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Fotografia: Dennis Morton
Publicado a: 29/04/2022

No jogo do dramatiza e desdramatiza, uma mestre da gestão emocional.

Erika de Casier: “Deixei para trás aquela pressão de fazer algo muito inovador para criar aquilo que fosse mais verdadeiro para mim”

Fotografia: Dennis Morton
Publicado a: 29/04/2022

Destiny’s Child e Sade. Tricky e Portishead. Craig David e Aaliyah. Brandy e Janet Jackson. Y2K, pop e r&b. Estas são algumas das referências que se vão repetindo nos textos que se foram escrevendo sobre Erika de Casier desde o seu surgimento discreto (mas elegante o suficiente para deslumbrar quem prestou atenção) com Essentials, em 2019. É no meio de todos esses nomes e estilos que encontramos o que a sua música é — e injectando-lhe uma dose extra de confiança chegamos a Sensational, a confirmação dada no ano passado de que o primeiro álbum não tinha sido obra do acaso.

Nos entretantos deste início rocambolesco a solo no pós-Saint Cava, a cantora e produtora nascida em Portugal (filha de pai cabo-verdiano e mãe belga) descobriu que Dua Lipa era sua fã (o resultado foi uma remistura oficial de “Physical“), viu-se celebrada pela família real dinamarquesa, juntou-se à reputadíssima editora 4AD e esgotou salas longe da Dinamarca, país que adoptou como casa e que a recebeu quando ainda nem sequer tinha feito 10 anos.

Depois de uma passagem modesta por Lisboa e Porto para fazer as primeiras partes de Toro y Moi, em 2019, a artista regressa para duas datas (uma no Lux Frágil, via ZDB, e outra, gratuita, no gnration, em Braga — a de Faro ficou sem efeito). Esta digressão Sensational foi o gancho para uma conversa com de Casier em que se foi da sua relação emocional com o nosso país (e uma paixão imprevista pela música de Deejay Telio) até ao uso da ironia enquanto ferramenta de escrita de canções (e escape para lidar com assuntos mais delicados).



Falas português?

Muito pouco. Eu mudei-me quando tinha oito anos, por isso o meu português é o equivalente ao de uma criança [risos]. 

Eu quero falar já das tuas raízes portuguesas e cabo-verdianas, se não te importares. Li numa entrevista que foste influenciada de alguma maneira pela música de Cabo Verde e pelo fado. Podes falar mais sobre isso?

Acho que era mais música cabo-verdiana. Quando estava a crescer, eu não vivia com o meu pai — ele ainda vive em Cabo Verde — e, por isso, pesquisava sobre as minhas raízes. Eu ia à biblioteca e ouvia alguns CDs de Cabo Verde. As coisas que eles tinham era Cesária Évora, Mayra Andrade… E também existiam colectâneas da editora Putumayo. E era a isso que eu tinha acesso na biblioteca. Também costumava ouvir CDs de fado. 

Na altura eu tinha-me esquecido do português e a alma na expressão foi algo que me aproximou. Eu era capaz de compreender algumas palavras e frases, mas havia muita coisa que não conseguia. Mas o que eu conseguia compreender é que a pessoa que cantava, como por exemplo a Cesária Évora, tinha muito sentimento e melancolia na sua voz. Dava para sentir a dor. E eu acho que isso ficou comigo. Quando eles cantam, é como se estivessem numa sala com alguém a tentar-lhes dizer estas histórias. Eu abracei isso completamente [risos], mesmo que faça coisas mais r&b e pop, mas acho que me conecto com essa forma de cantar de “estou a falar com alguém e dizer-lhe o que sinto”. 

Saíste de Portugal quando tinhas oito anos. Voltavas regularmente?

