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Publicado a: 22/12/2017

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[TEXTO] Diogo Pereira 

Todos os álbuns de Eminem devem ser lidos a partir dos seus títulos. Com The Slim Shady LP, apresentou o seu alter-ego Slim Shady ao mundo, sádico e descontrolado, o Edward Hyde do seu Henry Jekyll; com The Marshall Mathers LP revelou o seu lado mais maduro e pessoal, que continuou a explorar em The Eminem Show, o mais inteligente, político e mordaz dos seus álbuns.

Eminem transformou a sua vida pessoal num espetáculo circense desde cedo, e a partir de um certo momento ficou tarde demais para voltar atrás.

Se Relapse, que marcou o regresso momentâneo de Slim Shady e o seu horrorcore, era sobre a sua toxicodependência, e Recovery assinalou a sua recuperação e retorno à ribalta, imbuídos de positivismo e esperança, Revival, ao contrário do que o nome indica, não é um concept album. Não há um tema ou tom unificadores ao álbum inteiro. Pode dizer-se que é mais sobre Marshall Mathers, que, como sempre, não tem pudor em discutir as suas inseguranças em praça pública, algo que faz logo desde o início em “Walk On Water”, dueto com Beyoncé.

 



Revival é um álbum de pop rap inegavelmente inserido na segunda dinastia da obra de Eminem, que começou com Recovery em 2010, após os fracassos de Encore e Relapse (longe vão os tempos de Slim Shady e da sua violência cartoonesca e divertida), e que assenta numa combinação entre baladas piegas e refrões grandiosos que contrastam com letras que acusam a violência e a fúria que sempre o alimentaram, embora mais afastadas das tonalidades hardcore e horrorcore da sua fase pré-Recovery.

Em Recovery, Eminem mostrou que era mais maduro; com The Marshall Mathers LP 2, mostrou que lá no fundo ainda era o mesmo de sempre, “shithead with a potty mouth”. Revival parece uma mistura dos dois, embora seja mais semelhante ao anterior, sobretudo no peso emocional. Se Recovery foi um statement artístico sobre o seu regresso ao trono do rap, depois de uma overdose que quase o matou, e de dois álbuns mal recebidos, e o reconciliar com o passado, Revival, nos seus melhores momentos, é a confirmação desse statement, revelando um artista que continua a querer ser uma estrela pop enquanto nos lembra porque é um dos melhores rappers de todos os tempos. Em parte alma torturada que merece a nossa simpatia, em parte controverso polemista que merece a nossa condenação. Tem os mesmos refrões e o mesmo star power. Mas nenhum é tão memorável e bem feito, por isso parece uma sequela pobre.

A história do nono álbum de Eminem começa em Outubro, com um freestyle anti-Donald Trump nos Prémios de Hip-Hop da BET de 2017, intitulado “The Storm”, que rapidamente se tornou viral. E já estava cheio de punchlines, entregues numa voz séria e intimidante, como sempre nos habituou:

“Trump, when it comes to giving a shit, you’re stingy as I am
Except when it comes to having the balls to go against me, you hide ‘em
‘Cause you don’t got the fucking nuts like an empty asylum
That’s why he keeps screamin’ ‘Drain the swamp’
‘Cause he’s in quicksand”

 


 


Eminem não estava para brincadeiras (“Fuck walking on eggshells, I came to stomp”), e no entanto, Revival não é um álbum político (apenas duas faixas, “Untouchable” e “Like Home”, contêm diatribes anti-Trump). Por isso, além do título, a capa, que mostra Eminem cabisbaixo, de mão a esconder o rosto, sob o fundo diáfano da bandeira americana, é também um red herring.

Como o resto da sua discografia, é mais sobre ele que tudo o resto, e, nesse aspeto, é um típico álbum de Eminem, com todas as suas virtudes e defeitos: egocêntrico, inflamado, furioso. Honesto, amargo, doloroso. Íntimo e pessoal. Todos os álbuns de Eminem revelam uma certa imaturidade, ao atirar as culpas para os outros (o seu pai ausente, a sua mãe toxicómana, a sua ex-mulher promíscua), e este não é diferente.

Embora promovido como um falso fármaco, à semelhança de Relapse, não são as drogas que dominam a temática do álbum, mas sim as relações humanas, e a sua vida pessoal.

O single “Walk on Water”, com Beyoncé, que abre o álbum, marca o tom que nos acompanhará até ao fim: amargo, Eminem olha para trás num gesto de auto-censura, quase a sucumbir ao peso de um passado difícil de suportar.

