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Fotografia: Barbara Martons
Publicado a: 09/05/2025

Cantomilo é álbum de estreia e o concerto de apresentação é no Teatro José Lúcio da Silva.

Estela Alexandre sobre Cantomilo: “Descobri na composição um novo sentido numa fase em que me sentia perdida”

Fotografia: Barbara Martons
Publicado a: 09/05/2025

Uma orquestra de 25 músicos em simultâneo em palco, num disco que junta 50 músicos no total. Uma destemida nova compositora e pianista que arranca para um percurso em grande escala, no número de músicos e na dimensão da obra. Um ousado e longo desafio que vê agora a luz do dia. Cantomilo foi hoje editado de forma independente e é apresentado em concerto este domingo, dia 11 às 18h, no Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria.

A fulgurante e jovem compositora Estela Alexandre surge com uma primeira obra que abre um caminho promissor e dá alento a outras mais. Feita de uma orquestra que congrega um naipe de músicos que conjuga experiência e jovens talentos, entre os quais encontramos nomes como Bernardo Tinoco, Desidério Lázaro ou João Mortágua. Um conjunto de vozes diversas no sentido dos sons, das madeiras aos metais das trompetes e trombones, passando por uma vasta secção rítmica em que se inclui um vibrafone, juntando-se ainda as vozes de Matilde Sátira ou Sara Afonso. Às composições originais juntam-se duas versões orquestrais de outros temas, um deles o emblemático “Strange Fruit”, que serve para avivar o problema sistémico do racismo e homenagear as vítimas desse flagelo ignóbil que teima em persistir.

Uma música descrita como capaz de fazer imergir plateias como uma banda sonora de um grande filme de paisagens idílicas. Estela revela em entrevista ao Rimas e Batidas a profunda conexão com o espaço natural envolvente durante o processo de composição, em que a natureza é a local, razão para o título do álbum, trazido de topónimo na região leiriense.



Como é que nasceu a ideia de criar uma orquestra própria?

A ideia surge de um desfio proposto pelo Filipe Melo, que foi meu professor de instrumento durante a minha licenciatura em piano na vertente jazz. O desafio era compor um original para piano, primeiramente, e de seguida escolher uma formação para fazer a adaptação, dando-me liberdade total nessa formação, fosse um quarteto de cordas, um combo, uma orquestra… Enfim, não havia imposição de ser uma formação mais de jazz ou clássico. De forma pouco consciente, mas porque me fascinam as grande formações, pela dimensão e consequente massa sonora e possibilidades, escolhi orquestrar este original. Diria que tudo começa aqui. À medida que fui compondo e produzindo este primeiro tema, o Filipe foi-me incentivando bastante com o feedback que me dava e comecei a perceber que este talvez fosse o caminho que me fazia sentido, o da composição. Como se instalou uma pandemia, não sabíamos quando seria possível experimentar este tema ao vivo e surge a sugestão de gravarmos à distância. Acho que a partir daqui as coisas foram acontecendo. Depois deste tema surgiu um cover, fomos aprimorando a qualidade das gravações e a banda foi-se formando. Com o tempo fui percebendo alguns critérios importantes para mim na escolha dos músicos e fui convidando ou escolhendo os músicos a dedo. 

Diz-se que a orquestra é o mais complexo dos instrumentos. Que outras orquestras a inspiraram?

Sim, percebo, é um instrumento que ainda estou a aprender a tocar e tenho procurado saber mais junto de algumas referências para mim nesse sentido, como o Carlos Azevedo, por exemplo, que tem sido uma grande ajuda, que por sinal também esteve na origem da Orquestra de Jazz de Matosinhos, que é, sem dúvida, das orquestras em Portugal que mais me inspira. Talvez a resposta seja óbvia, mas diria que é incontornável falar sobre a orquestra da Maria Schneider. Foi provavelmente o meu primeiro contacto com esta música, tive a sorte de ver ao vivo no festival Guimarães Jazz há uns 8 ou 9 anos e fiquei fascinada.

Reuniu aqui alguns grandes músicos, muitos líderes em nome próprio de vários projectos. Quando pensou na orquestra, pensou logo em quem queria recrutar?

Como referi acima, foi um processo. Houve músicos que foi imediato pensar em fazer o convite, outros que fui conhecendo e, por isso, à medida que fomos gravando e fui tendo mais contacto com esta realidade, fui afinando algumas características que eram importantes para mim. Para além da excelência técnica, do som ou do facto de serem músicos habituados a tocar em secção, a individualidade de cada um, as características pessoais e todo este lado humano e pessoal é algo que considero importante a vários níveis. Acho que isso também se reflete na música e quando nos juntamos há uma espécie de bolha que se cria e acontece uma sinergia muito bonita.

Há poucas mulheres nesta orquestra criada por uma mulher — Marta Vilaça, Andreia Santos, Inês Costa e na voz, além da própria Estela, a Matilde Sátira e Sara Afonso. É um reflexo da pouca diversidade existente no jazz nacional?

À partida diria que sim. Quando comecei a estudar jazz havia pouca diversidade, de facto, e acho que isso de alguma forma se reflete na orquestra. Tenho percebido, felizmente, que há cada vez mais mulheres nas gerações que têm surgido depois da minha, mas confesso que por serem gerações mais recentes, com quem tive menos ou nenhum contacto pessoal, não conheço tão bem.

