Deve-se à artista sonora e performer vocal Ece Canlı generosas doses do carácter inovador que uma nova corrente musical trouxe até bem perto. Com uma trajectória que cruza com frequência os domínios artísticos, políticos e até científicos, aborda um território por cartografar, pelo novo ou por descrever e atingir. O disco que cuja estreia acontece em Lisboa já amanhã, dia 8 de Maio no Teatro do Bairro Alto, desponta uma justificada e elevada expectativa.
Abordando uma visão holistica entre o seu eu e o espaço, descreve melhor e detalha o que a sua música acarreia e pode indicar de futura visão. Dos domínios da expressão interior ao exterior, da escala da Terra ao cosmos. O novo álbum traz fundamentos que apontam para além da escuta em disco, que um concerto pode e deve acrescentar, mas que a partilha das ideias mais concretas e melhor explanadas devem catalisar numa potenciação da obra.
Em entrevista ao ReB, Ece revela pontos de partida, processos de construção e condução. Como se idealiza a obra e se conta com criativas colaborações, mesmo quando tudo parece, à partida, um acto criativo artístico de alguém que se vai mostrando como descodificadora de mistérios insondáveis e criadora de campos desconhecidos. Chegaremos a um outro qualquer lugar com a sua obra, nunca à casa de partida.
Com S A C R O S U N dás esse passo que se comenta como de grande desafio, o da feitura de um segundo disco, depois de um álbum de estreia bem sucedido. Como viveste esse processo?
Foi um processo longo — excruciantemente longo — e, atrevo-me a dizer, doloroso. Sei que soa dramático, talvez até cliché, mas não encontro outras palavras que descrevam melhor a experiência. O meu primeiro álbum nasceu de uma série de improvisações ao vivo e foi gravado e lançado mesmo no limiar da pandemia. Isso significou que não cresceu no silêncio controlado de um estúdio, mas sim no ruído, no risco e na energia do desempenho ao vivo. VOX FLORA, VOX FAUNA respirou, transformou-se e amadureceu em tempo real. Não teve qualquer pós-produção da minha parte — foi inteiramente gravado e misturado pelo José Arantes numa só semana.
Desde então, mergulhei numa série de projetos: trabalhos a solo, colaborações, composições, performances conceptuais, instalações sonoras — todos eles a lançar sementes, a fazer germinar ideias, a acumular camadas de matéria sonora e conceptual à espera de ganhar forma. Eventualmente, rendi-me à constatação de que o único caminho possível era assumir por completo a produção. E foi aí que chegou o alívio — e também a dor.
Anos de fragmentos acumulados — inspirações, referências, gravações de campo, ensaios caóticos — exigiam agora forma, coerência, estrutura. Aquilo que antes era aberto e fluido precisava subitamente de limites. O processo tornou-se um ritual solitário: meses no meu estúdio em casa, rodeada de fantasmas, a enfrentar dúvidas, autocrítica e um perfeccionismo implacável, a perseguir sons através de explorações intermináveis. Não foi fácil — e sei que não estou sozinha nisto. Muitos músicos e artistas auto-orientados conhecem bem o paradoxo da criação solitária: a sua liberdade e o seu peso.
S A C R O S U N é, desde logo e no título, uma obra solar, em torno do sol, numa viagem astral em busca da luz, e surge num outro rumo em relação ao primeiro VOX FLORA, VOX FAUNA. Concordas que agora a tua música assumiu um heliocentrismo e que antes seria mais centrada na Terra como elemento central? Digamos, por simplicidade, que há uma mudança no sentido da força, que era atractiva e agora é expansiva. Como vês isso?
Sim, exactamente. Direcção, orientação e intenção são os pilares fundamentais na conceptualização do meu trabalho. Cada vez mais, desafio-me a explorar diferentes vectores desta matriz. VOX FLORA, VOX FAUNA não era propriamente geocêntrico, mas estava enraizado — telúrico, aéreo, até mesmo fitológico. Tendia para o acústico, algo que podia ser incorporado e reproduzido em qualquer contexto ao vivo. Mas quando começamos a expandir os limites — escavando em direção ao centro da Terra ou alcançando os confins da aerosfera — a gravidade altera-se. E com ela transforma-se todo o nosso ponto de referência: física, conceptual e sonoramente. É aí que entra o heliocentrismo. Ele não só desloca a perspectiva; como também amplifica frequências ocultas, permitindo que se desdobrem e girem em novas órbitas. Nem sempre são visíveis ou audíveis ao ser humano, mas existem. Nesse sentido, S A C R O S U N não está menos enraizado na Terra — é o que acontece quando o enraizamento se transforma em expansão. E para mim, tanto o seu significado metafórico como o seu potencial são profundamente políticos.