Que dizer sobre a produção? Dr. Dre, o suspeito do costume, continua no papel de produtor executivo e Rick Rubin regressa para repetir colaborações anteriores. Infelizmente, em vez das batidas pesadas, intensas e musculares que serviam de lenha ao flow ardente, imparável e lunático de Eminem nos primeiros álbuns, o que se ouve aqui é bem diferente, para pior.

Revival continua as produções polidas, megalómanas e a fusão rap-rock de Recovery, o seu álbum mais pop e mainstream até à data, com ritmos de arena que parecem sair mais das mãos de um baterista de hard rock do que de uma MPC, e muitos riffs de guitarra eléctrica.

As afinidades com Recovery continuam na escolha de samples, que reflectem o tal fascínio com rock clássico que também se ouviu em The Marshall Mathers LP2: tal como “Going Through Changes” usou “Changes” de Black Sabbath, e “Rhyme or Reason” serviu-se de “Time of the Season” dos Zombies, aqui sampla “I Love Rock N Roll” de Joan Jett & The Blackhearts e “Zombie” dos Cranberries. Para isso, convidou Rick Rubin, que substitui o g-funk de Dr. Dre, com os seus baixos líquidos e loops de teclado, por riffs épicos de guitarra eléctrica, que em certos momentos faz parecer este mais um álbum de Beastie Boys do que um disco lançado em 2017. Todos os álbuns de Eminem sempre tiveram algo de épico, nos refrões, nas sensibilidades pop, nos hinos de arena, na voz gritada e furiosa, na sonoridade polida. Por isso, mesmo nas baladas, a produção aposta no épico e põe de parte o subtil.

Evitando o g-funk de Dre, a sonoridade aqui divide-se entre o trap insípido de “Chloraseptic” e “Believe”, as baladas acústicas “Walk on Water” e “River”, e o rap-rock da velha escola de “Untouchable”, “Heat” e “In Your Head” (recuperando o fascínio com o rock clássico de Recovery). A combinação é ecléctica, mas menos impressionante e uniforme que qualquer um dos seus álbuns anteriores. Ora apoiada em samples óbvias de pop-rock (“Zombie” dos Cranberries e “I Love Rock ‘N’ Roll” de Joan Jett & The Blackhearts), minimalismos trap, ou piano acústico, é desinteressante e insípida, e nunca nos chega a surpreender ou estimular, e revela falta de imaginação.

Star power é coisa que não falta neste álbum, com participações de Beyoncé, Alicia Keys, Ed Sheeran e Pink, mas isso não compensa a familiaridade das fórmulas.

Enquanto nos três primeiros álbuns que marcaram a sua parceria com Dr. Dre, as produções pujantes assentavam perfeitamente ao seu flow e ao seu estado de espírito, aqui Eminem parece deslocado, peixe fora de água a tentar carregar instrumentais aos quais não pertence.

Quem também está ausente (embora por vezes nos mostre o seu esgar medonho) é Slim Shady e a sua violência cartoonesca, bem como as suas raízes no horrorcore.

 



Um álbum longo (como todos os outros), talvez até demasiado, com 19 canções e 77 minutos de duração (beneficiaria de um corte tanto na lista de faixas como no tamanho das estrofes), Revival funciona melhor nos hinos de pop rap à Recovery, em que soa alto e bombástico, fundindo os raps irados de Marshall com refrões cantados por estrelas pop, fórmula que sempre dominou e que tem vindo a refinar desde Recovery, que nos números de trap desinspirados e anódinos (“Believe” e “Chloraseptic”). E quando Eminem é honesto e magoado, e nos deixa ver o interior da sua alma, em vez do tamanho do seu ego.

O que Eminem emula aqui é Recovery, o seu álbum gémeo, o seu companion piece. Aliás, se The Marshall Mathers LP2 era uma sequela ao álbum homónimo de 2000, Revival pode ser lido como uma sequela não oficial de Recovery. Aqui, o rapper explora muitos dos mesmos temas e emoções, no mesmo tom de arrependimento.

Recovery abriu com um pedido de desculpa aos fãs pelos dois álbuns anteriores, prometendo nunca mais os desiludir, e uma necessidade de provar aos fãs que ainda estava no topo. “It feels like I just woke up or something/I guess I just forgot who the fuck I was, man”.

