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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/12/2023

Estreia-se em Portugal um mito da canção independente galega.

Emilio José: “Toda a música é fascinante”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/12/2023

Em 2023, ser espectador tornou-se um trabalho a tempo parcial: engoliu-nos uma vaga de filmes “ridiculamente longos”, por vontade e autoridade de quem os realiza (o último de Scorsese, por exemplo, a rondar as três horas e meia de duração). Se esta epidemia é recém-chegada ao mundo do cinema, há mais tempo que se observa nas principais avenidas da música pop (menos propícia a hemorróidas). Aconteceu primeiro nos anos 90, quando o vinil se deixou canibalizar pelo CD, trocando a pepita jeitosinha de 40 minutos por um cartapácio de uma hora e picos. De 2016 em diante, fez-se sentir de novo, com o impulso do hip hop, da crescente agilidade de produção, e da distribuição mais ou menos imediata via streaming. De um lado, independência e desburocratização; de outro, a equação capitalista que equivale mais faixas não necessariamente a uma purga artística, mas a mais streams, logo mais rendimento.

Mas se o cinema se justifica com uma prerrogativa autoral, os álbuns-calhamaço não recebem o mesmo benefício da dúvida: parece que só podem ser um fenómeno cínico e economicista. Como se explica, então, a obra do músico Emilio José? Agricultura Livre, até agora a sua obra-prima, empilha três discos, 52 canções, menos que 350 mil reproduções no Spotify. Serão só divagações chatas em disfarce experimental? Não: apesar da caricatura do ermitão galego, um ferrete em brasa que Espanha lhe tenta espetar, diz fazer música comercial. Tampouco são esboços arrotados para o gravador do telemóvel (nada contra, até tenho amigues que são). É música de melodia convicta e arranjos burilados, tanto vocais como instrumentais. Ou o refrão ou o coração. Ou o amor à queima-roupa ou a bílis anti-imperialista. Ou o quentinho de um lar construído a quatro mãos ou a imagem de gaivotas a defecar no asfalto. Títulos como “Nova Esquerda Caducifólia“, “Kim Kardashian” ou “Manual de Luta Campesina“. 

Retomando a (pretensiosa) analogia cinematográfica, o Agricultura Livre poderia ser uma tradução musical do clássico (de 288 minutos!) de Jonas Mekas, As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty (2000). Uma coleção de lampejos de beleza capturados enquanto se avança para a frente, neste presente politicamente apocalíptico — como o próprio Emilio José caminha, no teledisco de “Amoras Pretas”, a cantar: “O meu futuro dá-me igual / porque sei que é uma merda”. 

Pop em jeito de arte bruta, talvez, mas sem a condescendência que esse descritor sugere, sem o plano picado, que apequena e desvaloriza algo sincero. Transparente no quanto ama, detesta e gargalha; mais preocupado com a expressão pura do que a afinação imaculada. Faz sentido que seja Maria Reis e a Cafetra Records, coletivo lisboeta cuja ética profissional tem sido não estar aqui com merdas, a trazer Emilio José para a sua primeira digressão em Portugal, este mês de Dezembro, com quatro novas peças semi-improvisadas — uma por concerto. Passa por Santo Tirso já hoje (dia 2, no Carpe Diem), por Lisboa no domingo (dia 3, Matiné Fetra na SMOP), pelo Barreiro na terça (dia 5, Cooperativa Mula) e por Leiria na quarta-feira (dia 6, Habitat).

Aviso à navegação para o público português: poderão deparar-se com uma sensação de estranha familiaridade linguística, que advém não só de Emilio José cantar em galego, mas de o escrever com a ortografia comum aos países lusófonos. Coloca-se assim na tradição do reintegracionismo galego, um movimento que propõe a unidade gráfica da(s) língua(s) galega e portuguesa. Esta escolha, fundamentalmente política, reflete-se também na pronúncia com a que Emilio José canta (mas não com a que fala), que se encontra num lugar intermediário entre os padrões fonéticos galego, português e brasileiro. Querem mais razões? Desimpeçam as vossas agendas e o vosso défice de atenção.



É a tua primeira digressão por Portugal. Entretanto, a viagem a sul do Minho é uma constante na vida quotidiana de milhares de galegues (“viajando a Portugal / como quem vai muito longe”, como cantaste em “Viana do Castelo”, 2017). Como vês a relação entre as cenas musicais dos dois lados da raia? Dada a proximidade cultural e linguística, que tu próprio exploras fonética e ortograficamente nas tuas músicas, que significado tem este primeiro encontro formal com o público português?

Não tenho tanto conhecimento como para falar sobre qualquer cena, mas acho que sempre em todo lugar há pessoas fazendo música, e toda a música é fascinante. O mesmo para a proximidade: talvez se pode traçar matematicamente quanto de próxima está uma cultura de outra, mas pra mim isso é muito complicado e prefiro pensar que em qualquer altura, mesmo quando parece que a diferença cultural é infranqueável, qualquer pessoa se entende com outra. 

Ao compartir o idioma parece que há uma aproximação maior, mas também isso é um reflexo inexacto da realidade, em toda a comunidade linguística em geral e portanto também num concerto, onde haverá pessoas que queiram entender as letras mas haverá quem não, quem gosta só duma instrumentação particular ou de nada mas foi acompanhando a um amigo, e assim por diante. Dito isto, tenho muitas ganas de tocar aí e o público português é certamente maravilhoso.

A propósito desta leva de concertos, agradeceste “sobretudo” à Maria Reis, que te apresenta como “o amigo ourensiano”. Que afinidades há entre as vossas práticas enquanto músiques independentes? Quão familiar já eras com a Cafetra ou outros lócus do indie português?

Não conheço a Maria mais que por causa destes concertos, assim que este é o começo duma bela amizade. Sobre o indie português não tenho muita ideia (olha, não tenho ideia nem do galego-espanhol, mais que por diversos amigos inconexos), mas nesta viagem quero conhecer!

Apesar de teres afirmado em várias entrevistas que não tens interesse na política e que só te importas pelas canções, é evidente que tens uma preocupação quase obsessiva pela política, as suas idas e vindas, traições e estéticas. Nesta digressão apresentas peças de quase 50 minutos, sem cortes, com uma longa letra que mistura ironias, nostalgias e fracassos políticos, entre a tragédia e a farsa, que em Portugal irá trazer lembranças do “FMI” do José Mário Branco. O que há da música de intervenção no Emilio José?

O que acontece com a política é que não é o lugar onde as coisas acontecem, mas sim onde estão as bandeiras.

As diferentes iterações ao vivo desta peça, que tomaram títulos de séries obscuras da televisão filipina, assombram o teu Bandcamp em lançamentos-fantasma que surgem desde novembro de 2022. Será finalmente lançada como single ou EP? O que podemos esperar dos teus próximos concertos?

Mas são peças diferentes! [Risos] As letras surgem pouco antes de cada concerto e a música é semi-improvisada (porque não acredito na improvisação total não mudando constantemente de instrumento e código). Talvez registe alguma algum dia, mas pelo de agora é só ao vivo.

Já há alguns anos que anuncias que o teu próximo álbum, que irá sair pela Foehn Records em 2024 (?), seria uma espécie de sequela do Agricultura Livre (2015). Esse projeto, de dimensões épicas (52 faixas em 3 CD), virou um marco da música independente em galego e apresentou um discurso musical em que as preocupações da política (ourensiana, galega, espanhola, europeia e assim por diante) se interligavam com a linguagem da “canção de amor”. Será também esta a linha do novo álbum?

Só quando esteja pronto é que se sabe o que é, e sim, em 2024 tem de estar pronto!


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