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Publicado a: 18/09/2015

Emicida: “Construi a ideia que tenho de mim através das letras de rap”

Publicado a: 18/09/2015

[FOTOS] João Ferrão

 

É manhã cedo ali para os lados do Saldanha. No lobby de um hotel da capital aguardo que chegue a hora combinada com o MC brasileiro Emicida – Leandro Roque de Oliveira – para conversarmos sobre o seu último disco – e não só. Curiosamente, ou não, vou espreitando a televisão ligada num canal de desporto que passa o resumo do jogo de ontem do Brasileirão: o Corinthians, de São Paulo, a receber o Grémio de Porto Alegre.

À hora combinada desce até ao rés-do-chão Evandro Fióti, o irmão, músico e assessor de agendas de Leandro. “Ele desce já. Desculpe o atraso”, diz, já a espreitar o ecrã que vai dando empate. Emicida desce, efectivamente, pouco tempo depois. Chapéu que diz, em letras ao estilo de graffiti, “A Rua É Noiz” e uns óculos escuros Wayfarer. Cumprimenta-me, educadamente, e vai espreitar o placar do jogo antes de se sentar na poltrona à minha frente. “Estás contente com o resultado do Corinthians?”, pergunto-lhe. A resposta sai em jeito de provocação para o irmão: “O Fitói ali é que corintiano! Eu ou santista!”, sorri pelo empate que se vai arrastando.

Mas vamos ao que interessa: quisemos aproveitar a passagem do rapper Emicida pela Europa para conversar sobre o seu último disco – o segundo longa-duração – Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa. Lisboa foi uma espécie de escala na viagem de regresso a casa, São Paulo. Uma “escala” que é, cada vez mais, um porto seguro para Leandro Roque de Oliveira, que tem encontrado por Portugal muitos motivos para voltar – como nos haveria de confessar no fim desta conversa. Um deles é a sua ligação de sangue a África, que o levou até Cabo Verde e Angola. Este é um novelo que e este “filho de dona Jacira”, quer, a todo o custo, desnovelar até ser possível – apercebo-me que tem tatuado, no braço esquerdo, três caras. Três faces negras: João Cândido, “o Almirante Negro” referência de luta do povo negro brasileiro; a escritora Carolina Maria de Jesus; e Zumbi dos Palmares. Não tenho dúvidas: além de um disco, este é também o primeiro volume de um contributo histórico em busca de identidade e raízes perdidas num país mestiço. Um esforço que tem guiado o rapper ao longo dos seus trabalhos de estúdio e que atinge agora uma suprema maturidade própria de quem chega aos 30 anos.

 

Foste gravar este disco a Angola e Cabo Verde. Conta-nos lá a origem deste trabalho: porquê deixar o conforto de casa e partir para outro continente à procura de referências?

Se formos à raiz da coisa, esta é uma busca muito pessoal. Eu tinha o sonho e o desejo de visitar África, mas a com a oportunidade de ir gravar o disco em Luanda (Angola) e Cidade da Praia (Cabo Verde) foi juntar o útil ao agradável. Foi uma viagem muito pessoal, de autoconhecimento, do continente-mãe dos meus ancestrais. O motivo primordial do desejo de ir até África vem da maneira como o vínculo com a nossa ancestralidade foi rompido no Brasil. Nós já descendemos de um povo sequestrado e escravizado, por isso não há uma ligação directa com a nossa terra-mãe precisamente por não sabermos qual o país de onde vieram os nossos antepassados. Então, essa pesquisa também se mistura com o sonho de poder voltar um pouco atrás no tempo, de começar a contar esta história para esta geração e para a próxima.

Mesmo não tendo a certeza de onde serão os antepassados, não há sequer uma pista? Uma ideia? À partida os teus antepassados não poderão vir destes países que visitaste na gravação do disco?

