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Ilustração: Insónias em Carvão
Publicado a: 07/07/2020

Um dos nomes incontornáveis quando a conversa gira à volta de música no cinema.

Ennio Morricone, o compositor que inventou o que já existia

Ilustração: Insónias em Carvão
Publicado a: 07/07/2020

Na cultura, sempre encontrámos grandes figuras que transcenderam o seu meio. Há estrelas que possuem um brilho tão intenso, que a sua luminosidade ultrapassa os limites dos sistemas a que pertencem, chegando a mais pontos do universo. Ennio Morricone, que morreu ontem, aos 91 anos, foi, sem sombra de dúvida, um nome que transcendeu o seu meio de origem, a música, envolvendo-se por via do cinema na cultura à escala global.

Nascido a 10 de Novembro de 1928, em Roma, o maestro já tinha a música inscrita no seu ADN: o seu pai era trompetista. Cedo foi ensinado a ler música e a compor, técnicas que desenvolveu posteriormente, aos 12 anos, quando ingressou na Academia de Santa Cecília para estudar o mesmo instrumento do seu progenitor. Começou a criar cedo, também, mas os seus primeiros passos, num contexto mais profissional, deram-se nos anos 50 a trabalhar em teatro e na rádio (RCA), fazendo arranjos. Il Federale foi o primeiro filme em que foi creditado, como compositor, no entanto, à data já tinha trabalhado como ghostwriter.

É já nos anos 60 que começa a colaborar com o seu parceiro mais marcante, Sergio Leone, com o qual desenvolveria um estilo cinematográfico conhecido como spaghetti western, cunho que consideraria redutor para referir o trabalho extenso do duo. Como é várias vezes mencionado, o duo equipara-se em termos de dinâmica de trabalho e sintonia criativa a Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann ou Steven Spielberg e John Williams e, procurando um paralelismo mais próximo, podíamos ainda juntar a essa lista de cúmplices eficazes no grande ecrã os parceiros Christopher Nolan e Hans Zimmer.

Encapsular mais de 60 anos de carreira de Ennio Morricone numa série de parágrafos é verdadeiramente injusto – ou antes, ineficaz e inócuo. Basta navegar pelo seu catálogo numa plataforma digital como o Spotify, e perceber o tempo de scroll-down que é necessário para consultar toda a sua discografia. Há artistas que têm direito a uma ou duas compilações de Greatest Hits, Best Ofs ou semelhantes, mas com o compositor italiano é uma missão mastodôntica. O compositor, que não acreditava na inspiração, chegou a escrever mais de 20 obras num ano, mas considerava-se um “desempregado” quando em comparação com mestres da música clássica como Mozart, Bach ou Palestrina. No entanto, basta olharmos em retrospectiva: desde obras suas até bandas-sonoras, da composição para músicos pop até mesmo ao trabalho mais experimental com o Gruppo Di Improvvisazione Nuova Consonanza, a sua produção vasta não só navegou entre vários estilos, terrenos ou mundos musicais, como os aliou e criou uma linha só sua.

E o seu universo tem tanto de erudito como de popular. Não por acaso, a sua relevância e abrangência é parte do debate que até hoje existe em contexto académico sobre estas classificações tão arcaicas como arte “alta” e “baixa”; a arte da elite e a do povo. O clássico, orquestral, sinfónico ou operático; e o pop, o folk, o rock e o jazz. A música para cinema tem sido um elemento fulcral para o derrubar destas noções, com base no consumo mediático da produção de Hollywood e no encontro de técnicas e estilos que acontece na sonorização da imagem. Morricone foi uma das principais figuras para o cinema, não só pela composição de melodias tão marcantes e de belíssimas peças orquestrais, mas também por ter esculpido novíssimos e mais excitantes horizontes (tímbricos e estilísticos) que aqueles que marcavam a Sétima Arte até então. Esbateu os limites do diegético e não-diegético da música no cinema, por fazer mesmo esquecer o que é parte ou não dos filmes, dada a profundidade e imersão com que se inseria na narrativa.

É ineficaz tentar classificá-lo, mas não deixa de ser interessante olhar para as técnicas que usou em vida, como o uso de instrumentos menos comuns e a voz da mulher como parte da orquestra. Por exemplo, o tema de Sacco and Vanzetti é uma demonstração clarividente de como o compositor saltava de estilo em estilo nos seus arranjos, aglutinando influências, técnicas e um tacto para a composição melódica sem igual. O som do trompete, presente desde muito cedo na sua vida, certamente terá influenciado muito do seu trabalho: a presença central de instrumentos de sopro sente-se em alguns dos seus grandes temas, seja por oboés, trompetes, harmónicas ou ocarinas. Apesar de não compor ao piano, preferindo escrever directamente para a pauta, com lápis e papel, o seu trabalho com o instrumento é fantástico, nem precisando da imagem para emoldurar a sua música, como em Il Figlio E La Nostalgia ou em “Playing Love” de The Legend of ‘900. Também o modo como projectava suspense e mistério com o brilhante jogo com o silêncio – interrompido por uma melodia numa harmónica, que gradualmente cresce com uma guitarra eléctrica suspensa e uma secção de cordas em staccato –, expresso em Once Upon a Time in the West (na cena do bar), demonstrava uma visão clara de como pretendia incutir a música na narrativa. Citando o realizador inglês Edgar Wright: “Ele podia tornar um filme mediano num filme obrigatório, um bom filme em arte e um óptimo filme numa peça lendária”. Tudo isto é verdade, mesmo que Ennio Morricone considerasse o seu trabalho “complementar, mas secundário”.



