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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/04/2021

A religião, o espaço e a (des)afinação.

Ellen Arkbro: “Penso que algo acontece com a tua escuta quando estás numa igreja porque existe uma certa consciência”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/04/2021

Tem formação em jazz, mas foi nas propriedades tonais da afinação que encontrou o seu verdadeiro caminho. A par de Kali Malone, Caterina Barbieri ou Maria W Horn, Ellen Arkbro integra uma geração notável de músicos e compositores com estreitas ligações ao panorama da música experimental de Estocolmo, onde nasceu, e que tem em espaços como o Fylkingen ou o Elektronmusicstudio os seus principais berços.

A música corre-lhe no sangue: o amor que o seu pai nutre pela música pop informou as suas primeiras memórias musicais, mas foi na banda que formou aos nove anos, juntamente com as suas amigas, que teve o seu primeiro contacto com a composição.

A relação com o Elektronmusikstudion, uma instituição financiada pelo estado sueco, levou-a a experimentar com electrónicas e programação pela primeira vez, mas a experiência em grupos corais e o interesse pelo jazz e outras formas de música improvisada encaminharam-na para o estudo de sistemas de afinação pouco convencionais como a afinação justa, técnica que aprofundou sob a tutela do americano La Monte Young e da esposa Marian Zazeela, em Nova Iorque, e mais tarde, em Berlim, com o alemão Marc Sabat.

A propósito da sua vinda a Portugal nos próximos dias 24, 28 e 29 de Abril, em Serralves, na Igreja de Cedofeita e no Teatro do Bairro Alto*, respectivamente, o Rimas e Batidas esteve à conversa com a compositora sueca sobre temperamentos, o papel do espaço na composição e as valiosas lições de La Monte Young.



Podes falar-me um pouco sobre o teu passado? Qual foi o teu primeiro contacto com música?

Tenho ouvido e feito música desde que me lembro. Eu cantava em coros de igreja — e fiz parte de uma banda rock a partir dos meus nove anos. A nossa sala de ensaios era na cave da igreja que eu frequentava, onde passávamos horas a aprender a tocar covers de músicas skate-punk. Mais tarde – eu ainda estava a fazer muita música de coro – fui para uma escola de coro e comecei a interessar-me em música jazz, o que eventualmente me levou a outras formas de música improvisada, música mais experimental.

Também tiveste a oportunidade de estudar com La Monte Young e a sua esposa Marian Zazeela em Nova Iorque. Podes falar-nos um pouco sobre esta experiência? 

Sim, foi uma experiência fora do normal. Ser convidada para estar na casa deles e conhecê-los tão intimamente foi muito especial. Para mim, esses aspectos foram os mais recompensadores, o que me moveu mais. É um tipo de lição que não consegues expressar bem em palavras, mas há algo neles e na forma como se relacionam com o seu trabalho que me influenciou muito. A forma como eles vivem dentro do mundo da sua própria arte e música, como a respiram e como desenham as suas vidas em torno destas, e também o modo como eles estavam a viver e a passar o seu tempo pareciam, por si só, uma forma de arte. Isso foi muito inspirador.

Suponho que o teu interesse pela afinação venha daí.

Sim. Quanto mais penso nisso, mais eu percebo que já estava interessada em entonação há muito tempo sem saber. Não realmente a pensar na entonação de forma teórica, mas interessada nesta musicalmente. Acho que vem tanto da música coral como da experiência que tenho em afinação. É uma maneira natural de cantar. Quando cantas em coros, por exemplo, tu não cantas uma terceira temperada, é por isso que é tão difícil para um coro cantar com piano, porque tu na verdade fazes uma entonação diferente. É uma entonação mais natural, portanto as terceiras são sempre mais graves e suponho que já estava interessada nisso. E também por estudar muita música jazz, que é uma parte muito importante da expressão. Mas depois, mais explicitamente, quando descobri o trabalho de La Monte Young.

E como é que surgiu este convite? 

Através do meu parceiro Marcus Pal, que também é músico e compositor e com quem colaborei muitas vezes, nomeadamente no meu último álbum CHORDS. Ele foi para Nova Iorque estudar com eles, então já lá tinha estado três ou quatro vezes antes de mim a ajudá-los com os espetáculos e a fazer todo o tipo de trabalhos.

Fazes parte de uma geração de compositoras notáveis ​​como Kali Malone, Caterina Barbieri ou Catherine Christer Hennix com ligações muito próximas a espaços como o Elektronmusikstudion ou o Fylkingen. Sentes que a Suécia – e especialmente Estocolmo – incentiva a criação de sinergias entre artistas similares?

Uhm, não sei. Quero dizer, para mim isso aconteceu noutros lugares, principalmente. Não em Estocolmo. Mas é claro que faz uma enorme diferença ter estas instituições financiadas pelo Estado e abertas a qualquer pessoa que esteja interessada. O Elektronmusikstudion é um caso muito raro no mundo e foi assim que eu comecei a fazer música electrónica e a experimentar com estas coisas. Acabei a inscrever-me nos seus cursos e comecei a trabalhar nos estúdios e a experimentar com Buchla, caso contrário não faria ideia do que estava a fazer, que é o que acontece à maioria das pessoas que começam a trabalhar com esse instrumento.