A tua música era anteriormente convocada através de chamamentos instrumentais (ocarinas) e vocais, mas a tua voz agora expande-se e é suportada por elementos musicais etéreos, com mais electrónica, também ela expansiva. No plano criativo houve um novo paradigma?
Como muitas vocalistas e praticantes sonoras, o meu processo criativo começa frequentemente num de dois lugares: com a voz e os instrumentos físicos — aquilo que o corpo traz — ou, sendo uma pessoa profundamente mental, inteiramente na mente. VOX FLORA, VOX FAUNA nasceu sobretudo da combinação de ambos. Estes elementos moviam-se em conjunto, de forma intuitiva, em direção a um destino comum, um espaço onde cada um pudesse existir plenamente, tal como era. O resultado soava exatamente como ele próprio: maioritariamente cru, vivo e sem filtros.
Este novo álbum, no entanto, desdobrou-se de forma diferente. Embora essa base somático-musical tenha permanecido, algo mais entrou no processo — uma sobreposição de pensamento e intuição, razão e sensação, a atuarem simultaneamente. Os sons naturais, instrumentais e vocais não foram apenas tocados; foram processados, filtrados, esticados para além das suas formas originais. Alguns soavam infravermelhos, outros solares, alterados ao ponto de habitarem uma dimensão espectral diferente. A maior parte do material sonoro tem origens corporais e artefactuais — objetos percutidos, voz estendida, manipulação da respiração ou da pele — mas, quando chegam ao ouvinte, já atravessaram uma espécie de metamorfose radiofónica. Estão transpostos, redesenhados por forças tanto conceptuais como elementares. Ao contrário do meu trabalho anterior, este álbum exigiu uma pré e pós-produção rigorosa. Cada fase — desde o gesto inicial até à mistura final — foi cuidadosamente trabalhada, não para alcançar a perfeição, mas para captar com precisão a própria transformação.
Na parte de estúdio, na mistura estiveste ao lado de Luís Fernandes, músico muito ligado aos campos da electrónica modular. Todo um propósito. Podes comentar essa escolha e a ideia nesse processo?
Quando abordámos o Luís pela primeira vez, sinceramente não achei que ele tivesse tempo — nem disponibilidade mental — para se dedicar à mistura do álbum de outra pessoa. Ele é um daqueles raros polímatas: está constantemente a mover-se entre direcção artística, produção musical, composição, ensino e inúmeras outras vias criativas. E é precisamente isso que me fascina no Luís: uma energia multidimensional com a qual me identifico profundamente, alguém que se alimenta de muitos lados, que não se sacia apenas numa única fonte.
A sua decisão de aceitar o desafio pareceu-me um alinhamento perfeito, e o processo que se seguiu foi dos mais fluidos que já vivi. Desde o início, o Luís foi claro: não é o tipo de “produtor” que sente necessidade de exibir domínio técnico só para seguir modas ou soar como aquilo que está em voga. O seu compasso é mais subtil, mais enraizado: ele escuta, sente, e segue a intuição. E, claro, ouviu a minha visão com atenção.
A fluência do Luís nos mundos do som eletrónico modular, analógico e digital deu ao álbum uma perspetiva sonora que eu, sozinha, não conseguiria alcançar. Sobretudo tendo em conta a tendência “maximalista” do álbum — onde frequentemente ultrapasso limites, abraço o excesso, mergulho em saturações graves e texturas densas —, o Luís tornou-se uma espécie de dramaturgo sonoro. Não silenciou nem atenuou a intensidade; esculpiu-a. Mostrou-me como afirmar algo sem gritar — ou, dito de outra forma, como canalizar força através da clareza.