Mas se Eminem começou o seu amadurecimento com Recovery (e interrompeu-o com a sequela a The Marshall Mathers LP), Revival mostra-nos que esse crescimento ainda não se completou. Ainda é possível ouvir o mesmo Eminem de sempre, o quarentão que nunca deixou de ser o miúdo que concorria nos freestyles da Hip Hop Shop.

Eminem experimenta muito aqui, mas os refrães não têm a qualidade de Recovery ou The Eminem Show, e não há aqui nada de tão memorável e duradouro como “Love The Way You Lie”, “Monster”, “Stan”, “The Way I Am” ou “Lose Yourself”. E não ajuda quando “Framed” aparece vindo do nada, completamente deslocado, na 12ª posição, num throwback ao horrorcore desbragado e homicida de Relapse, que pensávamos ter sido excomungado publicamente pelo próprio.

No entanto, e felizmente para nós, as suas faculdades líricas estão intactas. Como em qualquer álbum de Eminem, este também é tanto sobre o que ele diz como a forma como o diz.

Aliás, todos os álbuns de Eminem, não obstante as sensibilidades pop, têm momentos de exibicionismo em que Eminem prova os seus dotes líricos, para que ninguém se esqueça de onde ele veio e onde começou. E há versos aqui que honram as suas raízes enquanto battle rapper nos open mics de Detroit.

E embora não haja momentos tão carismáticos como “Rap God”,  Eminem continua capaz de cuspir cascatas de rimas polissilábicas, complexas, imprevisíveis e alucinadas, ricas em metáforas, imagens, comparações, aliterações, trocadilhos, homofonias, e demais jogos de palavras e associações linguísticas e semânticas, que urde cuidadosamente em teias densas e detalhadas (“Eight year old with the wordplay/Girl, take this pole like a survey/Today wasn’t my birthday/But I’m caked up like a dessert tray”, “’Cause I’d rather believe a lie/Than to breathe a sigh of relieve I don’t believe in”). E continua capaz de as compactar em espaços pequenos, com fluidez e rapidez (atentem na estrofe final de “Offended” para ouvirem Eminem a bater o recorde de palavras por minuto que bateu em “Rap God”), que revela domínio da língua e vontade de brincar com ela, e de moldar e esticar as palavras até elas fazerem o que ele quer, no mesmo flow lunático e inspirado de sempre.

E, é claro, punchlines, como “But beef will at least cost you your career/’Cause even my cheap shots are overpriced” ou “And I’ma get you jacked up like you’re tryna fix a flat” e “You barely leave your house
‘Cause you’re always stuck at your pad, it’s stationary”. Mas nenhuma delas é verdadeiramente memorável ou citável.

Quanto à sua voz, mantém a mesma fúria adolescente de sempre, mas está notoriamente mais grave e menos nasalada (uma das consequências de entrar na meia idade).

Mas o tom é o mesmo, a mescla única de angústia e frustração com fúria sanguinária a que nos habituou, com momentos em que Eminem parece calmo e controlado, e outros em que ameaça sair das colunas e arrancar-nos as orelhas com os dentes.

E quanto a personas, quem ouvimos aqui é definitivamente mais Eminem e Marshall Mathers do que Slim Shady, que surge, quando muito, em cameos de violência e mau gosto.

Eminem sempre foi uma figura contraditória, e em nenhuma outra canção isso é melhor exemplificado que no single “Walk on Water”, com Beyoncé, em que afirma ser capaz de caminhar na água enquanto deprecia o seu valor dizendo não ser uma figura divina digna de adoração. Ora nega o seu estatuto de vedeta, ora se reafirma como deus do rap. Essa humildade lê-se em versos como:

“It’s true, I’m a Rubik’s—a beautiful mess
At times juvenile, yes, I goof and I jest
A flawed human, I guess
But I’m doin’ my best to not ruin your expectations”

Que atestam a sua humildade, apenas para serem seguidos por:

“But when I do fall from these heights though, I’ll be fine
I won’t pout or cry or spiral down or whine
But I’ll decide if it’s my final bow this time around”

Reiterando com:

“’Cause I’m just a man
But as long as I got a mic, I’m godlike
So me and you are not alike
Bitch, I wrote ‘Stan’”

 