Mas acho que as pessoas em Estocolmo são mais isoladas do que na maioria dos sítios. Temos muitas pessoas solitárias, muitas pessoas nos seus próprios cubículos e os Invernos são muito escuros. Portanto diria que é precisamente o contrário.

A Suécia é também conhecida por lançar alguma da mais vanguardista música popular. Como é que surgiu este teu interesse pela música clássica e electroacústica?

Como disse anteriormente, toco em bandas desde os nove anos e o meu pai ouvia montes de música pop, ele gosta mesmo muito de música pop. Foi assim que cresci e foi isso que deu forma ao meu mundo musical. Acho que entrar na música experimental e electroacústica foi, na verdade, o resultado de estar a estudar jazz, porque estudo jazz há algum tempo e lembro-me que estava a ficar deprimida, literalmente. Portanto, foi uma maneira de encontrar uma nova relação com a música onde nenhuma das regras conhecidas anteriormente se aplicavam. Penso que foi basicamente isso que me levou a fazer e a explorar música electrónica, a começar a tocar com sintetizadores e a ser mais experimental. E depois enveredar pela programação de som abriu este mundo da afinação que me levou a querer escrever para instrumentos. Isso veio bem mais tarde no processo, na realidade. Tenho sido convidada para escrever canções para outras bandas também. Eu nunca tinha composto música de câmara antes, mas isso cresceu com o meu interesse por afinação, que veio muito do estudo de sintetizadores e computadores. E Estocolmo tem um óptimo cenário para música improvisada que também foi o que me formou e atraiu mais.

O teu trabalho destaca-se pelo uso de sistemas tonais incomuns e pela atenção às qualidades do som. Podes-me falar um pouco sobre o teu processo de gravação?

Trabalho muito com órgãos e síntese em simultâneo, com acordes, texturas e outros instrumentos em combinação com a síntese. O processo de gravação é muito sobre como capturar algo que está a acontecer no espaço, essa é a parte mais difícil. Como é que capturas algo que precisas de experimentar dentro de um espaço? Tu precisas de ser capaz de estar onde o som está e caminhar à volta dele e sentir a sua textura para que o possas alcançar, portanto, como é que capturas algo assim? Acho que tem mais a ver com aceitar que são dois meios completamente distintos para experimentar algo ao vivo no espaço e para tê-lo registado em disco.

Com o álbum CHORDS, acho que tive que entender e aceitar que “ok, o que eu quero gravar não é possível de ser gravado”, porque está conectado ao teu corpo e a mover-se no espaço. Podes mexer a cabeça e controlar a maneira como ouves o som. Não há como capturá-lo. Eu podia andar com um microfone no espaço e mover-me à sua volta e gravar isso, mas isso distrairia o ouvinte. Entendes o que quero dizer?

Um pouco como um theremin, talvez…

[Risos] Sim, de certa maneira. Isso é o mais interessante sobre estas texturas muito ricas que funcionam num espaço como este. Quando te moves nele, ouves diferentes acordes e diferentes melodias, dependendo de onde te encontras posicionado no espaço. Portanto é um pouco como mexer num theremin, suponho.

O espaço desempenha um papel importante na tua música, portanto.

Sim, totalmente. Desempenha para toda a gente, mas acho que talvez mais explicitamente com o trabalho que tenho vindo a fazer ultimamente. Não precisa de ser um espaço específico. Tem que ser um espaço reverberante, não pode ser um estúdio seco, se não todas as frequências são absorvidas pelas paredes. Tem que ser uma sala com paredes duras, onde o som ecoa. Pode ser uma sala pequena, uma sala grande, uma igreja gigante. Portanto, é mais sobre passar o tempo no espaço e a trabalhar com a ressonância da sala.

É interessante como vens de uma formação mais clássica, mas ao mesmo tempo editas por uma label conhecida por lançar música maioritariamente electrónica e de dança. Como surgiu esta relação com a Subtext? 

Conheci o James [Ginzburg, fundador da Subtext] aqui em Berlim na cozinha de um amigo, o Yair Elazar Glotman, que também lança música pela Subtext. Eu fiquei num quarto do apartamento dele por um semestre quando estava a estudar aqui, há cinco ou seis anos, e o James estava lá. Ele estava a falar sobre como se encontrava em digressão com os Emptyset e eu ainda não estava a par desse mundo naquela altura, então pensei, “oh, quem é esta pessoa?” [risos], mas ele tinha ouvido uma gravação de uma peça do For Organ and Brass que eu tinha feito na igreja alemã em Estocolmo e abordou-me várias vezes e perguntou se queria gravar algo para lançar na editora dele. Eu nunca tinha pensado realmente em editar um álbum, não estava aí mentalmente. Quando ele me escreveu pela primeira vez acho que nem lhe respondi, ignorei apenas porque fiquei muito stressada. Mas depois, passado algum tempo, decidimos gravar essa peça, que foi um longo processo de planeamento porque tínhamos de encontrar o órgão e os músicos certos e coordenar tudo. Conheci o James através disso e agora é um dos meus melhores amigos.