Quando tinha 16 anos, eu voltei a Portugal. Mas foi super estranho. É um sítio muito emocional para mim. Eu já não conheço ninguém aí. Eu fui à minha antiga escola… claro que nenhum dos meus amigos lá estava. Mas quando tens 16 anos, tu imaginas que vai existir uma festa de boas-vindas. Mas ninguém estava lá e tudo tinha mudado completamente. E acho que cada vez que volto, e cada vez que ouço português, fico com uma dor no coração. 

Vão ser uns concertos muito emocionais para ti… 

Oh yeah. E parte-me o coração quando as pessoas começam a falar português à espera que eu saiba. Eu percebo português, mas não consigo falar. Mas estou ansiosa por voltar. O meu sonho seria ficar em Portugal durante uns meses, viver por aí algum tempo. Só para não ser um choque cada vez que volto. 

Lá atrás mencionavas a Cesária Évora e a Mayra Andrade, e isso vai de encontro a um tema que queria abordar contigo. Conheces alguns nomes contemporâneos das cenas musicais de Portugal e Cabo Verde? Ou eles não chegam à Dinamarca [risos]?

Sim. Eu conheço alguns. Não é do mesmo género [risos], mas conheces o Deejay Telio? 

Claro!

Eu amo o Deejay Telio [risos]. Ele é tão fixe. 

Como é que chegaste ao Telio?

Eu fui a Cabo Verde para visitar o meu pai e o “Com Licença” estava a tocar. E eu fiquei, “o que é isto?!” [risos]. 

Bem, é muito curioso dizeres-me isso porque estava a ouvir uma música do Sensational, a “Busy“, e a maneira como começa remeteu-me para a “Com Licença”… 

A sério? [risos] Isso é muito fixe. Não conheço muitos [artistas portugueses e cabo-verdianos], mas cada vez que vou a casa do meu pai eu tento descobrir quem está aí a surgir [risos]. Quando vou lá, ele leva-me a espectáculos ao vivo com artistas locais. É definitivamente difícil acompanhar quando estou aqui [risos]. Já tenho de acompanhar o que se passa na música dinamarquesa…



Agora que mencionas a música que se faz na Dinamarca, diz-me uma coisa: as pessoas daí captaram logo aquilo que tu fazias?

Não…

Tiveste de ter sucesso fora de portas primeiro?

Sim, tive que ter sucesso fora antes. E espera! Quando dei concertos em Londres, por exemplo, pessoas dinamarquesas iam e diziam-me: “os meus amigos ingleses falaram-me de ti e agora descubro que és dinamarquesa!”

A cena musical dinamarquesa é mais pequena, claro, somos cinco milhões de pessoas, por isso há música pop e música alternativa. A minha está no meio. Acho que as pessoas no início estavam do tipo, “hum, não é radiofriendly mas também não é bem avant-garde, onde é que a arrumamos?” [risos]

E canta-se mais em dinamarquês ou em inglês no circuito mais popular?

Nas rádios mais populares ouve-se mais dinamarquês, mas também há algumas metade em inglês, metade em dinamarquês. E agora eles tocam as minhas canções em algumas estações de rádio. Não é como se me reconhecessem nas ruas [risos], ou algo do género-

Ah, sim, eu vi que tinhas recebido um “prestigiado prémio” atribuído pela família real dinamarquesa

Isso foi uma loucura. As pessoas ficaram do tipo, “quem é esta?” [risos] Foi uma honra. Eu recebi uma chamada e disseram-me, “a família real quer dar-te um prémio”. E eu fiquei, “isto é uma piada? Parem, por favor” [risos] Foi tão estranho. Eu nunca tinha estado na televisão-

Foram várias primeiras vezes, então.

