Retellings foi — é… — uma das agradáveis surpresas reveladas pelo desenrolar do calendário de 2025. Embee é nome histórico da cena sueca de hip hop, o criativo por detrás de muitas das bases clássicas dos Looptroop, verdadeira instituição da cena hip hop nórdica. Em 2004, o produtor – que responde ao verdadeiro nome de Magnus Bergkvist – lançou em nome próprio o ambicioso Tellings From Solitaria, álbum em que reuniu uma quantidade assinalável de convidados que o ajudaram a realizar uma visão muito particular. Nesse trabalho já se incluía inclusivamente uma nítida aproximação ao jazz através da colaboração do Reini Zarins Quartet do baterista Reinis Petravis-Zarin. Duas décadas volvidas, através da sua própria David Vs. Goliath, EmBee não apenas reeditou esse clássico, Tellings From Solitaria, como resolveu ainda repensar o disco através de uma colaboração com três músicos que são verdadeiros pilares da modernidade jazz sueca e europeia: o contrabaixista Petter Eldh — sem dúvida um dos heróis do ano através das suas colaborações em registos de Peter Evans ou no projecto ØKSE —, o saxofonista Otis Sandsjo (tanto Petter como Otis integram os Koma Saxo) e ainda o pianista Fabian Kallerdahl. Juntos, Embee, Eldh, Sandsjo e Kallerdahl assinam Retellings, disco que parte do hip e chega ao jazz com uma elegância a toda a prova. É sobre esse projecto que Embee fala agora ao Rimas e Batidas.
Este ano assinalam-se as primeiras duas décadas desde que lançaste o teu primeiro disco enquanto Embee. Olhando para o teu percurso desde então, que conclusões tiras?
Na verdade, eu tinha lançado o Embeetious Art EP em 2000…
Bem, nesse caso, são quase 25 anos desde a tua estreia. Referia-me, claro, a trabalhos de longa duração…
Exactamente. Eu tive um período bastante héctico. Tínhamos feito o EP de Looptroop, Heads Or Tails EP, e também o álbum Modern Day City Symphony em apenas dois anos. Sempre que tinha um bocado de tempo livre, eu tentava produzir para o meu próprio trabalho a solo em conjunto com alguns artistas convidados. O Modern Day City Symphony não é um álbum a solo, de certa maneira, porque tem muitos convidados. Mas eu andava mesmo muito ocupado com as digressões de Looptroop, para aí desde 2000 ou 2001, então tinha mesmo muito pouco tempo para mim. Eu diria que foi por isso que apenas consegui lançar três álbuns e um par de EPs, pois andava mesmo muito concentrado na banda — quer nos palcos, quer nos discos. Mas foi uma viagem muito boa. Depois deixámos de ser tão produtivos e meio que parámos de fazer música em 2017 — o Motivation Music foi o nosso último lançamento enquanto banda e saiu em 2018. Temos andado a fazer outras coisas, como a 93 Feet Beats, que é uma etiqueta que apenas lança hip hop instrumental e já conta com 10 projectos editados até ao momento. Portanto, temos andado focados nesse lado da editora e nas digressões, porque ainda tocamos muito ao vivo.
Os Looptroop até chegaram a tocar em Portugal, não foi?
Sim. Eu acho que foi na passagem de ano de 2006. Mas eu estava a viver em Tóquio, portanto não me consegui juntar à banda. Eles tocaram com o DJ Large, se não me engano.
Não me recordava desse “detalhe”…
Mas pronto, foi devido a esse primeiro álbum que eu quis fazer este, pois sei que ele tem um significado muito grande para algumas pessoas. Volta e meia cruzo-me com pessoas que me dizem que ainda o escutam. Fiz este novo álbum por mim, mas também por essas pessoas todas.
Muitos álbuns instrumentais estão presos a equipamentos ou técnicas de produção específicas e, por isso, podem ficar datados mais facilmente. Eu diria que o Tellings from Solitaria envelheceu bastante bem e talvez seja por isso que encontras pessoas que te dizem que ainda o escutam.