Sobre os teus espectáculos em Portugal. Vais tocar em dois contextos muito diferentes: primeiro vais apresentar uma peça para acordes de guitarra, depois vais tocar duas peças para órgão e trio de metais numa antiga igreja românica. Já tiveste muitas oportunidades para tocar em igrejas antes?

Sim, tive muitas chances. É o local mais comum para mim, na verdade, o que também é interessante em relação a essa cena club de Berlim da qual também faço parte, ainda que indiretamente, devido à minha relação com a Subtext. Mas agora tenho que falar com o padre e as pessoas que trabalham na igreja, essas são as pessoas com quem comunico quando dou concertos. E normalmente tenho vários dias para trabalhar na igreja, para me familiarizar com o órgão. Costumo escrever uma nova versão da peça para esse órgão e espaço específicos. É o caso agora em Cedofeita onde terei alguns dias para ensaiar com o órgão antes do espectáculo… e também com um trio de metais do Porto.

Sentes que tens uma ligação diferente com este tipo de espaços?

Eu cresci numa igreja, então tenho esse tipo de conexão, mas sei que nem toda a gente tem. Penso que algo acontece com a tua escuta quando estás na igreja porque existe uma certa consciência, és um pouco mais humilde e acho que essa humildade te abre a novas experiências. Sinto que as pessoas estão mais presentes e curiosas.

Consideras a tua música espiritual? 

Sim, definitivamente. Resume-se tudo a isso [risos]. Não no sentido literal, claro, apenas a experiência em geral. Mas sim.

O que podemos esperar destas performances?

Tanto os espetáculos em Serralves como no Teatro do Bairro Alto – e também na Igreja da Cedofeita – serão concertos lentos e meditativos. Mas também trarão algo diferente. É possível que cante uma das minhas “canções pop” com o trio de metais.

O trabalho que vais apresentar com a Banda Sinfónica Portuguesa, Chordalities, é uma nova peça para órgão ainda por lançar. Podemos contar com música nova para os próximos tempos?

Sim, eventualmente. Tenho trabalhado em muita música nova mas ainda estou no processo de as gravar e compreender. Acho que tenho sido cada vez mais lenta no meu processo infinito de composição. Costumava levar tempo, mas agora sinto que leva ainda mais tempo.

Também tenho escrito canções e arranjos para diferentes conjuntos de câmara. Na semana passada estava a trabalhar com um trio de metais de Berlim com o qual já tinha trabalhado antes e estávamos a gravar algumas das minhas… não lhes chamaria de canções pop, mas canções. Estou ansiosa por mostrar isso ao mundo. Também tenho colaborado com um pianista, um músico de jazz de Estocolmo chamado Johan Graden. Não nos conhecemos há muito tempo, mas temos trabalhado juntos num álbum com vários músicos de Estocolmo. Isso também será apresentado ao mundo eventualmente, antes do final do ano, espero.

Sobre a peça Chordalities, trata-se apenas de um título em construção. Ainda não tenho um título definitivo [risos]. Fiz várias tentativas de gravação, mas ainda não fiz “a gravação”, a que ainda vai ser lançada. Vai ser a primeira vez que a vou apresentar ao vivo, na verdade. Tenho-a tocado apenas para mim mesma em igrejas e a tentar compreender como a música é. Não é sobre afinamento, de todo. São acordes mais complexos para orgão, como se de um sintetizador se tratasse, onde jogo com as diferentes pausas e os diferentes sons do orgão.

Eu sei que os artistas não costumam gostar de falar sobre as suas influências, mas não posso deixar de notar o quanto a tua peça Mountain of Air soa a um dos instrumentais do Arthur Russell. Li numa entrevista que o Tower of Meaning é um dos teus álbuns favoritos, queres falar um pouco sobre isto? E quais são as tuas outras referências?

O Arthur Russell é definitivamente uma grande influência. Acho, especialmente nas peças que compõem o Tower of Meaning, que há algo ali que tem a sua própria… qualidade, ambas sendo tão claras e rígidas, mas também muito vivas ao mesmo tempo.

Ouvi muito My Bloody Valentine também. A forma como as misturas das músicas deles soam, em que tudo parece um objecto que podes segurar com as tuas próprias mãos. É tudo tão físico e interligado de certa maneira, como se de um objecto sonoro se tratasse. A Catherine Christer Hennix também, como mencionaste anteriormente, o Mark Fell – acho que ele tem uma maneira de lidar com o som que é muito original – e também Oren Ambarchi, Robert Wyatt, David Bowie [risos]. Podia passar pela minha coleção de CDs e nomeá-los a todos.

Qual seria a tua colaboração de sonho

Essa é uma pergunta assustadora porque pode tornar-se uma realidade [risos]. Talvez o Robert Wyatt, seria algo muito especial.


* O concerto no TBA foi cancelado. A informação sobre reembolsos está em teatrodobairroalto.pt.

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