O Eminem que ouvimos aqui é por vezes um adulto, de consciência pesada e espírito toldado pelo peso das expectativas (“Why are expectations so high? Is it the bar I set?/ It’s the curse of the standard
That the first of the Mathers discs set/ Will this step just be another misstep
To tarnish whatever the legacy, love or respect I’ve garnered?”, confessa em “Walk on Water”), a tentar manter-se no topo num mundo e numa indústria a mudar à sua volta, desesperado por se provar a si mesmo e aos fãs. Mas essa maturidade é cortada pelas tácticas de choque barato e o mau gosto de faixas como o trap insípido de “Chloraseptic” (“Prostitute, just climb in the Humvee and let’s ride/ Girl, you know you got the prettiest eyes/But all you’re getting is bribe”), o horrorcore de “Framed” (“Cut my public defender’s jugular then stuck him up in a blender/ Another dismembered toddler discovered this winter”) e o refrão infantil de “Offended”, deixando-nos a pensar se ele realmente cresceu.

Mas o remorso continua bem presente (Marshall passa boa parte do álbum a pedir desculpas pelo passado e a justificar-se), como em “Bad Husband”, que nos mostra desta vez Eminem a pedir desculpas públicas a Kim (“You were the beat I loved with a writer’s block”), depois de o ter feito à sua mãe em “Headlights” (com tanto arrependimento, ficamos a pensar a quem Eminem pedirá desculpas no próximo álbum. Talvez todas as figuras públicas que ofendeu no passado? Christopher Reeve? Michael J. Fox?), ou em “In Your Head”, em que se lamenta de tudo desde envolver a sua filha nas suas letras ou não saber separar a vida real da ficção.

De fora ficaram os skits (que agora dão lugar a interlúdios), mas ainda surgem instâncias de humor barato dos seus tempos de Slim Shady (“I’m lookin’ at your tight rear like a sightseer/Your booty is heavy duty like diarrhea”).

A sua vontade de se manter actualizado, experimentando novos tons e sonoridades é de louvar, mas produz resultados mistos: Eminem funciona melhor em baladas (“Walk on Water”, “River”) que nas experiências embaraçosas com o trap (“Believe”, Chloraseptic”), em que soa deslocado. E esse ecletismo deixa-nos à toa, sem saber onde Eminem quer chegar num álbum que se chama Revival, e que é demasiado familiar para indicar reinvenção, e demasiado experimental para acusar estagnação.

De que fala, afinal, este novo capítulo da vida de Marshall Mathers? Todos os álbuns de Eminem são imbuídos de um sentimento de retrospectiva, e este não é diferente.

Eminem ainda é o mesmo? A resposta não é tão simples como parece. Em certos aspectos sim: a fúria, o talento lírico, o sentido de humor, o mau gosto. Noutros, acusa a chegada da meia idade: o remorso, a crítica social, as preocupações políticas, denunciadas pela bandeira americana que orna a capa. Na verdade, as diatribes anti-Trump não são assim tão diferentes do sentimento anti-Bush em “Mosh”, e o rapper de Detroit está longe de ter esquecido Kim, o amor da sua vida (à falta de melhor termo).

Mas tudo isto é familiar. Em “Not Afraid” prometeu-nos “No more drama from now on”, mas Marshall nunca deixou de ser Marshall, e quebrou essa promessa, porque o que não falta aqui é drama. Marshall foi sempre aberto com o público, e sempre falou sobre a sua vida privada nas suas canções, expondo as suas inseguranças e vulnerabilidades, sempre na fronteira da loucura.

Expor a sua vida privada e lavar a roupa suja em público sempre foi o modus operandi de Marshall Mathers, e aqui não desilude: o rapper continua a minar a sua psique conturbada como fonte emocional e intelectual para as suas letras. E está a falar dos mesmos problemas que sempre o atormentaram, sobretudo nos últimos dez anos: a morte de Proof, seu melhor amigo e companheiro de armas, a relação difícil com a ex-mulher e a mãe, a atracão por mulheres doidas, o início de carreira turbulento, a toxicodependência. Os demónios e os fantasmas são os mesmos. A mesma fúria na sua voz nasalada (é incrível como a sua voz, embora ligeiramente mais grave, não mudou significativamente ao longo de tantos anos), a mesma violência nas suas letras, a mesma palpável atitude de confronto para com o ouvinte.

Se há dicotomia que caracteriza este álbum, como, aliás, no resto da sua obra, é o da insegurança/confiança. Se em “Walk on Water” nos confessa francamente as suas falhas, na segunda faixa, “Believe”, dá uma volta de 180º e afirma os seus dotes líricos por cima de uma batida trap. Nada de novo, portanto.