Eu espero que sim. Eu próprio estive a escutá-lo há um par de semanas. Não me sinto super-orgulhoso de todas as faixas que lá tenho e as técnicas de mistura também evoluiram um bocado. Eu gostaria que ele tivesse um bocado mais de graves [risos]. Mas fora isso, muitos daqueles temas ainda são encantadores e profundos. Eu consigo perceber o porquê dele ressoar nas pessoas. Foi um projecto no qual eu apliquei muito esforço, lembro-me bem disso.
O que é que mudou em tí ao nível da produção e na abordagem que tens à criação de música?
Eu ainda tenho muitos discos rígidos repletos de música. Eu diria que tenho quatro vezes mais material arquivado do que editado. Tenho todo esse material pronto a editar e fico sempre muito hesitante em lançar essas coisas, porque surgem questões como: “Será que isto é bom o suficiente? Porque é que eu vou lançar isto?” Tem sido muito assim ao longo dos anos. Aquilo que mudou na minha cabeça foi: “Eu vou fazer isto, e seja lá o que for que resultar desse processo, eu vou lançá-lo em disco”. Tornei-me mais modesto, nesse sentido. Já não acho que cada canção tenha de ser uma obra-prima.
E a nível técnico, também mudou alguma coisa?
Sim. Eu já passei por várias fases ao nível da técnica. Eu comecei com um Yamaha TX16W, que era um hardware muito limitado nos anos 90. Depois evoluiu para o trabalho com um sequenciador da Atari, até que finalmente comprei uma MPC em 1998. Desde 1998 até 2005 eu apenas trabalhei com a MPC. Depois mudei-me para o Logic Pro e para o sampler EXS24. Agora voltei a mudar: regressei à MPC, mas combino-a com o Ableton. É esta a forma com que trabalho de momento.
E é uma combinação muito boa.
É sim. Mas, ao mesmo tempo, também andei a aprender imenso sobre técnicas de mistura. Quando eu comecei, nos anos 90, era muito difícil de misturar, pois não existiam DAWs [Digital Audio Workspace]. Se tu quisesses misturar bem as coisas, tinhas de ter uma boa mesa de mistura à tua frente e gente à tua volta que percebesse daquilo. Eu trabalhava com um tipo da minha zona que tinha um estúdio muito fixe e era ele quem me ajudava nessa época. Mas demorava imenso a misturar as coisas nessa altura. O The Struggle Continues, por exemplo, demorou o Verão de 2001 todo para misturar. Todo esse processo era muito difícil de aperfeiçoar. Eu aprendi imenso, mas também não devia ter de ser assim tão difícil de misturar as coisas. Hoje em dia já sei como fazer as coisas de forma mais fácil, porque podes ir fazendo pequenos ajustes à medida que estás a criar o tema. Portanto, as minhas sessões de mistura são muito mais curtas nos dias de hoje. Eu posso ainda estar a montar os kicks e já lhe estou a dar alguns ajustes, mesmo antes da canção ter qualquer outro elemento além disso. Eu certifíco-me de que esse kick vai soar sólido desde o início, depois faço pequenos ajustes para que ele soe bem ao lado dos restantes elementos que vou adicionar.
E processas tudo isso no computador, ou também usas algum equipamento outboard?
Também usámos algum equipamento outboard, no estúdio do Petter Eldh em Berlim. Mas no que toca à mistura, foi tudo inside the box, com alguns UAD [Universal Audio Digital].
Disseste-me que escutaste o disco e que não gostavas de algumas das coisas do Tellings from Solitaria. Também mencionaste ter quatro vezes mais música por editar do que aquela que já lançaste. Isso é tudo por seres excessivamente crítico contigo mesmo?
É capaz, sim [risos]. Talvez também tivesse sido mais fácil de editar mais música ao longo dos anos se eu tivesse criado esse hábito. Hoje em dia, eu quero lançar mais música. Eu faço música todos os dias desde os anos 90, portanto fui acumulando muita coisa. E este novo disco, ele nasce de um projecto que foi criado de raiz com este propósito. Mas há alturas em que eu fico a trabalhar durante tanto tempo numa canção, que acabo por me cansar dela e não a lançar apenas por eu próprio já estar cansado de a escutar. Ou seja, eu acabo por nem dar às pessoas uma chance de a escutarem também.
