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Fotografia: Wendy Andrade
Publicado a: 25/12/2020

É tudo para ontem.

Emicida: “Desde a minha adolescência que tenho uma relação muito pacífica com a finitude”

Fotografia: Wendy Andrade
Publicado a: 25/12/2020

Em primeiro lugar, devo dizer, como jornalista, que Emicida é o entrevistado perfeito, o tipo de pessoa que fala mais do que foi pedido, aprofunda as questões e ainda traz novas questões. O desejo é apenas dizer: “vai, fala-me sobre a vida”.

Dito isto, também devo dizer que tive uma semana muito difícil. Menos de 24 horas depois de saber que iria entrevistá-lo, recebi a notícia de que o meu avô tinha partido. Não tive tempo de chorar ou celebrar a entrevista.

Como pensaria em perguntas para um artista de que sou fã e que tenho seguido por quase 10 anos? Ao mesmo tempo que queria perguntar sobre tudo e um pouco mais, parecia que já tinha sido perguntado tudo. Pus “É Tudo pra Ontem” em repetição. Na canção, Gilberto Gil recita um excerto do livro A Vida Não É Útil, de Ailton Krenak, autor e um dos mais importantes líderes indígenas do Brasil. Este som já tinha aparecido no final do documentário que também tem o mesmo título e foi lançado este mês.

Tudo o que foi feito pelo Emicida no último ano é sobre amar, comunicar, construir pontes e fazer do afecto e da vida o centro das coisas. Por isso decidi que este seria o fio condutor da nossa troca de ideias. Mas como se fala da vida num ano em que tantas pessoas perderam amigos e família? A propósito, há uma maneira segura de falar sobre um tema tão difícil?

Tudo isto é importante para contextualizar que o que me está a acontecer e o que está a acontecer a milhares de outras pessoas em escalas cada vez maiores mas também mais pequenas. Falar sobre a vida, sobre a humanidade e sobre o amor é mais do que um presente para o Emicida. É uma missão.



Ei, mestre. Como está? Não vou fingir ser um costume, estou muito entusiasmada por ter esta oportunidade de falar consigo. No início da sua carreira tive-o a si e ao Fióti mesmo como amigos no Facebook [risos].

[Risos] Somos velhos amigos virtuais, então. Estou bem. Desde que haja milho, fazemos pipocas.

Como foi para combinar a sabedoria de Gilberto Gil, o seu talento e precisão na narrativa e a urgência de Ailton Krenak numa só canção? Como sente que se está assistindo ao trabalho final e especialmente como toca as pessoas?

Desde a minha adolescência que tenho uma relação muito pacífica com a finitude, sabe? Ela tem estado a melhorar muito. Nos primeiros momentos da minha vida, até aos 15, 16 anos, tive uma relação tipo negação com a experiência que nos diz que tudo tem um fim. À medida que amadureci, percebi que o fim não é necessariamente um fim. O fim pode ser triste na nossa concepção do mundo, por causa da cultura em que nos orientamos, mas a verdade é que eu entendo a finitude da vida como uma passagem. Quando chegamos ao coro desta canção, há uma coisa que é uma bênção, porque só quem fala português compreende todas as camadas desta música, que é a seguinte: viver é partir, voltar e repartir. A partilha para nós tem dois significados: um que é sair novamente, e estamos sempre a ir e a vir, e o outro é a partilha do que recebemos. E só podemos partilhar o que temos, sabe? E temos muitas coisas. Trouxe o Gil e o Krenak para refletir sobre isto e esta experiência de dualidade. Gosto muito do texto do Krenak porque ele apanha humanos a fazer algo que é mau e que vai contra a sua própria origem, o que pode causar a sua própria extinção, mas ainda assim, Deus, no conto, é salvo por crianças. E então, esta salvação de Deus para as crianças mostra que, de facto, o ser humano é uma experiência mais ou menos, sabe? Produz coisas aterradoras, mas também produz coisas maravilhosas e o nosso desafio é tentar preencher o tempo com o maior número possível de coisas maravilhosas… 2020 tem sido um ano difícil para todos. Aqueles em condições confortáveis tiveram maus momentos, aqueles que estão em condições extremamente desconfortáveis nem se fala. Só queria no final deste ano partilhar uma canção que fosse um abraço, que não fosse uma canção que nos levasse a uma energia negativa, muito pelo contrário. Para mim, esta música é como um telefonema. O seu camarada Emicida ligou e disse: “Acabei de lavar uma casa de banho aqui, já não estou a fazer tournée, agora vou ter de lavar uns pratos, olhar para as crianças, regar as plantas”. É o que tenho de fazer, viver um dia de cada vez.

