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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 09/05/2023

Nas vésperas da sua apresentação na Bota.

Érika Machado: “A vida real é a matéria prima para a artística e a artística a motivação para a vida real”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 09/05/2023

Com concerto marcado para o próximo dia 12 de Maio na lisboeta Bota, o primeiro que tem em 2023 devido a vicissitudes de que se fala mais abaixo, a Rimas e Batidas conversou com Érika Machado, uma cantautora e artista visual que largou uma carreira importante no Brasil para recomeçar em Portugal, deparando com as dificuldades que são comuns neste país e às quais se somam aquelas que derivam das nossas xenofobia, misogenia e homofobia estruturais. Quisemos saber mais e aqui está…



Deixaste para trás uma fulgurante carreira em Belo Horizonte, que se propagou por todo o Brasil com a inserção na novela Malhação de uma canção tua, para em Portugal fazeres um mestrado e um doutoramento em artes plásticas. Como o teu reconhecimento no Brasil não passou para Portugal, é como se, na música, estivesses aqui a dar os primeiros passos. No meu entendimento, esse foi um enorme acto de coragem. Podes explicar-me esta invulgar decisão, quando se esperava que, em terras brasileiras, tinhas todo um percurso que estava já na ribalta?

Essa é uma longa história… Daqui parece uma fulgurante carreira porque em Portugal não existe um mercado médio, onde os artistas ainda conseguem apresentar seus trabalhos com condições. Nunca tinha vivido fora do Brasil, e a possibilidade de estudar e ter essa experiência num país que fala a mesma língua foi o que me atraiu e me fez tomar essa decisão. Eu tinha 32 anos e vim pra ficar um ano. Pretendia nesse ano estudar e ter a experiência de viver em outro continente, vivenciar uma outra cultura e também conhecer novas pessoas.

Quando cheguei, Portugal era um país muito barato para um brasileiro classe média. Não foi nada difícil gostar de estar por cá e não tinha vindo para trabalhar, o que me facilitava imenso. Tinha, inclusive, apoio para um projeto quando eu retornasse no ano seguinte, e acabei gostando de conhecer Portugal. Como era fácil, acabei por ficar os dois anos do mestrado. 

Já de volta ao Brasil, em 2013, um motivo pessoal me trouxe de volta a Portugal por mais um ano, e entre outras coisas aproveitei para organizar um projeto que se realizou no ano seguinte, quando retornei ao Brasil, o álbum Superultramegafluuu, apoiado através do edital Natura Musical. Apresentei o concerto desse álbum de norte a sul do Brasil, e dois anos depois vim para uma residência artística de três meses no Alentejo, onde surgiu o projeto Spicy Noodles.

No final da residência voltei para o Brasil, e o projeto recebeu alguns convites para se apresentar por aqui. Várias coisas legais aconteceram, o Henrique Amaro fez convite para colocar uma canção minha numa coletânea da FNAC e o Salgado nos convidou para ir tocar aos Maus Hábitos. Estavam várias coisas acontecendo, e com o impeachment da Dilma deu vontade de fugir do Brasil e eu voltei para cá. Nessa volta a Lux Records nos fez o convite para editarmos o álbum Sensacional. Tudo ia bem e até decidi iniciar o Doutoramento em Arte Contemporânea na Universidade de Coimbra, enquanto ia mostrando esse projeto por aí. O disco estava quase pronto e entusiasmo para seguir com esse projeto não me faltava, mas um ladrão veio mudar o flow da vida entrando lá em casa, levando os computadores e os discos externos. Perdi o álbum que já estava praticamente pronto, registos, memórias, pesquisas, anotações. Tive de encontrar outra casa, foi uma grande tristeza.

O álbum foi regravado um ano depois e finalmente editado no dia 29 de janeiro de 2020, um mês antes de fechar tudo na pandemia. Com a abertura, eu e minha parceira desse projeto estávamos a viver em cidades diferentes e com outros projetos, eu tinha feito outras músicas que me interessavam mais mostrar naquele momento, e muito pouco trabalho, e ela tinha muitas coisas a fazer e pouco tempo para esse duo que acabou ficando suspenso. Às vezes até aparecia um concerto ou outro para Spicy Noodles, mas nunca era possível realizá-los. 

Com o fim da pandemia fiz diversas coisas, gravei um mini-álbum com o apoio do Programa Ibermúsicas, formei as Contentes com a poeta Duda Las Casas, fiz vídeos para outros projetos musicais, participei no disco do meu orientador António Olaio, participei de exposições, fiz ilustrações para alguns projetos, diagramei livro, fanzine, fiz sites e mais um monte de trabalhos que exigiam os conhecimentos que acumulei para construir o meu próprio trabalho, e foi assim que cheguei à conclusão de que mais valia, para sobreviver, vender meus conhecimentos técnicos do que eles aplicados no meu trabalho, ou mesmo o meu trabalho como um todo. Sendo assim, estou curtindo trabalhar como técnica de som residente numa casa de jazz chamada Avenew. Tenho gostado imenso desse trabalho e aprendido bastante com ele. Sorte minha de estar numa casa com tão boas condições e lá conheci muitos artistas maravilhosos como, por exemplo, o João Ventura e a Michele Ribeiro, que passam sempre por lá e acabaram virando grandes amigos. Muito resumidamente, hoje é isso.

