CD

Errol Brown & The Supersonics

The Treasure Dub Albums Collection

Cherry Red Records / 2019

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 29/08/2019

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Para se entender o que é o dub é necessário primeiro compreender o complexo ecossistema (e esta palavra faz tanto sentido neste contexto…) musical estabelecido na Jamaica, sobretudo a partir de meados dos anos 60 em diante. Uma vasta rede de editoras, artistas, estúdios, produtores, lojistas e operadores de soundsystems cruzava-se e recruzava-se, alimentando-se mutuamente, em constante busca da inovação que garantia trabalho e sobrevivência.

Duke Reid, tal como Sir Coxsone Dodd, foi uma das figuras fundamentais dessa prolífica cena. Reid foi polícia durante uma década antes de adquirir com a sua mulher a Treasure Isle Liquor Store, ainda durante os anos 50. Com um agudo sentido de negócio, Duke cedo estabeleceu um programa de rádio, Treasure Isle Time, de forma a promover a sua loja. Nesse programa, Reid tocava sobretudo r&b americano e das suas viagens de negócios aos Estados Unidos trazia frequentemente novos discos que rapidamente percebeu que podiam servir não apenas para alimentar o seu programa, mas também como a base para um soundsystem próprio que baptizou como Duke Reid The Trojan, competidor directo do Downbeat do seu eterno rival Coxsone Dodd, que criou o selo Studio One.

A busca constante de novidades para tocar no programa de rádio e nas dances animadas pelo Trojan cedo levou Reid a começar a investir em produções próprias quando corria a era do ska para a qual contribuiu gravando artistas como Alton Ellis & The Flames ou Justin Hinds & The Dominoes, de 1962 em diante. Quando Lindon O. Pottinger decidiu abandonar o negócio da produção discográfica para se concentrar na manufactura de vinil, Reid adquiriu-lhe todo o equipamento e estabeleceu o seu próprio estúdio no andar de cima da sua loja, no número 33 de Bond Street, no coração de Kingston, Jamaica, corria então o ano de 1965.

E como era comum na época, cada estúdio precisava da sua banda residente e de um engenheiro de som: Tommy McCook, depois da separação dos Skatalites, assumiu a direcção dos Supersonics, a banda residente do estúdio e etiqueta Treasure Isle, operado inicialmente pelo engenheiro Byron Smith. E assim, Reid, na qualidade de produtor, poderia trazer qualquer cantor ou grupo para uma sessão, gravá-lo, imprimir uns quantos dubplates e testá-los no seu soundsystem. De igual forma, o estúdio estaria igualmente à disposição de produtores externos, que poderiam reservar sessões no seu estúdio ou, se procuravam novos dubs para os seus toasters “versionarem” em pequenos soundsystems independentes, poderiam simplesmente ir ao estúdio, pedir um novo dub de um qualquer riddim que pudesse estar quente na época, e o engenheiro faria uma nova mistura que seria impressa em dubplate e passada ao cliente. A música era constantemente re-utilizada, dando assim aos engenheiros repetidas possibilidades de inovação.

Errol Brown, sobrinho de Duke Reid, formou-se em electrónica numa escola técnica de Kingston e depois aceitou um trabalho na Cable & Wireless, companhia telefónica inglesa que então operava na ilha. Quando Byron Smith decidiu ele mesmo aventurar-se no negócio das lojas de bebidas, abriu uma vaga no Treasure Isle que Errol Brown preencheria a pedido do seu tio. E foi assim que ele mesmo aprendeu e refinou as suas capacidades, gravando incontáveis sessões no Treasure Isle com alguns dos maiores artistas da ilha, elevando o som que surgiu depois da febre ska, o rocksteady, até à condição de nova coqueluche dos soundsystems e das rádios locais.



Duke Reid faleceu a 1 de Janeiro de 1975 e o Treasure Isle Recording Studio bem como todo o seu catálogo passaram para as mãos de Sonia Pottinger (ex-mulher de Lindon Pottinger, a quem Reid tinha anos antes comprado o primeiro equipamento do seu estúdio) que decidiu rentabilizar a marca através de uma série de compilações que exploraram o vasto arquivo deixado por Reid.

Foi então que a Treasure Isle lançou em rápida sucessão os títulos Treasure Dub Volume 1, Treasure Dub Volume 2 e Pleasure Dub. Estes álbuns representavam uma inteligente forma de rentabilizar o catálogo clássico, dando ao engenheiro Errol Brown espaço para, na mesa de mistura, reinventar clássicos de Dobby Dobson (“Loving Pauper”), John Holt (“Ali Baba”), Alton Ellis (“Willow Tree” ou “Cry Tough”) ou The Paragons’ (“The Tide is High”), entre muitos outros.

A qualidade do material deixado nos arquivos por Tommy McCook e pelos seus Supersonics e a habilidade de Errol Brown, que encontrou o equilíbrio perfeito entre os originais, deixando nas suas misturas ecos das interpretações dos cantores e gerindo da melhor forma os arranjos, e a necessidade de deixar aí a sua própria assinatura, evidenciando a componente rítmica e gerindo o espaço com inteligência, porventura de forma menos “radical” ou “invasiva” do que outros engenheiros, como King Tubby, mas ainda assim elevando os temas para outro plano, garantiu o plenamente justo estatuto clássico destes três álbuns.

O presente duplo CD relançado pela Doctor Bird, reúne o alinhamento dos dois volumes de Treasure Dub e ainda o material de Pleasure Dub e acrescenta-lhe uma série de raras “versões” recuperadas de singles, os inventivos lados B que os toasters usavam ao vivo procurando incentivar as multidões a dançar ao som dos seus soundsystems.

Estas pioneiras gravações de dub, efectuadas bastas vezes com equipamento muito primário, em mesas de mistura sem automação e com pouco mais do que reverbs de mola e delays de fita por arsenal de efeitos, dependiam da destreza do engenheiro, que precisava de conhecer as pistas dos originais de forma profunda, entendendo quando tirar de cena certos elementos das pistas originais, quando voltar a reintroduzi-los na mistura, criando assim dinâmicos e dramáticos arranjos que transformavam os temas originais em algo de novo. Brian Eno foi um dos que percebeu que o estúdio podia ser ele mesmo um instrumento e depois, na era disco, engenheiros como François Kevorkian entenderam que as lições do dub podiam perfeitamente ser transpostas para outros contextos, com a pista de dança de Nova Iorque a assumir-se como a mais directa descendente das experiências cozinhadas primeiramente em pequenos espaços como o estúdio da Treasure Isle, uma simples e pequena divisão no topo de uma loja de bebidas em Bond Street, Kingston.

E por isso mesmo, escutar atentamente The Treasure Dub Albums Collection equivale a embarcar numa máquina do tempo que nos carrega até aos primórdios, até ao big bang que deu origem ao complexo universo em que hoje habitamos, em que os produtores são eles mesmos autores, em que a reciclagem de ideias antigas pelo sampling é uma realidade, em que a tecnologia pode ser uma crucial ferramenta ao serviço da imaginação. Errol Brown, há quatro décadas e meia, já se passeava por este futuro.


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