Está muito claro. Em alguns discursos, menciona mesmo que AmarElo surgiu da necessidade de uma comunicação feita de forma positiva, com fé, com amor, que trouxe afecto às pessoas e falou desta dualidade diferente da forma como vemos. Qual foi o momento em que percebeu esta necessidade como algo para ontem? Se é que teve um só momento, certo, imagino que foram vários.

Sim, tem razão, Gabi. É um conjunto de momentos, sabe? Estás a estudar, a ver muito… Não sei. Sou uma pessoa muito analítica. Continuo a ver o mundo como se fosse um cientista. Observo, por exemplo, como as pessoas reagem a um certo tipo de informação e a conclusão a que chego é que grande parte da nossa linguagem contemporânea foi definida pela comunicação dos Estados Unidos. É um crime? Não. É um defeito? Não. Mas isso também é perigoso, porque está a desassociar pessoas de várias linhas de raciocínio que estão mais ligadas à complexidade de um país como o Brasil. Assim, AmarElo, do ponto de vista da comunicação, parte deste lugar onde estou a tentar desenvolver uma comunicação enfática, informativa e apaixonada como a linguagem que as nega véia usam para nos contar a história de quem veio antes delas. Não têm um discurso académico. Têm um discurso do coração, o discurso delas é “coracional”, sabe? E assim, esta forma coracional de fazer pontes é o que me interessa agora. Podemos discordar. Só preciso que perceba do que estou a falar, entendeu? Não pode entender o oposto do que estou a falar. E se é minha intenção construir uma ponte, preciso ter muito cuidado com a forma como a comunico. Acredito que posso construir pontes. É por isso que faço uma comunicação nesse sentido, para que chegue a si, lide com um assunto sério e urgente, mas não com a ideia de que “a culpa é toda sua”. Ela coloca-nos a todos no lugar de “Raios, mano! Podemos ser muito melhores que isso. Vamos superar isto agora e construir um mundo no qual gostaríamos de viver.” O que estou a tentar perceber é isto. Sinto que na língua brasileira isto já foi feito várias vezes, estou a tentar continuar este tipo de grandeza. É por isso que aparece o samba! Samba é o melhor a fazer isso.

Sim! Samba também reuniu pessoas de diferentes classes, gostos e histórias, por isso, além de trabalhar com a dualidade da vida, também carrega muita história por trás.

Sim e muito mais, as opiniões podem variar. Todos têm o direito de ter as suas opiniões, mas aqui partilhamos os factos. Se olharem para o documentário baseado nos factos, verão que não é um ensaio apaixonado de um jovem de 15 anos que não viveu, sabe? Na preparação do documentário teve um intenso trabalho de investigação precisamente para trazer luz aos factos que foram apagados, mas que continuam a ser factos. Está na história. É uma parte da história que foi roubada dos brasileiros. Quando oferecemos esse tipo de informação, a sensação que tenho é que estamos oferecendo um copo de água limpa às pessoas. Que estavam a beber um copo de água suja e quando a informação chegou, eles podem dizer: “Meu, estávamos a alimentar-nos de algo que não era tão fixe para nós. Vamos beber água limpa agora”.

Tenho a certeza que sim. E um disco como AmarElo provoca uma reflexão de “porque é que estamos aqui?”. Traz esta questão de raízes, de origens e, um ano depois, o documentário surge quase como uma explicação e uma lição de história sobre o mesmo. E agora, a música com Gilberto Gil faz um ciclo, como se fosse um abraço em todos os que precisam. Pensando nisso, qual era o seu objetivo inicial e qual é o seu objetivo agora, uma vez que a pandemia só intensificou as nossas perguntas e a nossa necessidade de afeição?