Sei que em Portugal te vens deparando com inúmeros obstáculos, alguns deles de pura discriminação e xenofobia. O teu concerto na Bota no próximo dia 12 de Maio é o primeiro que fazes este ano, o que é, no mínimo, estranho. Parece que, por cá, nenhuma entidade, nenhuma produtora, te quer no palco. O que podes, e queres, contar das adversidades que tens enfrentado?

Penso que Portugal não é um país simpático para os artistas imigrados e que é difícil também para os daqui. Durante a pandemia foi ainda mais fácil perceber isso, vendo os apoios sendo direcionados mais para as instituições do que para os próprios artistas. Até o governo Bolsonaro deu mais apoio para os artistas que o governo daqui nesse período. E se já não é fácil ser mulher e lésbica no meu próprio país, imagina no país que o colonizou.

Para quem não te conhece por cá, como te apresentarias?

Sou uma artista & etc. que anda por aí procurando um lugar no mundo, só pra ver a alegria chegar e tudo ficar melhor um pouco. 

O concerto que vais fazer na Bota não é em teu nome, mas no de Spicy Noodles, um projecto que teve maior saída. Achas que foi por tocares com uma portuguesa, ainda que as composições fossem tuas? As tuas propostas como Érika Machado pouco têm interessado às organizações de concertos, que ou te ignoram ou dizem não, enquanto outras não te convidam, excluindo-te logo à partida. A grande ironia é que agora és tu, a solo, que surges como Spicy Noodles.

Acho que o fato de ter uma portuguesa na banda ajudou e sempre apareciam as nossas nacionalidades nas apresentações, mas não quero ser injusta com a sorte, pode ter sido coincidência. Já na altura da regravação do álbum Sensacional, a Filipa, que era minha parceira no projeto, foi viver para outra cidade e se dedicar a outros projetos. Eu também vim de Coimbra pra Lisboa e, depois da pandemia, as poucas datas que apareciam já não eram mais possível de fazer. Ficou difícil encontrarmo-nos pra ensaiar e ter disponível alguma data pra fazer algum concerto, e o projeto foi ficando de lado. Fazem mais de dois anos que Spicy Noodles não têm qualquer concerto.

Recentemente me deu uma vontade enorme de cantar essas músicas, daí falei com a Filipa e resolvi continuar com o projeto sozinha. Investi tanto trabalho nesse álbum, virei tantas noites sozinha gravando e arranjando esse disco, produzindo videoclipe, fazendo site, etc., que não seria justo se eu nâo pudesse mostrar isso pra mais pessoas. Preparei esse primeiro concerto e coloquei também no repertório outras coisas mais recentes que fiz. Estou entusiasmada, tomara que a malta apareça! 

Há alguma tendência, por parte de quem não se esforça por ouvir e ver o que está por detrás das “aparências”, das “superfícies”, que engendras, para entenderem a tua música como uma pop chiclete e as tuas artes visuais (desenho/pintura, vídeo, criação de objectos, performance, etc.) como uma pop art na sua mais elementar leveza, ficando-se por um imaginário infantil ou adolescente. E no entanto, há outras camadas por baixo, como se verifica ao prestar atenção. Fala-nos, por favor, dessa linha de condução, que é bem mais profunda do que possa parecer…

Faço meu trabalho partindo do meu olhar sobre as coisas, são minhas anotações, falam sobre a minha condição, sobre acontecimentos do meu dia a dia nesse tempo e espaço que ocupo, e procuro usar uma linguagem bem simples pra desenvolver tudo isso. Algumas pessoas não conseguem perceber certas subtilezas, outras não conseguem distinguir o simples do simplório… Tudo o que sei é que não há nada que eu possa fazer em relação a isso. Esteticamente, o meu trabalho reflete muito da minha personalidade e traz coisas que eu adoro: cores, desenhos animados, videojogos, documentários e coisas e pessoas que conseguem de um certo jeito driblar o padrão. Acho que sou uma pessoa naturalmente gentil, mas também bastante crítica e exigente, principalmente comigo mesma, e tenho reparado que, infelizmente, as pessoas gentis são confundidas com as pessoas bobas. Talvez o mesmo aconteça com o meu trabalho, mas isso é só uma hipótese.

Para quem realmente escuta as tuas canções e observa a tua arte, que são paralelas nas características, há um forte elemento de charge política e social, funcionando com uma finalidade, um propósito, mesmo que seja necessário entrar mais fundo para os compreendermos. Que questões e temáticas queres passar para es outres?