Na concepção visual, antes tinhas trabalhado com a Ana Torrie para a concepção fascinante de VOX FLORA, VOX FAUNA. Agora em S A C R O S U N escolhes a arte de Aaltar System & Dayana Lucas. Há também aqui uma mudança que partiu de uma ideia? Qual foi?
Tal como este álbum expandiu a sua relação sonora com a Terra para algo mais magnético e sintonizado com o cosmos, o percurso visual seguiu um caminho semelhante. A contribuição preciosa de Ana Torrie — uma xilogravura reinterpretada e serigrafada por Miguel Carneiro — enraizou o projeto no táctil, no manual e analógico, ecoando a materialidade de trabalhos anteriores. Estas técnicas, talhadas e impressas à mão, transportam consigo a crueza e o ritual do toque — algo profundamente ressonante com as origens deste álbum. Mas era evidente que a linguagem sonora de S A C R O S U N se encaminhava para o digital e para o “mais-do-que-humano”, um território onde o “real” não é apenas captado, mas transfigurado. Senti a necessidade de que o universo visual refletisse essa transformação. Foi então que me cruzei com o trabalho de Aaltar System (aka Daniel Martins). No momento em que mergulhei nas suas atmosferas visuais densas e sombrias, algo fez clique — foi como encontrar o equivalente visual do submundo sonoro do álbum. E depois veio a Dayana Lucas, uma grande amiga e uma das designers que mais admiro, que se juntou ao processo com a sua mistura inconfundível de visão, generosidade e um compromisso incansável. O caminho até à imagem final não foi linear; serpenteou, desviou-se, atravessou múltiplas camadas de experimentação. Mas o processo colaborativo em si foi raro e elétrico.
O videoclipe “Persistence of the circle”, do tema que encerra o disco, é uma obra da notável dupla de artistas visuais Mariana Caló e Franscisco Queimadela. Foi outra escolha seguramente cheia de um propósito. Nestas imagens assume-se um claro e uma talvez agregadora ideia conceptual do todo o disco. Entra-se num campo que desafia a perda de gravidade, em que a poeira se expande e suspende no espaço, onde se joga com a luz, na difração ou na reflexão. O corpo que recebe a luz, a mesma que cega no olhar directo mas que é imprescindível para viver, que ilumina o espírito. Podemos dizer, por simplicidade, que esta música assume uma tentativa de desvendar os segredos da luz?
Que descrição bonita! Sinceramente, não acho que consiga dizê-lo melhor. Talvez apenas acrescentar isto: era um desejo impossível, uma vontade inatingível de captar o segredo da luz. Talvez não a luz em si, mas o rasto que ela deixa — uma utopia sempre distante, à qual continuamos a tentar chegar. Está sempre lá, mas sempre um pouco além do toque.
A verdadeira “artífice da luz” do vídeo foi a Mélanie Ferreira — uma artista e bailarina notável, cuja presença trouxe essa luz à existência antes mesmo de eu saber como as músicas iriam desdobrar-se. O seu corpo parecia sustentar o círculo, insistir no seu ritual, muito antes da música encontrar a sua forma final. Nesse sentido, a sua imagem precedeu o som. A lente da Mariana Caló e do Francisco Queimadela foi essencial para dar forma visível ao que é metafísico — captar a subtileza da gravidade em mudança, tornar tangível “a poeira como moeda do universo”, revelar o que o ciclo solar imprime nos corpos e na matéria. E nada teria tomado a forma que tomou sem a visão e colaboração da minha querida amiga, artista e coreógrafa Catarina Miranda, cujos conceitos imaginativos e adereços escultóricos trouxeram clareza a muitas das metáforas visuais. A sua co-criação foi indispensável — uma arquitetura silenciosa por detrás de grande parte do que emergiu. Foi uma experiência extraordinária ver tantos dos meus pensamentos — impossíveis de pôr em palavras — ganharem forma através das mãos desta equipa estelar de artistas.
A ideia contida no disco partiu de um momento chave que foi a tua performance em 2021, na Rampa Associação Cultural do Porto, “ANABIOSIS: DREAM IN TECHNICOLOR”. Há, aliás, uma faixa do disco à qual dás precisamente o nome “Dream in Technicolor”. Que se passou nessa performance e como se deu esta ideia?