É bom pensar que algumas palavras que são simples, e que foram até negligenciadas na nossa língua, ganharam áreas de palavras mágicas agora. Assim, por exemplo, parece um abracadabra quando falamos de abraço ou encontro. Desperta outro desejo porque é algo que nos falta. AmarElo para mim é isso mesmo: uma possibilidade de encontro. Se tivesse de definir o que é AmarElo numa frase, diria que é a força da sugestão, sabe? Uma gentil sugestão de como a forma como vivemos é obsoleta e como é real que possamos viver de outra forma. Para mim, esta é a melhor síntese do projecto. Se eu pensasse lá no início da minha carreira onde gostaria de estar, diria-lhe que já sonhei muito alto. E se eu pudesse pegar numa máquina do tempo e falar com aquele miúdo, ele estaria a sonhar em ser 30% do que eu sou hoje, sabe? Sinto-me como se estivesse num lugar muito abençoado hoje. Nem sequer tenho ambição. Para que veja, é muito difícil para mim falar sobre qual é o meu sonho como artista hoje. Realizei coisas que pensei serem impossíveis de realizar. Olha o que o rap está no Brasil hoje e o que foi quando comecei. Quantos irmãos, quantas irmãs desistiram de fazer música porque não tinham um horizonte de possibilidades? Estou muito orgulhoso de ter transformado a possibilidade na palavra central pós-Emicida, digamos assim. Reflectir sobre isso é bom e eu tenho vários sonhos, mas os meus são até pessoais. Os meus sonhos são tolos. O meu sonho é como uma nova máquina de escrever [risos]. Gosto muito das raparigas. Quero meter-me com a minha horta. Sonho com coisas que são muito possíveis de realizar. Quero seguir a vida das minhas filhas o mais longe que puder, o meu sonho é que Deus me dê boa saúde e cabeça para não desiludir estas raparigas, não deixá-las sozinhas no mundo, sabe? Tenho um lugar muito privilegiado, não só para ter acesso a muita informação, mas também para ter acesso a muitas pessoas. Depois coloquei-me no lugar de ser a pessoa que faz esta ponte entre as pessoas e a informação, porque sei que podemos contar uma história de forma provocadora e estas provocações fazem com que as pessoas queiram construir coisas no mundo. Um filme, um disco, um podcast são para mim, acima de tudo, uma grande provocação. E você, Gabi, vai ver e pensar: “Isto é fixe, mas em Minas também tinha um negócio que era assim”, sabe?!” Esta história não é minha propriedade. A única coisa que fiz foi costurar um pequeno ponto ali, num pedaço desta aba e dizer “pessoal, acho que este retalho vai ficar muito bonito” e outras pessoas estão a pôr outras provocações.

Esta analogia é muito bonita porque até enfatiza o sentido colectivo. Nenhuma história é construída por si só. A nossa geração precisava de obras como esta, que são como um respiro no meio do caos e da violência quotidiana que, infelizmente, se tornou habitual. Estamos muito habituados ao rap sempre num tom de denúncia e raramente num tom acolhedor. Pessoalmente, perdi o meu avô ontem de noite e quando disse a uma amiga, ela disse-me: “viver é partir, voltar e repartir”. É importante e muito urgente a sensibilidade com que tudo isto foi feito… É um refúgio para todos os que perderam alguém ou pior, perderam até a esperança este ano.

Embora o rap muitas vezes visite e revisite com um ar de denúncia o que é a experiência negra, a experiência de quebrada, a experiência de ser favelado no Brasil, a verdade é que quando estamos a falar de masculinidade, estamos a falar de um género que a arranha de uma forma muito superficial, sabe? Quando tomamos o centro da tragédia e colocamos a vida no centro, voltamos a ligar-nos aos nossos porquês, sabe? Porque quero que o mundo seja melhor? Porque quero que as pessoas se inspirem? Porque quereria que a vida fosse diferente? Quando a vida é o epicentro, os nossos porquês vêm à luz. Às vezes, a queixa, por mais legítima que seja, também tem o poder de gerar uma espécie de paragem, porque parece que disse tudo o que tinha de ser dito e isso mesmo, não tem mais nada a dizer! Este lugar de paralisia é perigoso e a vida é o que nos faz mover. É por isso que é importante para nós fazer uma provocação que orbita em torno da vida, porque na história recente do rap, também produzimos muitas contradições. Está na hora de nos olharmos ao espelho como a cultura do hip hop como um todo e perguntarmos: quem é o hip hop? Somos nós ou as nossas contradições? A conclusão a que chego é que somos nós. E se formos nós, podemos ser melhores. Se pudermos ser melhores, sejamos melhores agora.

Finalmente, mais do que nunca, sabemos que o Brasil sorriu e sambou muito menos, deixando-nos com menos luz para ver o caminho. Quais são as tuas expectativas para o próximo ano?

Tenho uma relação muito saudável com as expectativas. Não crio expectativas nas coisas, estou a deixar a vida surpreender-me positiva e negativamente. O que faço é preparar-me para o melhor e para o pior. No Brasil, estamos a viver um fenómeno importante para analisar. Não se pode falar do Brasil sem falar da experiência da colonização. A experiência da colonização é uma tentativa de tirar o terreno do país, a terra das populações autóctones, neste caso, as populações indígenas. Mas este projecto, por muito que tenha beneficiado o hemisfério norte, revela-se um grande fracasso do ponto de vista humanitário. O que vemos na recente experiência brasileira é uma tentativa radical de tentar tirar este país das pessoas, mas a partir da subjetividade. Então, o governo aponta para os sinais que o fazem acreditar que estávamos num caminho melhor. Depois perdes todo o terreno e as tuas referências e o governo gere este caos para que, no final do dia, sintas-te exausto, como “não vamos chegar ao fim desta trajetória”. E é por isso que é importante para nós partilharmos uma história como a que partilhamos no filme. A morte é certa. Mas a vida também, e estamos tendo esta conversa agora por causa disso.


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