Não no nosso caso. Há um episódio ainda mais triste na história do Brasil: os cadernos, livros e documentos que continham informação do povo que foi escravizado, foram incinerados. Então torna a coisa muito mais nebulosa, difícil. Podemos dizer que as origens podem estar num país que foi colónia de Portugal… sim, é uma possibilidade, mas o Brasil recebeu pessoas de outros lugares, como o Mali ou Senegal… enfim. É tudo muito vago. A cultura afro-brasileira é o fruto de uma mescla de elementos de vários lugares de África e nem todos, necessariamente, falam português. Talvez seja essa a coisa mais difícil de entender para as pessoas não-pretas. É esse vazio que acompanha a gente. As pessoas brancas têm uma facilidade em dizer se descendem de espanhóis, portugueses, italianos… enquanto para nós, pretos… É difícil eu sentar com a minha filha e contar uma história que vá além do meu bisavô. É como uma corrida de estafetas em que não conseguimos seguir em frente porque quem trazia o bastão para passar o testemunho ainda não chegou.

Essa busca pela raiz da cultura afro-brasileira tem estado sempre muito presente no teu trabalho. Porque é que é importante, para ti, essa procura?

Como eu venho de um país onde não existe o hábito de se contar esta História, a ausência da história destrói a auto-estima de um número sem fim de pessoas. Eu tive que me construir e construir a ideia que tenho de mim mesmo através das letras de rap pelas quais me apaixonei. Então, num primeiro momento, o hip hop mostrou-me os ícones dos EUA: Martin Luther King, Malcom X, Maya Angelou, Panteras Negras… tudo isso começou a fazer parte do meu imaginário e até havia muita gente a ofender o hip hop ao dizer que era uma coisa muito americanizada, que americanizava o jovem brasileiro. Foi o Sérgio Vaz – poeta brasileiro – disse que a América do Malcom X interessa-nos! E a do Martin Luther King também! Foi depois deste nomes que me surgiu a curiosidade de perceber quem se tinha movimentado no Brasil com lutas semelhantes às deles. Foi aí que conheci Abdias Nascimento, Carolina Maria de Jesus, Zumbi dos Palmares… e a minha pesquisa tornou-se mais rica para encontrar estes revolucionários da música brasileira. Mas eu continuei curioso e quis saber de onde é que estes tinham vindo! Aí, quando vou pesquisar os livros de história – e mesmo os mais profundos são muito superficiais quando falam destas pessoas – encontrei um caminho involuntário e sem volta: precisava de começar a pensar mais sobre África. E repetir essa história desde a raiz, para retribuir na minha geração o que as gerações anteriores do hip hop fizeram por mim. Falar sobre raiz é falar da construção de um estereótipo positivo do povo preto brasileiro – e, acredito eu, do mundo inteiro.



Conta-nos, então, como se traduz neste disco essa experiência de visitar as tuas raízes, de visitares o continente africano.

África não é a raiz dos pretos: é a raiz da humanidade! (sorri) Por isso o disco começa com o tema “Mãe”. É um disco com um discurso cirurgicamente bem colocado e por isso as pessoas precisam de entrar naquele universo com alma limpa, chorar, e é uma música que faz as pessoas reflectirem e pensarem no seu começo. Hoje vivemos num tempo de tanto desentendimento, de tanta informação de tantos os lados, que vivemos a vida de guarda levantada à espera do próximo golpe. O disco começa a sugerir que as pessoas baixem a guarda, isto para que percebam do que o disco fala. Aí, vamos reflectir sobre uma série de coisas.

Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, como diz o título. Achas que é um disco que contribui para aquela História que diz que está incompleta e não vem nos livros?

É literalmente isso. Ele vai directo às questões. Fala de opressão, das questões raciais, mas também é um disco sobre beleza, força, serenidade, auto-estima. São pontos-chave para nos construirmos enquanto ser humano. Pontos aos quais não temos acesso se contarmos como História Universal. Mas eu venho de um país onde a composição étnica é negra, índia e branca – só que a negra e a índia não são contadas! Então é fundamental que alguém comece a contar. Quero contribuir para que o Brasil observe o país por uma outra perspectiva não-europeia.

Deixa-me regressar à imagem de andarmos todos de “punhos levantados”: ao ouvir o teu disco, parece-me que tu também baixas a guarda em comparação com discos anteriores. Aparecias sempre como um rapper que atacava para se defender. Este é um trabalho mais sereno e esperançoso?

A paternidade mexeu muito contigo. Fez-me olhar para o mundo de outra forma: antes queria que o mundo se fodesse! (risos) Agora acho que posso tentar ajudar a construir um lugar melhor para a minha filha crescer. Mesmo abordando a auto-estima, quis aproximar-me de outras texturas. Olha o exemplo do samba: fala a coisa correcta, mesmo que seja algo agressivo, mas de uma forma calma. Talvez seja uma proposta de diálogo em vez de confronto.