É na emblemática melodia de “The Ecstasy Of Gold”, do final de The Good, The Bad and The Ugly – a percorrer vários naipes, iniciando no oboé, passando pela soprano, por cordas, pelos imperiais e épicos metais e ainda pelo coro – que vemos o seu legado mais marcante na cultura “popular”. Foi aí que Morricone se tornou maior que aquilo que representava enquanto compositor. A mítica figura compôs melodias que se entoam em salas de cinema por amantes de westerns pelo mundo fora, mas também pelos miúdos de baquetas e palhetas nas mãos, que carregam as guitarras, amplificadores e conjuntos de baterias, que se deixaram influenciar pela maior banda de metal de sempre. Miúdos que tocam em garagens, a tentar imitar os Metallica, banda que cedo na carreira começou a usar o mesmo tema para iniciar todos os concertos. Por esses miúdos, mas também, e por outro lado, pelos hip hop heads que cantaram “Blueprint 2” de JAY-Z quando o rapper samplou a mesma melodia.

Em 2007 disse que as bandas-sonoras de westerns eram apenas 8% daquilo que tinha criado. Embora custe a acreditar, dado o quão emblemáticas se tornaram as suas composições para esse estilo da Sétima Arte, a sua produção foi bastante mais expansiva e variada e isso fez-se notar. Por exemplo, o seu envolvimento com o Gruppo Di Improvvisazione Nuova Consonanza desde 1964 – que, embora estivesse mais ligado a uma visão menos tecnológica e mais jazzística e composicional deste meio, ombreava com outros grupos de pesquisa na tecnologia do som e da composição experimental da época, tais como o Groupe de Recherches Musicales e o IRCAM em França, o Studio di fonologia musicale di Radio Milano em Itália e o Studio für elektronische Musik des Westdeutschen Rundfunks na Alemanha –, fê-lo abordar os timbres de uma maneira também mais abrangente, pelo uso sistemático de sons comuns (materiais, humanos, animalescos), mergulhando assim mais profundamente nas histórias que eram contadas por via da imagem e do som. Sergio Leone afirmou: “A música é indispensável, porque os meus filmes podiam praticamente ser mudos, o diálogo interessa relativamente pouco, e a música sublinha acções e sentimentos mais do que o diálogo”.

Além disso, apesar da carismática e frutífera relação com Leone, a sua composição musicou filmes de gente tão ilustre como John Carpenter (para quem criou um tema soturno baseado num sintetizador, como vanguardista que era), Bernardo Bertolucci, Giuseppe Tornatore, Dario Argento, Brian de Palma, Terrence Malick, Quentin Tarantino (que, antes de The Hateful Eight, já tinha usado peças do italiano em Kill Bill e Inglourious Basterds.

Mas é a sua relevância no mundo do cinema, aliada à presença que teve na música pop italiana, mas também nas produções de Joan Baez, Pet Shop Boys e Sting a que ainda se deve somar o trabalho mais experimental com o Il Gruppo, que fez com que o Maestro (como lhe chamavam) passasse a ser tão influente, tão citado e samplado em contextos mais modernos como os da música de Gorillaz (“Clint Eastwood”), de Radiohead (tendo enriquecido o interesse de Greenwood na composição para filmes), Metallica ou JAY-Z.

O Óscar tardio é uma afirmação de que até ao fim da vida viveu as suas composições e testou cada vez mais possibilidades melódicas e orquestrais, renovando mesmo o seu estilo de compor para um western – nem Tarantino é um realizador de estilo estanque, nem o é o compositor italiano, mesmo que na altura que fez The Hateful Eight, caminhasse para a sua nona década no planeta Terra, explorando aí um arranjo que se aproximou de contemporâneos da música para cinema, embora sem timbres estranhos a uma orquestra. Foi na harmonia e no desenvolvimento narrativo da música, dinâmico e dramático, que se sentiu um afastamento (intencional) dos seus westerns, tão marcantes na segunda metade do século XX.

Jeff Weiss, reconhecido crítico musical americano, escreveu no Twitter: “Descanse em paz, Ennio Morricone, que não inventou a composição para filmes, mas que obviamente inventou a composição para filmes”. De facto, não inventou este tipo de música, mas é inconcebível olhar para a Sétima Arte e, para como a mesma evoluiu, sem relembrar o mestre italiano. E, com efeito, o jornalista não poderia estar mais certo na sua afirmação. As pegadas de Morricone têm sido estudadas e tem-lhe sido dada a importância de um pioneiro, dada a sua relevância em toda a cultura da música e do cinema. É impossível imaginar o trabalho de Hans Zimmer (que também se desfez em elogios ao mestre na hora da despedida), Alexandre Desplat ou Thomas Newman, sem os feitos de Ennio Morricone, que se entranhou profundamente na história através da sua arte, algo só ao alcance daqueles que merecem ser descritos com a palavra “génio”.


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