 



Nos momentos onde vai atrás do governo e da polícia (no festival de estereótipos que é “Untouchable”, e no chauvinismo foleiro de “Like Home”), fá-lo de modo óbvio (como chamar nazi a Trump), sem acrescentar nada de relevante, reiterando clichés sem a sátira inteligente e mordaz de um filme de Spike Lee. E, como sugeriu Matthew Ismael Ruiz da Pitchfork, há qualquer coisa de estranho num artista obscenamente rico e famoso que passou boa parte da sua carreira a responder a acusações de homofobia e misoginia criticar o 45º Presidente dos Estados Unidos.

 



A subtileza nunca foi o forte de Eminem, e o seu sentido de humor continua tão juvenil como sempre foi, embora não haja nada de tão foleiro e baixo como “Puke”, nem as presenças habituais de Paul Rosenberg e Steve Berman nos habituais skits.

Tal como em Encore, Eminem soa aqui cansativo e irrelevante, a esgotar as suas fórmulas e os seus problemas, a descansar à sombra da palmeira, e viver à custa do seu sucesso e do seu passado. Uma das notórias ausências do álbum é a sua sátira mordaz, que tão bem funcionou a seu favor, e que assumiu papel preponderante nos seus primeiros álbuns, e agora não se ouve em nenhuma faixa. Há momentos de crítica social e política, mas não têm o peso e a relevância de “Mosh”, “White America” ou “The Way I Am”.

Felizmente há momentos leves e humorísticos, para aligeirar as coisas, como “Remind Me”, “Heat” e “Offended”. Mas nunca ouvimos o humor negro e cartoonesco de Slim Shady, que parece aqui nada mais que um fantasma do passado.

 



Por isso, pese embora todas as suas experiências, tudo isto sabe a pouco.

Revival é alimentado pela fúria e, como disse Matthew Ismael Ruiz na crítica supracitada, pela dúvida. O álbum termina em tom confessional (o mesmo de “Stan” e “Lose Yourself”), com dois momentos introspectivos, “Castle” e “Arose”, duas canções melodramáticas sobre ajustar contas com o passado, incluindo a sua overdose quase mortal em 2007 e a morte do melhor amigo Proof. A penúltima abre com dois versos que servem de metáfora apropriada ao estado em que Eminem se encontra e o papel de Revival nele: “I built this castle/Now we are trapped on the throne”. Eminem construiu o seu castelo a partir de areia, graças a muitos anos de batalha, e agora está preso no seu trono, vítima do seu próprio sucesso, e das enormes expectativas a que não consegue corresponder. Já não precisa de ser interessante, como nos tempos difíceis que levaram à criação do alter-ego Slim Shady.

Tempos houve em que Eminem foi uma figura fascinante da música e da cultura popular. Conhecíamos as suas relações e os seus problemas. Os seus ódios de estimação, os seus beefs, a sua relação turbulenta com a mãe toxicómana e a esposa promíscua, a sua infância difícil, o seu temperamento irascível, a influência nefasta sob a juventude americana, as suas raízes pobres, a sua luta inexpugnável até ao topo. Controverso polemista, a América – e o mundo – davam-lhe ouvidos. Depois veio a tragédia, e as nuvens negras abateram-se sobre ele, trazendo a morte do seu melhor amigo e uma dependência em ansiolíticos que quase lhe custou a vida. Algures no meio, a sua música deixou de ser sobre mostrar o seu talento criativo ao universo, e transformou-se num exercício de auto-comiseração destinado a esgotar a paciência de todos menos os fãs mais fiéis. Os tempos áureos acabaram, e a música de Eminem, que tem vindo a descer desde The Eminem Show, o seu último grande álbum, nunca mais recuperou e já não tem a urgência que tinha no início do milénio. Quando não está a queixar-se da sua mãe e a lamentar-se do passado pela enésima vez, está a ofender Donald Trump, o mais fácil dos alvos.

Na verdade, Eminem não precisa de um Revival – já deixou a sua marca na indústria musical, assegurou o seu nome no Hall of Fame do Hip-Hop e o seu legado na história da música, mostrando o seu talento ao longo de uma carreira longa, ilustre e celebrada, que conta com três clássicos e um regresso aplaudido – mas caso precisasse, não seria este, certamente. Quando muito, e ironicamente, este Revival torna necessário um Revival dele mesmo. Estará ele cansado, depois de tantos anos a lutar? Não terá mais nada de relevante a partilhar?