Um dos meus produtores favoritos é o Madlib e a dada altura ele editava praticamente tudo aquilo que fazia. Era nitidamente alguém que estava a mostrar o seu processo criativo, os triunfos e as falhas. Há coisas que são formidáveis, outras que nem tanto assim. Eu sempre achei essa ideia muito refrescante. A tua forma de ver as coisas é completamente oposta.
É verdade. O mais estranho é que eu posso fazer uma música, gostar dela, mas cansar-me de a ouvir e acabo por nunca a editar, saltando de seguida para outro projecto diferente, em que me comprometo a editar tudo aquilo que fizer para esse projecto. Eu fiz um álbum em 2019, The Beauty Of A Broken Record, que é uma espécie de beat tape que foi feita em apenas um mês ou assim. “Vou fazer isto com esta finalidade, portanto é só lançar depois de terminar.” E com isso acabo por não incluir temas que fiz antes que até podiam ser melhores do que aqueles que fiz para esse projecto. Foi mais ou menos isso que fiz para este disco, Retellings. Eu estava com esse pensamento de “tudo o que fizer para isto, vou editar.”
Como é que te surgiu essa ideia de revisitar o Tellings from Solitaria em conjunto com alguns músicos?
Eu comecei a tentar fazer isto ainda no primeiro disco com o Reinis Zarins Quartet. Eles participaram em algumas faixas. Eu gostava de fazer isso evoluir para todas as faixas, ter aquela mistura entre samples e instrumentação real. A primeira música que fizemos juntos ficou tão boa, tão boa… Eu queria mesmo experimentar e fazer isso soar a beats, mas com aquela sensação de instrumentos reais, com mudanças a toda a hora, uma coisa não-estática. Foi esse o ponto de partida para este álbum. Eu não queria que isto soasse completamente àquela cena de banda, mas também não queria que soasse demasiado a batidas lo-fi, tal como não queria que soasse muito a uma cena jazz avant-garde. Queria uma combinação disso, criar algo novo, explorar novos territórios e ambientes. Eu dei muito espaço aos músicos para fazerem a cena deles, os seus solos, pequenos detalhes… Temos tantas horas de música gravadas, repletas de pormenores e assim.
Como escolheste estes músicos? Já conhecias o Petter Eldh, o Otis Sandsjö e o Fabian Kallerdahl?
Sim. Eu já os conhecia há muito tempo, de Gotemburgo — eu cheguei a viver lá. Fizemos um par de músicas, para aí em 2000. O Petter e o Otis conheci-os em Berlim através de um amigo em comum. Tive um pequeno projecto chamado The Psychiatry com esse amigo de Berlim, e nós queríamos músicos para tocar connosco. Foi dai que surgiram os contactos com o Otis e o Petter, mais um baterista que acho que se chamava Mark. Fomos até ao estúdio da Soundcloud em Berlim e foi essa a primeira vez que gravei com eles. Lançámos um EP de The Psychiatry. Eu fiquei com os contactos deles, até porque nós nos tínhamos divertido imenso a fazer aquilo. Portanto, tudo isto foi graças a um tipo chamado Jacob, que tinha uma editora da Suécia e que agora vive em Berlim. Foi ele quem nos colocou em contacto. Todos nós temos as mesmas fontes de inspiração, o jazz e o hip hop, então combinámos todos muito bem uns com os outros. Entretanto deu-se a pandemia e foi aí que nós conseguimos realmente começar a fazer isto, porque esses três músicos estavam em casa. Todos eles costumam andar constantemente em digressões pelo mundo fora e nunca costumam estar todos no mesmo local na mesma altura.
Então isto foi gravado em separado?
Sim, começou por ser em separado. Eu fazia um beat, ou criava a ideia para uma canção, e eles gravavam no espaço do Petter ou do Otis.
Enviavas-lhes os esqueletos das músicas e eles completavam?
Sim, passava-lhes alguns sketches. Depois, eu trabalhava com o material que eles me enviavam e incorporava-o naquilo que iria ser a canção, desenvolvia novas ideias e enviava de volta para eles. Foi uma questão de andarmos a enviar ficheiros uns aos outros. Até que o Petter veio até ao meu estúdio e ficámos a trabalhar aqui até ele voltar para Berlim. Foi em Berlim que nos reunimos todos por um par de dias, no início deste ano, para gravar novo material e finalizar as músicas que já tínhamos.