Sim, várias. Conhecer a família real… oh meu Deus. A Dinamarca é um país tão pequeno e os membros da família real são as nossas celebridades. Quando tinha 14 anos, eu vi o casamento do Príncipe Frederik com a Princesa Mary na televisão com todos os meus amigos. Ela é da Austrália, eles conheceram-se lá, foram feitos filmes sobre eles e [grita entusiasmadamente]. Mas, ao mesmo tempo, eu estava consciente de que iria estar na televisão à frente de toda a Dinamarca. E de grupos de pessoas dinamarquesas a que, numa situação normal, nunca mais chegaria novamente. E, por isso, o meu discurso foi sobre ser uma imigrante na Dinamarca e de como é difícil obter cidadania. De como quando tens sucesso passas a ser automaticamente dinamarquês, mas quando não tens passa a ser muito difícil para ti… e já não és dinamarquês. Falei sobre aceitar as pessoas mesmo quando elas não estão nos jornais por terem sido bem-sucedidas em algo. 



Vamos falar um pouco sobre o Sensational. Quando ouvi o álbum, lá para a segunda ou terceira audição, comecei a pensar que tinhas dominado, de certa forma, a arte da entrega no estilo deadpan. As pessoas associam isso mais a comédia, mas eu vejo muito disso na forma como tu entregas as tuas histórias nalgumas canções. Há uma intenção tua para ter esse tipo de fina ironia ou estou a ver algo que não está lá?

Sim, é intencional. É a minha maneira de dizer coisas muito importantes, ou emocionalmente pesadas, para mim. Eu lido com isso através de humor. E também para não me levar muito a sério. Eu acho que comecei a escrever canções que eram bastante… em dinamarquês diz-se: “eu quis inventar a taça” [“i wanted to invent the bowl”]. Eu queria fazer algo que surpreendesse o mundo [risos]. Algo tão profundo que as pessoas ficassem, “o que se está a passar?” Aquela pressão de criar algo tão inovador que… eu tive de deixar isso para trás. E começar a criar aquilo que fosse mais verdadeiro para mim. Eu, quando falo com os meus amigos, sou bastante irónica, por isso é natural para mim ser assim. Mas tem de de existir um equilíbrio porque de repente pode ficar demasiado engraçado. E depois fica, “tu não levas nada a sério, Erika” [risos]. Mas levo muito com isso: “isto é para ser engraçado ou não…?” Sim, é, mas até a um certo ponto. 

Uma das linhas que gosto mais é “Versace this, Versace that/ Dior, Dior, you already said that”. Numa realidade alternativa, isto podia ser uma diss aos Migos e ao Pop Smoke [risos], tendo em conta que faz referências a duas grandes canções das duas partes. 

[Risos] Não é nada disso. Na verdade foi muito concreto: conheci uma pessoa que estava sempre a falar de marcas e eu cansei-me logo. Eu amo a “Dior” do Pop Smoke. Quando ouvi pela primeira vez, eu fiquei, “o que é isto, que loucura”. Mas eu disse isso porque tem de existir um balanço. É fixe ouvir canções sobre ter-se arranjado as unhas e o cabelo ou de se estar vestido com aquelas marcas, consumismo, consumismo, mas também é fixe ter uma canção em que se diz, “ok, chega disso, relaxa, vamos falar doutra coisa qualquer” [risos]. No entanto, eu tenho sentimentos mistos sobre essa canção porque tenho medo que as pessoas… eu também amo moda, vestir-me bem. Não tenho nenhum problema com marcas.

É mais sobre as pessoas que falam demasiado sobre marcas do que sobre as marcas em si. 

Mesmo que seja “Versace this, Versace that”, eu quero ter à mesma o feeling que a Madonna tinha na “Vogue” [risos].

Na noite passada estava a ouvir mais uma vez as remisturas do Sensational e estava a pensar na lógica que usaste para escolher quem remisturou. É uma maneira de tu testares uma ligação com esses artistas? Ou apenas gostas mesmo muito das pessoas que escolheste? Ou ambos…