 

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Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa fala de opressão, das questões raciais, mas também é um disco sobre beleza, força, serenidade, auto-estima. São pontos-chave para nos construirmos enquanto ser humano.


Não deixar de dizer, mas também ouvir?

Sim! Porque, como dizia o Mia Couto: “Cada homem é uma raça”. Cada pessoa é um universo. Essa conexão interessa-me, mas continuo a bater na tecla de precisarmos de estudar o ponto de vista não-branco do mundo.

E convidas para o diálogo, neste disco, dois músicos que são referências noutros géneros musicais da música brasileira: o Caetano Veloso e a Vanessa da Mata.

Eu tenho-me esforçado muito, desde o começo da minha história, para construir um rap brasileiro. Tanto o Caetano como a Vanessa são dois artistas que eu admiro muito e que se tornaram bons amigos. São artistas que se repetem muito na minha playlist em casa. Quando penso a música, eu não me ponho a pensar: “isto é rap, é samba, rock ‘n’ roll”. Penso a música de forma livre: a arte precisa de ser livre para se ligar da forma correcta com as pessoas senão começa a segregar as pessoas da mesma forma que as outras coisas segregam! A música é a única ferramenta que consegue unir toda a gente.

E o hip hop é o género perfeito para poderes dar esse abraço e unir todos os géneros.

Concordo. O rap nasce de uma pesquisa – daquele rap dos anos 80 que sampleava soul, funk, jazz, James Brown… depois foi-se relendo sampleando um monte de coisas. Apropriou-se de uma série de músicas do mundo, entrou na cultura do Mundo e a funcionar dentro dos idiomas locais. No início toda a gente cantava em inglês, mas de repente apropriaram-se daquilo de tal forma que começaram a cantar rap em português, alemão, francês, japonês… houve uma ligação das pessoas à cultura. Em Cabo Verde cantam em crioulo! É fascinante. É uma língua local, do povo nativo. No disco queria ter cantado em crioulo, mas é complicado “pa caralho”. Tenho de passar lá muito mais tempo!



São dez anos de música. Este é o disco que conseguiste apresentar uma paleta sonora mais diversa em termos de géneros? O samba, o rock, a electrónica, o hip hop clássico?

Acho que as texturas do disco são mais abertas. Mais pop. O disco anterior já caminha para isto, com samba rock, maracatu, mais tribais, samples de coisas africanas. Mas é uma construção para a qual eu sempre apontei. Sempre gostei de apontar à música de uma maneira plural. Não quero ser aquele cara que fica sempre a bater na mesma tecla até que o discurso perca a força. Se ficares a bater sempre na mesma tecla, há uma hora em que ela vai parar de funcionar. Tenho de me reler, porque eu também escuto muitas coisas diferentes e gosto que isso transpareça na minha música. Ir de uma canção como “Boa Esperança” para “Passarinhos” é uma reflexão natural que transparece o que se passa no teu dia: tens momentos tensos, mas também alegres. No final do dia, cada um faz o seu balanço.

Tens passado com uma saudável frequência por Portugal. Creio que a primeira vez que passaste por cá foi em meados de 2013 – Lisboa, Porto, Braga… Já sentes uma ligação próxima com os fãs de cá?

Agora já estou a gostar! Da primeira vez que vim reclamava de tudo. Era um “bichinho do mato”. Saía de casa e ia a reclamar. Ia para os EUA, Londres, Alemanha e ficava a reclamar: “Aqui não tem comida brasileira!” (risos) A maturidade traz-nos estas ideias: temos que nos contectar com o lugar que estamos a visitar e tentar tirar o que tem de melhor. Ainda sou reclamão, mas estou bem menos. Portugal tem uma história apaixonante: eu olhava para África de um jeito mítico, romântico, mas não conhecia literalmente. Nas passagens por Portugal descobri livrarias com um monte de livros de autores africanos que não chegam ao Brasil. E aí entendi: Portugal é o meu elo com os países africanos de língua portuguesa. Foi em Portugal que encontrei Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde…

E mais concertos por cá? Há previsão?

Sim, estamos a iniciar algumas conversas. Nos próximos meses vamos intensificar a promoção para virmos fazer um grande concerto, pela primeira vez, aqui em Portugal.

 

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