E, desta vez, o processo de mistura foi mais suave?
Foi bem mais suave.
O disco soa mesmo bem.
Obrigado. Nós terminámos tudo no final do Verão, porque o objectivo era que este disco fosse lançado a 10 de Novembro, pois foi a data em que saiu o primeiro. É também a data de aniversário da minha mãe, que morreu há algum tempo. Era muito importante cumprir com essa data. Assim que demos conta que a mistura estava terminada, foi entregar tudo ao engenheiro que ia tratar da masterização e ele foi muito rápido a concluir esse processo. Depois enviámos para a fábrica onde foram prensados os vinis. Foi bem mais suave do que costuma ser [risos].
Vocês já interpetaram este material juntos ao vivo?
Nós temos andado a falar sobre isso. Estive com o Petter há um par de semanas para lhe dar o vinil. Ele estava em Estocolmo, a tocar no Fasching, um clube de jazz. Falámos de como seria fixe conseguirmos fazer algo juntos ao vivo. Há três dias tive uma festa de lançamento do disco e nenhum deles pôde vir, porque estavam todos noutros lados a tocar. É muito difícil reuni-los todos… Mas se nós conseguirmos combinar umas datas… Há uma data de coisas que precisam de estar alinhadas para que um espectáculo destes ao vivo funcione. Há a questão das salas, os ensaios… Temos de discutir sobre isso, sobre se existe tempo para o fazer, e ver se conseguimos encontrar datas para alguns espectáculos. Talvez um em Lisboa, um em Berlim…
O Petter até já conhece bem a cidade e tudo…
Isso seria maravilhoso! Sabes que eu sou muito inspirado por todo o movimento que ele e o Otis têm criado. Eles inspiraram-me a tentar inspirá-los [risos]. Mas quem sou eu, que apenas faço uns beats, ao lado de músicos daquele calibre? Ainda assim, eles eram fãs dos meus beats desde o tempo dos Looptroop. Portanto, há aqui uma cena de apreço mútuo.
Muito bom. E diz-me: como é a cena sueca de momento?
Em que sentido?
A cena hip hop é massiva aí? É algo mais underground? Como a descreverias?
É uma cena muito grande, mainstream. Os artistas com maior audiência são rappers. Os artistas de hip hop aqui safam-se muito bem nas plataformas de streaming. Depois, há um gajo que é da mesma zona onde eu cresci que conseguiu encher o maior estádio sueco. Fez lá um espectáculo e aquilo lotou. Ainda são umas 22 mil pessoas. É o Ant Wan. Um tipo impressionante e um grande rapper. A quantidade de seguidores que ele tem é muito grande. E é daqueles gajos que quase não dá entrevistas e quase nem dá concertos. Mas, de alguma forma, arranjou maneira de encher esse tal estádio. E isso é no lado do mainstream. No underground também tens muitos beatmakers, rappers de freestyle, batalhas de rap… E a club scene para esse movimento é grande, há sempre eventos aqui e ali, com cyphers e assim. Fui a um desses eventos há uns meses e foi a primeira vez que vi um cypher em muito tempo. Foi óptimo.
Parece-me até que estás a descrever a cena portuguesa [risos]. Noto muitas semelhanças.
Acredito. E olhando em retrospectiva, antigamente não se via um beatmaker a fazer instrumentais para temas pop. Hoje em dia, os temas pop são muitas vezes assentes em batidas de hip hop. O hip hop acaba sempre por influenciar e a pop já o veio buscar. Algumas vezes, a combinação é muito boa; outras, é apenas uma cópia descarada da cultura hip hop.
E que label é esta pela qual lanças o disco, David vs Goliath? Estás relacionada com ela, de algum modo? Noto que as tuas edições têm quase todas esse carimbo.
Essa é a minha editora. Nós, os Looptroop, gerimos isso.
Também é uma loja física?
Temos uma loja digital. Nós vendemos discos e t-shirts. É, basicamente, um armazém para distribuição online.