Essa performance nasceu de um convite da RAMPA, no âmbito do ciclo sobre o Cosmismo Russo, com curadoria de Alexandra Balona e Miguel Amado. Quando a Alexandra me convidou pela primeira vez, não fazia ideia do que poderia contribuir — nem compreendia totalmente a densidade conceptual do tema —, mas quanto mais me mergulhava no Cosmismo, mais tudo começava a cristalizar. Dei por mim a entrar num universo que se estendia da arte especulativa à ciência esotérica, da literatura metafísica a sonhos tecnológicos absolutamente delirantes. Descobri que o Cosmismo é, simultaneamente, uma investigação filosófica profunda e um meta-futuro tecnocrático e inquietante.
Depois de quase um ano de pesquisa, cheguei ao conceito de anabiose — que significa literalmente um estado induzido de animação suspensa, ou o retorno à vida após uma morte aparente. Esta noção foi central em muitas das visões cosmistas: rejuvenescimento do sangue, ressurreição dos mortos, expansão humana para exoplanetas — tudo em nome de conquistar a mortalidade e estender a vida humana através do tempo cósmico. Curiosamente, muito tempo depois de já ter batizado a performance como “ANABIOSIS”, descobri um poema escrito em 1922 pelo biocosmista Alexander Yaroslavsky, com exatamente o mesmo título. Essa sincronicidade só aprofundou a minha ligação ao termo e à sua ressonância estranhamente familiar com a vida suspensa, os futuros especulativos e a persistência de um desejo utópico.
Mas claro, a pergunta essencial impõe-se: quem é que pode habitar esse futuro? E mais importante ainda: quem é que fica excluído dele? A minha resposta foi criar uma persona suspensa na fronteira do renascimento — presa na eternidade de um segundo antes da reanimação. Uma das peças centrais da performance, “Dream in Technicolor”, foi o único momento abertamente lírico — uma invocação em spoken word onde essa figura viaja no tempo, refletindo sobre a ressurreição em meio a catástrofes humanas, colapsos ecológicos e violências históricas. Essa figura é punida, demonizada, abatida, mas volta a reencarnar, para além da moralidade binária entre a morte e a salvação. É uma carta contra-histórica a um “outro eu”; uma refabulação do tempo cósmico como insurgência, como resistência. Uma assombração solar.
Muitas das ideias dessa performance acabaram por infiltrar-se em S A C R O S U N, sobretudo o tom ambivalente e a posição crítica perante o fascínio pelo cósmico. Não me interessa romantizar as energias solares ou celestes — elas fazem, sem dúvida, parte de nós, e são profundamente cativantes. Mas enquanto artista, o que me move é repolitizar essas dinâmicas: questionar quem as controla, a quem servem, e como podem ser reconfiguradas para lá das mitologias dominantes da transcendência e da tecno-utopia.
Para terminar e em modo mais reflexivo. É uma feliz coincidência, ou haverá até uma inexplicável justificação nisso, mas nestes tempos recentes vamos assistindo a uma observação de tempestades solares nos campos magnético da Terra, na forma de auroras boreais, mais a sul, e este teu disco traz muito dessa linguagem da matéria e da interacção solar. Já tinhas pensado nisso?
Se não for coincidência, talvez seja sincronia magnética, daquelas que puxam fios invisíveis através do tempo, do espaço e da consciência. Penso no ciclo solar de 11 anos, com o seu fluxo e refluxo de erupções e manchas solares, que dizem repercutir nos ritmos da natureza e também em nós. O cosmista russo Alexander Tchijevsky propôs que os ciclos solares não moldam apenas o clima, mas orientam as marés da própria história: revoluções, levantes, grandes viragens no humor colectivo.
Talvez estejamos mesmo no centro de um desses ciclos — um pulso solar vasto que se manifesta não só em tempestades e tremores sísmicos, mas também em tensões sociais crescentes, violência descontrolada e uma ousadia aterradora por parte do poder. Mas se estas perturbações são sinais, então talvez também sejam presságios de uma mudança iminente — um impulso não apenas de destruição, mas de despertar. Claro que não falo a partir da linguagem da ciência. Falo mais a partir do lugar da sonhadora, alguém sintonizada com a linguagem silenciosa dos padrões, tentando criar novos e mais significativos.