A ideia foi: eu adoro remisturas. A ideia de alguém reinterpretar as minhas canções pareceu-me divertida. E depois quis ter o máximos de artistas diferentes, falando de géneros. O DJ G2G, por exemplo, faz techno super rápido. Ele tinha feito uma remistura não-oficial da “What U Wanna Do?”, que ficou muito fixe, por isso achei que fazia sentido atirar-se à “Busy”. Fazia muito sentido para mim por causa do título. E depois pensei em alguém como a Eartheater, de um universo diferente do meu, mas eu amo a música dela e o que ela faz por isso quis ver o que isso ia dar. As minhas amigas Smerz também estão lá — eu adoro o que elas fazem. Não é necessariamente uma maneira de dizer que devíamos trabalhar juntos, é mais uma forma de partilhar a minha música com eles, mas sem dizer para irmos para estúdio. Pode ser que um dia sim, mas não há essa intenção. Eu só quis ver como corria. E correu muito bem. Eu amo a remistura que o Nick León fez para a “Friendly”. É completamente diferente, mas ainda é a mesma música. 

Eu perguntei isto porque, na verdade, não tens muitos featurings. Imaginei que pudesse ser uma forma de testar essas águas e ligares-te de alguma forma.

E é, definitivamente. Eu não tenho featurings nos meus dois álbuns e apenas trabalho com o Natal — no Essentials também trabalho com outros dois compositores. Mas é um espaço muito fechado, de certa forma. E eu não sou nada fechada. Mas quero manter a música como um espaço sagrado. 

Eu gosto muito da versão da Isabella Lovestory. Não a conhecia, por isso obrigado. E fiquei a pensar, “agora se calhar quero ouvir uma colaboração da Erika de Casier com a Kali Uchis”. 

Cool. Isso seria fixe. Estou aberta a colaborações, mas tem de ser na vibe certa. Na verdade, eu estou a fazer uma faixa colaborativa, sobre a qual não vou dizer nada, mas que vai sair em breve. 

E tu ainda não compuseste nem produziste para outras pessoas, pois não? 

Não. Eu fiz a remistura para a Dua Lipa [risos]-

Sim. Mas gostarias de fazer mais isso? Na minha cabeça faria todo o sentido que isso já estivesse a acontecer.

Oh yeah. Neste momento, eu também sou uma performer e isso tira-me muito tempo para poder produzir para outros, mas quero mesmo fazê-lo. É que às vezes faço coisas e fico “ah, é fixe, mas não é para mim”. E adoraria de dar isso a outra pessoa. Surpreendentemente, ninguém me convidou para fazê-lo [risos]. Não é surpreendente, mas sabes o que quero dizer. Lá chegarei. E quando penso no meu futuro, para aí com 60 anos, vejo-me num estúdio incrível a fazer isso e a pintar, por alguma razão. A viver esse estilo de vida boémio [risos]. 

Bem, e como tem sido este regresso aos palcos depois de anos mais complicados?

Eu adorei porque as minhas expectativas estavam tão baixas antes de ir [risos]. Esperava que a tour nos Estados Unidos da América… que foi fantástica, com concertos esgotados, uma experiência fantástica, mas uma parte de mim estava do tipo, “quando é que vai ser cancelado?” [risos] Quando a pandemia começou e os meus espectáculos foram cancelados, eu fiquei do tipo, “nãoooooooooo”. Agora é do género, “oh, aconteceu”. É como se fosse um presente [risos]. Mas apreciei muito mais, definitivamente. E agora quando vou tenha uma exigência de, pelo menos em alguns sítios, ficar mais do que um dia para ver onde estou. E eu prefiro sempre andar de comboio, se puder, ou de carro. Quero ver a estrada. Nos Estados Unidos só voámos da costa este para a costa oeste — o resto foi de carro. Foi tão fixe. 

Vais fazer isso em Portugal?

Sim, definitivamente. E estou ansiosa para tocar novamente. E com a banda completa. Nos Estados Unidos viajámos só com o Jonathan, o baterista. E agora vou eu, o Jonathan J. Ludvigsen também, um teclista e um guitarrista. No final dos ensaios, a sensação que tive foi tão melhor. É tão diferente quando é tocado e não uma backtrack


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