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Texto: Vera Brito
Fotografia: Inês Ventura
Publicado a: 18/07/2019

Lisboa rendida à cantora brasileira.

Elza Soares no Capitólio: Deus é mesmo uma mulher negra

Texto: Vera Brito
Fotografia: Inês Ventura
Publicado a: 18/07/2019

Comecemos por falar de números: uma rápida pesquisa na Internet diz-nos que este ano, até à data, já morreram pelo menos 16 mulheres vítimas de violência doméstica em Portugal. O número de agressões registadas, mais difícil de contabilizar, é igualmente assustador, e de fora ficam ainda todas aquelas que continuam a sofrer em silêncio um terror diário. Podemos também falar-vos de números claros que dão conta da desigualdade entre homens e mulheres em cotas de empregabilidade, salários, liberdades de expressão, e em tantas outras questões, mas acho que já perceberam a ideia. Resolvemos começar este texto com estatísticas frias para que se perceba que quando Elza Soares nos exulta a que gritemos: “mulheres unidas jamais serão vencidas!” é assunto para ser levado a sério, e sabemos bem que as ideias, quando muito repetidas, correm o risco de perder peso e significado. Esperamos que para lá de toda a festa que se viveu ontem no Capitólio, tenham ficado também sedimentadas as muitas palavras de ordem, luta e de justiça que Elza incansavelmente nos dirigiu.

“Quero gritos! Quero muitos gritos! Quero os gritos das mulheres! Silêncio jamais!”, ouviu-se vezes sem conta nesta noite fria de um Verão bipolar, com a temperatura a subir gradualmente à medida que os corpos se foram soltando na batucada. Depois de uma espera ansiosa, em que um sonoro “Deusaaaa!” ecoou por toda a sala, a cortina que cobria o palco subiu e, após uma entrada dramática, lá estava ela, resplandecente e maravilhosa, coroada num trono dourado, rodeada dos seus dois cavaleiros, Pedro Loureiro e Juliano Almeida, hoje ali súbditos — eles e todos nós — que se retiraram depois de lhe depositar nas mãos um ceptro, um microfone e um beijo de reverência.

“Mulheres!” foi a sua primeira palavra para a plateia já rendida e cedo se percebeu que esta seria uma noite dedicada ao sexo feminino. A entrada a homens foi bem-vinda e encorajada, mas só para aqueles que estivessem também dispostos a procurar a mulher dentro de si — Deus É Mulher e ela existe em cada um de nós, basta dar-lhe voz e libertá-la — era o objectivo para esta noite e desta digressão que vai agora seguir Europa fora. Porta-estandarte da luta feminina, Elza — 82 anos de vida marcados por tragédias de uma crueldade inumana, mas sobretudo por uma resiliência inabalável — debate-se por todo o tipo de opressão e quando se ouvem os primeiros versos, “mil nações moldaram minha cara, minha voz uso pra dizer o que se cala, o meu país é meu lugar de fala”, sentimo-nos sob uma protecção divina numa comoção que nos mareja os olhos.

Apoiada por uma banda magnífica que só lamentamos ter saído ontem prejudicada pelo mau som da sala (não é a primeira vez que o Capitólio nos frustra com uma má experiência sonora) –, as percussões de Kastrup e Da Lua, as vozes de Rubi e Netão, até muitas vezes a de Elza, não soaram com a força e a clareza necessárias, e que o espectáculo assim exigia. Fora isso estava tudo lá, sinergia total, execuções exímias, muito ritmo e cor, num palco onde só há uma rainha mas em que todos brilham. Kastrup é o maestro e motor de tudo, e vai dividindo o olhar entre os seus companheiros de palco e o público que incentiva com o seu sorriso ao mesmo tempo em que nos tira o pulso. Da Lua introduz as percussões com mais cor, como o berimbau que em “Hienas de TV” nos levou a todos para uma roda de capoeira. Mais discretos mas igualmente basilares: Luciano Barros no baixo, Rodrigo Campos e Rafa Barreto nas guitarras. Netão e Rubi complementam a voz imperial de Elza, “roubando” muitas vezes o show — “Benedita” e “Exú Nas Escolas” serão alguns dos momentos pelos quais recordaremos a noite de ontem, na primeira, Rubi requebrou-se pelo palco com uma sensualidade agressiva que nos deixou presos de todos os seus movimentos, na segunda assumiu os versos cortantes de Edgar, que mereceram várias ovações do público atento à sua mensagem incisiva.

Um alinhamento obviamente concentrado no último trabalho da brasileira, Deus É Mulher, com algumas paragens no aclamado A mulher do fim do mundo e a obrigatória “A Carne”, encheu as medidas a todos os que quiseram gritar, dançar e se libertar de qualquer peso. Músicas tão ricas na sua composição como nas mensagens: “Língua Solta”, “Clareza” e “Dentro de Cada Um” foram momentos solenes de respeito e reflexão. “Banho”, repetida no encore, fez escorrer suor quando todos já estavam mais soltos e cientes de que era a derradeira oportunidade para sacudir o corpo de toda a tensão acumulada e foi a forma perfeita para nos despedirmos da mulher que ontem, mais uma vez, nos ensinou que para todos nós, mas muito em especial para as mulheres, não existem limites, tabus ou preconceitos, que não possam ser quebrados e o Capitólio vibrou em uníssono: “eu não obedeço porque sou molhada!”. Forte, rebelde, eterna fonte de juventude, majestosa, humana, inspiradora, maternal, áspera, doce, honesta — Elza Soares é impossível de definir numa palavra só. Talvez a única forma justa de o fazer seja adaptando a ideia que inspirou Dylan Chenfeld há alguns anos: vimos Deus, e ela é negra.


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