Desde os meus primeiros trabalhos, me interesso por esse consumível e consumido mundo contemporâneo, e as nossas relações para sobreviver nele. Acho que a arte é sempre política, e vale lembrar que o termo política é derivado do grego antigo politeía, que indicava todos os procedimentos relativos à Pólis. Às vezes vejo gente confundir político com panfletário, o que acho legal também, mas aí já tem outra função. Por exemplo: na penúltima eleição que aconteceu para a presidência do Brasil, fiz uma canção que se chamava “Ele Não”. Até nem gravei, fiz um vídeo e postei no Facebook. O dia seguinte foi super massa, o Midia Ninja compartilhou, perdi um montão de seguidores, ganhei admiradores e obviamente me coloquei num lado da história, mas acho que essa música não faria sentido num álbum pra se ouvir daqui a um tempo, não faria sentido ser apresentada agora. Enfim, é o que eu penso.

Foste e és apoiante de Lula, por exemplo, e tens levantado a bandeira arco-íris. Contas até, no teu repertório, com canções sobre o amor por outras mulheres. Esses posicionamentos têm tido repercussões negativas na tua carreira, deste lado do Atlântico? E qual é o mundo que projectam e ambicionam, ou seja, o que te move?

É engraçada essa tua pergunta, porque ela dialoga com a pergunta anterior, sobre algumas pessoas não perceberem as camadas de leitura do meu trabalho. Incrivelmente, ainda não notei qualquer repercussão quanto a esse aspeto. Talvez seja porque não estão nem aí para o esforço, ou então, como é tudo muito colorido e cheio de barulhinhos, de bonecos, e eu canto de uma maneira que pode soar doce, posso confundir um bocado as pessoas. Acho que é por isso que ouço às vezes dizer que faço música fofinha e para crianças.

Nas profundezas por baixo do que parece inocente, cândido até, encontramos sarcasmo, trocadilhos, piscares de olho e um humor algo negro. São estes âmbitos entrelaçados as duas facetas da pessoa Érika Machado ou trata-se de uma construção, uma encenação, um recurso artístico?

Tudo é construção, a vida real e a artística. Acho que elas se misturam o tempo todo: a vida real é a matéria prima para a artística e a artística a motivação para a vida real, e isso vai acontecendo junto.

Enquanto cantas e tocas na guitarra, no violão ou no guitalele melodias que nos ficam no ouvido, tens a envolvê-los uma electrónica que chega a ser experimental. Aliás, ver-te a tocar é impressionante, porque estás, em simultâneo, a utilizar vários instrumentos e recursos sonoros. Esta conjugação também faz parte da duplicidade e da ambiguidade da tua música?

Hehehe, sim! Eu faço um pouquinho de cada coisa pra conseguir realizar esse meu trabalho que é, na verdade, muito artesanal. Faço as canções e os arranjos, e nos concertos sempre quero mostrar toda essa constelação. Não quero soltar uma base no computador e cantar e tocar guitarra por cima, então o que mais consigo tocar eu toco. Também sou eu quem faz a parte visual do meu trabalho, as ilustrações, os vídeos, faço minhas gravações, me filmo, tiro minhas próprias fotos de divulgação, etc. Eu sempre faço uso de tudo isso no meu trabalho, e acho que fica bem, essa é a minha forma de me sentir empoderada sem precisar de rebolar.

No Brasil tiveste oportunidade de colaborar com figuras e colectivos como Milton Nascimento, Clube da Esquina e Pato Fu, entre outros. Podes recordar esses episódios para nós, incluindo os “outros” de que falei?

São tantas boas lembranças… No Brasil conquistei algumas coisas muito valiosas, como por exemplo poder me tornar amiga e parceira dos meus ídolos John e Fernanda do Pato Fu. Eles sempre foram uma super referência e a melhor banda do mundo pra mim. Já tive o Milton na primeira fila de um concerto meu, ele ouviu o anuncio do concerto na rádio e foi lá, e depois disso fiz a primeira parte de um concerto dele no aniversário de São Paulo pra umas 60 000 pessoas e cantei com ele nesse concerto também. Até chorei nesse dia.

Já cantei uma música minha com Seu Jorge num concerto dele. Ele me fez esse lindo convite. Cantei no disco do Affonsinho, da banda Falcatrua, compus para outros artistas gravarem, e entre eles a Marina Machado, que é uma cantora maravilhosa e também referência pra mim, além da Titane. Cantei a abertura do programa Dango Balango com meu mestre John. Está na internet e eu acho demais! Também tive uma música como abertura do seriado “Tudo o Que é Sólido Pode Derreter” e outras músicas inseridas nesse seriado tão massa do Rafael Gomes e do Esmir Filho. Cantei uma música para a trilha de um filme que Arthur de Faria estava fazendo, e eu também adoro o trabalho dele.

Foram alguns anos de trabalho intenso, acho que nem se quisesse eu conseguiria me lembrar de tudo. São essas as colaborações que me lembro agora e de que mais me orgulho.


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