é uma coisa que se nota mais. Mas desde que eu vim para Portugal que essas situações acontecem com os imigrantes que vivem aqui. Se calhar agora fala-se mais na comunicação social, há mais exposição. Mas no dia-a-dia, da mesma forma que eu tive situações fodidas quando cheguei cá, também encontrei muita malta com quem eu criei uma amizade boa e que me permitiram ter momentos realmente alegres e bons em Portugal. O meu filho é português. Nunca vi problema algum em ser negro, cabo-verdiano, e ter um filho português moreninho. Essas coisas do degradê das pessoas nunca foi um problema. O lado da família da mãe dele é composto por portugueses de Coimbra, que sempre me abraçaram de uma forma incrível. Então, eu sempre tive esses dois lados — tanto o ser perseguido por skinheads na Calçada de Carriche, ali a caminho de Odivelas, como ir para Coimbra e ser abraçado por uma família que, pelo menos até hoje, que eu saiba, ainda não tinha ali alguém de origem africana.

Para terminar: há apresentações ao vivo previstas para breve, ainda antes da edição do álbum?

Não, não. Curtia pelo menos ter dois, três singles cá fora, e depois começar a fazer a apresentação do disco. Queria pôr o pessoal a falar um bocado do disco. Hoje em dia há tanta coisa a ser editada aí na Internet, então eu não quero… Tipo, até sou um bocado apologista de lançar o disco todo de uma vez só, mas desta vez acho que vou fazer um bocadinho o jogo. Vou jogar de acordo com o que os tempos ditam, não é? Só um bocadinho.


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