Como é que conseguiu erguer um projecto desta dimensão? Não vi logos de patrocinadores na capa do disco…

Ao início não tinha noção, como dizia, não foi uma escolha muito lúcida ou consciente. A urgência era a de fazer música e diria que essa foi a grande motivação. Mas, principalmente nesta fase, houve um grande investimento financeiro pessoal e uma vontade incrível da parte dos músicos de fazer isto acontecer. Procurei apoios culturais, que infelizmente não se concretizaram, e por isso contactei algumas empresas que quisessem apoiar o projeto, abri uma angariação de fundos, promovendo a compra antecipada do disco e tive também a ajuda incansável da minha família. 

Pode falar-nos das suas referências ao nível da composição? E será possível ver pistas para essas referências no facto de ter abordado “Coisas” dos Ornatos Violeta e o standard “Strange Fruit”?

Ornatos Violeta são uma banda que admiro muito e que oiço desde infância e por isso acredito que, de alguma forma, a música portuguesa tenha influência na música que imagino e que escrevo. Também as bandas sonoras têm um lugar especial para mim, pela capacidade que existe de transportar o ouvinte e de criar universos paralelos ao plano físico. Tenho-me apaixonado cada vez mais por bandas sonoras da Disney e todo aquele universo mágico. Voltando um bocadinho à Maria Schneider, apesar de não compor para filmes, acho que a música dela tem muito esta componente da narrativa. É música muito cinematográfica. Mas também gosto muito de indie folk, às vezes preciso dessa calma. “Strange Fruit” surge no disco como uma pequena homenagem a alguns massacres e injustiças raciais que temos vindo a assistir. Na pandemia, testemunhámos a morte de George Floyd, em Minnesota, e, em Portugal, a de Bruno Candé, e por isso esta simbólica homenagem surge como lamento, para que episódios como estes não se diluam no tempo e na indiferença. 

Pegando nessa sua versão de “Strange Fruit” em homenagem a Bruno Candé, acha que o racismo sistémico que existe na nossa sociedade também ajuda a explicar o facto de existirem tão poucos artistas negros no jazz nacional?

Talvez. De facto não há muitos exemplos em Portugal. Talvez por haver alguma falta de representatividade, provavelmente por questões históricas que infelizmente ainda ecoam nos dias de hoje. No caso das mulheres no jazz, diria que se põe a mesma questão. Julgo que são assuntos que se ligam de alguma forma.

E, já agora, a propósito de “Strange Fruit”: Billie ou Nina?

As duas inspiraram. A primeira versão que conheci, curiosamente foi a de Nina Simone, mas as duas inspiraram a versão que proponho. No entanto, a minha interpretação fica bastante aquém, naturalmente, e provavelmente até pouco ou nada legítima quando se fala das versões de Billie Holiday ou Nina Simone, que têm uma força inexpressável.

Este é um registo que foi pensado num contexto muito particular, na altura dos confinamentos. É uma janela para o seu mundo interior, para os seus pensamentos?

Sim, é uma exposição da minha identidade, de alguma forma. É uma expressão pessoal. O disco acabou por se tornar numa espécie de diário que documenta, por um lado, o processo de construção do projeto e, por outro, uma fase de redescoberta pessoal que, para mim, são difíceis não estar conectadas. Acho que ambas se influenciaram. Descobri na composição um novo sentido numa fase em que me sentia perdida. A natureza também teve essa importância para mim. Passei a valorizá-la de outra forma, descobri uma certa magia. Foram duas bóias muito importantes que me trouxeram alento e esperança numa altura delicada. Por isso, acho que este registo acaba por refletir e transparecer não só a fase em que começou a acontecer, como a evolução e consequentemente os meus pensamentos e, por isso, a minha identidade.

Pode dar-nos uma ideia da sua formação e do seu percurso académico e artístico até chegar a este disco?

Antes de ingressar no ensino articulado, onde fiz piano clássico até aos 14 anos, fiz parte de uma filarmónica, que depois conciliei com o conservatório. Tive um ano em que achei que não iria seguir música e por isso fiz um ano de Artes no secundário, sem aulas de música, mas no ano seguinte fui para Coimbra estudar jazz, no Conservatório de Música de Coimbra, onde fiz os três anos do secundário, sempre a achar que não iria seguir jazz por sentir que não tinha o virtuosismo e paixão pelo jazz que via nos meus colegas. No último ano o meu professor de piano, Fernando Rodrigues, convenceu-me a fazer provas. Seguiu-se então a licenciatura na Escola Superior de Música de Lisboa, em piano jazz, e foi lá onde tudo aconteceu, ou pelo menos onde percebi que este projeto e este disco iriam acontecer. 

Como vai ser a apresentação do álbum em Leiria? Vai ter todos os músicos que participaram no álbum em palco?

O concerto conta com 24 músicos em palco e algumas surpresas. Os temas do disco foram sendo gravados e por isso contamos com um total de 50 músicos, no entanto nunca temos este número de músicos a tocar ao mesmo tempo. Ao vivo, infelizmente, seria bastante mais complexo termos a participação de todos os músicos que gravaram.

Decidiu “jogar em casa” na apresentação do álbum. Foi uma decisão estratégica ou emocional?

Este convite surge da Câmara de Leiria quando souberam que estava a preparar um disco. Cantomilo é uma zona ou um lugar, se quisermos, em Leiria, entre Cortes e Barreira. Esta zona dá nome ao disco e, por isso, fico muito contente que assim seja e acho que faz todo o sentido o lançamento acontecer na cidade que, no fundo, inspirou o disco.

Já pensa em próximos passos?

Gostava muito de conseguir e poder continuar com o projeto, se possível com a estrutura que o mesmo requer. Tenho estado mais focada no presente mas com alguns objetivos que vou traçando e que gostava de cumprir, nomeadamente juntar a orquestra mais vezes e levar esta música onde for possível.


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