A matéria é o ponto onde tudo existe e não existe em tempo real: é um comportamento molecular, uma conjunção de átomos, íons e partículas elementares pela qual são compostas. Na ciência, nada aparece por acaso, tudo se cria, nada se perde: é a língua-mãe que explica o nascimento e a morte das coisas. A ciência, dentro da mente de Alexandra Drewchin, é o motor que guia principalmente o seu trabalho. Conhecida como Eartheater, nela há uma vontade inexplicável de ler notas musicais como um trabalho científico, uma interpretação que nos leva ao cerne não só da mente humana, mas da sua existência – ou não existência. Em Trinity, a produtora presta tributo aos três estados presentes no mundo físico – líquido, gasoso e sólido – como forma de classificar e identificar os limites da sua mestria: um disco conceptual que tende a derreter de formatos pop concretos para miasmas ominosos num abrir e fechar de olhos.
A música aqui ultrapassa fronteiras e cenários, tecendo grandes muralhas de som, com vagas voluptuosas de electricidade que se esmagam umas contras as outras. É um processo imersivo, agressivo: uma mescla de paisagens sónicas que mal deixam respirar e que lentamente dão-se a conhecer pela voz alienista e etérea de Drewchin. Em contraste com trabalhos anteriores, este não é música de fundo, é antes um corpo holístico onde a paleta alargada de referências não devem ser consumidos de forma isolada, fazendo parte da mesma nuvem, do mesmo caos, quase até ao seu não reconhecimento. Neste disco, não há um aviso próprio de início e de fim, mas uma exigência incomensurável de sucumbir o ouvinte aos momentos fantasmagóricos que nos fazem afastar por momentos, mas que nos agarram contra a nossa vontade pela mão. Este não é um caminho fácil de se seguir, mas antes uma viagem turbulenta por um universo desconhecido e distante. Que magia negra, que plena obscuridade. Não havemos de sair daqui vivos.
Eartheater dá-nos a conhecer um lado abstracto logo na primeira faixa, “Prodigal Self”, que nos introduz a processos mecânicos, percussões íngremes e vozes quase diabólicas. Há pequenas referências a Diamanda Galás e ao movimento hypnagogic; no entanto, o produto final é somente dela, algo que tem vindo progressivamente a crescer nos últimos anos e que se manifesta aqui em força total. As batidas de EDM deslizam entre um lado e o outro, mas funcionam como ferramentas de texturas ricas e firmes contra o resto das composições brumosas.
Se olharmos, por exemplo, para IRISIR, editado o ano passado, o som era mais disperso, mais focado em espalhar-se pelo espaço de modo aleatório, sem nada concreto a que se pudesse agarrar. Trinity pega nestas faltas e dá-lhes uma nova oportunidade: aproxima-se da dinâmica tradicional da música de dança, acrescentando-lhe ao mesmo tempo arranjos mais densos, estonteantes e cismáticos. Para cada elemento raro de fácil digestão, aparece outro de seguida mais complexo e oblíquo que o anterior. “High Tide” anda em contramão com “Supersoaker” ao serem completamente antagónicas: a primeira é composta por sintetizadores cintilantes, riffs vibrantes e robustos, enquanto a segunda já é mais intrincada e cenhosa. Já “Pearl Diver”, na segunda metade, destaca-se pelo individualismo sónico que nos remete para o trance do final dos anos 90.
Ao longo deste disco, a ciência é novamente chamada como fio-condutor, mais como forma de puxar Drewchin para o mundo dos mortais. Ela salta entre estados com aptidão e mostra-nos a facilidade com que alcançou os domínios mundanos deste lado. Em “Preservation”, o seu poder é inegável: “I’m gonna stay ‘til the ice goes/ I’m just gonna stay ‘til the tough love/ Gonna stay ‘til the solid/ Rain, rain”. No entanto, em cada tema coabitam ocasiões emocionais diferentes, que variam entre uma serenidade mais palpável a uma posição mais catártica. Há uma intensidade que nos desvia de uma ideia clássica de canção, como também de qualquer vínculo de fácil interpretação. Trinity é onde a voz de Eartheater está mais focada, onde se verifica com atenção a mudança entre estas duas disposições. Em camadas afinadas com reverberações, as letras são geralmente difíceis de definir.
À superfície, é-nos apresentado canções de amor, mas a ciência ensina-nos a questionar tudo o que recebemos em primeira instância. Os seus traços de afecto escorrem de maneira confusa e contraditória, numa dupla negativa e em sussurros pouco inteligíveis: “You know that I’m the kind/ I don’t wanna regret/ Something that I didn’t do/ Rather than something I/ Something that I didn’t do”, canta em “Runoff”. A canção é esférica e faz-nos correr sempre no mesmo sentido. Tudo começa com uma afirmação que quase parece uma hesitação, e que, no final, se transforma num total abandono. Não há aqui qualquer ponto referencial e o foco perde-se consoante a produção ambiental e vintage. É verdade que a presença que se assume em cada faixa é importante para o desenrolar deste corpo, mas, no seu fim, a mensagem que conseguimos adquirir é ambígua. Talvez para ela perder-se em ritmos evasivos e escuros significa um motivo de atracção ao seu mundo, mas nem sempre funciona. De qualquer maneira, é uma chamativa aliciante e faz-nos questionar as noções que temos de música electrónica, de barreiras sensoriais e de existência terrestre. Ao ouvirmos Trinity estamos totalmente perdidos no seu tempo e deixamo-nos vaguear pelas suas imagens, pelo seu volume e pela sua envolvência. É um sonho febril cuja cura a ciência ainda não conseguiu apurar.