Poder-se-ia dizer que o rapper de Detroit passou por um renascimento, se ouvíssemos algo de verdadeiramente diferente nas letras, na métrica, na voz e na música. Mas tudo é demasiado gasto.

O problema é que Mathers já não tem mais truques novos na manga, não se está a reinventar e tudo o que ouvimos aqui é familiar, desde a sua tendência para a auto-depreciação, a sua irascibilidade e megalomania e o seu sentido de humor de gosto dúbio.

O que faz Revival destinado a dois tipos de pessoas: os fãs viciados que têm de ouvir tudo o que o homem já fez, e os que não conhecem o seu passado e não darão importância a acusações de familiaridade.

Eminem não perdeu o seu talento (nunca o perdeu, em verdade), e por isso vale a pena ouvir Revival por pequenos momentos (como disse Stephen Thomas Erlewine, é empolgante intermitentemente), mas não tem o impacto que os seus outros discos tiveram.

O nono capítulo na discografia de Eminem não acrescenta nada de novo, e as suas referências sociopolíticas e culturais acabam por datá-lo, à semelhança de todos os outros. O óbvio ataque à administração Trump não é nada que já não tenha dito (já o havia feito a Bush em “Mosh”), bem como o ajuste de contas com o passado. Não tem o peso e a importância de The Eminem Show, The Marshall Mathers LP ou Recovery.

Embora tenha algo para todos os gostos, desde canções de amor a singles pop e músicas de festa, é demasiado ecléctico e disperso nos seus conteúdos, nas temáticas que aborda, nos estilos, estéticas e períodos da música que evoca, o que acaba por o prejudicar. Eminem, com 45 anos, é um homem a aprender a lidar com a meia idade e envelhecer graciosamente no rap (o que significa elevadas doses de remorso, e muitas baladas de piano), mas falha aqui, porque não consegue desprender-se do passado e reinventar-se, nem permanecer inteiramente fiel ao que sempre foi.

O problema é que ao fim de oito álbuns, Eminem já não parece ter nada de novo a dizer, e por isso esconde-se atrás do verniz da pop.

O nono álbum de Eminem acrescenta algo à sua carreira longa e ilustre? Musicalmente, pouco. Lírica e emocionalmente, nada.

Tudo isto deixa-nos com uma colecção de músicas executadas com competência, mas sem brilho. O que temos aqui é uma combinação solta de baladas, hinos patrióticos, humor brejeiro, namoros com o trap, canções de amor tingidas de violência, sobre relações tóxicas baseadas em dependência, abuso, infidelidade e complexos de Édipo, e uma geral abordagem de fazer psicanálise em público que era interessante há quinze anos e cinco álbuns atrás, mas agora nem por isso.

Em parte reciclagem de fórmulas antigas, em parte experimentalismo oco, este Revival, de título enganador, não é o renascimento apregoado.

Quem procura algo de novo aqui (designadamente o tal renascimento de que fala o título), ou para quem procura a confirmação de uma estética que trouxe fama e respeito a um artista, ficará inevitavelmente desiludido com este rehash em novas roupagens de Recovery. No entanto, para quem procura uma reiteração das fórmulas da sua discografia mais recente, e não seja muito exigente, encontrará aqui o que precisa.

Há aqui traços de quem Eminem já foi, do brilhante compositor e rapper que provou ser, ao longo de uma extensa e respeitada carreira, mas são apenas isso: traços. Por isso a óbvia pergunta, colocada por Vasco Mendonça do Observador, “Será Eminem ainda o deus do rap?” tem uma única resposta: na verdade, continuará sempre a sê-lo, mas não será certamente graças a este álbum.

De The Slim Shady LP a The Eminem Show, Marshall Mathers apresentou-se ao mundo. Em Encore e Relapse desiludiu-nos. Em Recovery e The Marshall Mathers LP2 voltou a cair nas nossas graças. Talvez Revival esteja para os últimos dois álbuns como Encore está para os primeiros três: uma desilusão. E tal como Encore levou a um hiato de cinco anos, talvez seja preciso um novo hiato até Eminem surgir de novo e se reinventar e tornar relevante outra vez. Este não é, lamentavelmente, o renascimento de que precisávamos e estávamos à espera.

Por isso, ficará fatalmente preso em 2017 e será lembrado como uma tentativa falhada de injectar novidade na obra de um artista que se encontra em processo de reinvenção mas ainda não descobriu como fazê-lo.

 


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