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Fotografia: Wanja Wohoro
Publicado a: 26/02/2019

Articular os géneros e as texturas que mais se gosta sem nunca descurar as raízes.

EA Wave: mais do que uma comunidade, a vontade de mudar um paradigma

Fotografia: Wanja Wohoro
Publicado a: 26/02/2019

Parte integrante do colectivo queniano Cosmic Homies O.N.E. (sigla de Only One Everlasting), Karun Mungai é uma cantora e compositora que se expressa nos campos do hip hop, soul e afro-pop. Em 2014, editou o primeiro trabalho a solo de longa-duração, Sun & Moon, onde se conjugam duas importantes facetas (o lado ligado ao sol, mais jovial e despreocupado; o lado da lua, com mais alma e maturidade) e através do qual a artista medita sobre a sua vida e as etapas que a levaram a estabelecer-se como mulher e artista a solo.

Dois anos depois do disco de estreia, Karun lança Indigo, um EP que, como a própria explica em comunicados oficiais, “procura tirar os ouvintes da África Oriental das suas zonas de conforto. É um trabalho onde as sonoridades sensuais se misturam com as batidas provocantes”. Na lista de produtores do disco é possível encontrar, para além da mão da própria cantora que também desempenhou um papel importante na edificação da obra, nomes como Nu Fvnk, Ukweli e Jinku, três artistas pertencentes à EA Wave.

Se actualmente é possível destacar uma nova expressão musical em Nairobi, em muito se deve ao esforço da EA Wave (East African Wave), colectivo actualmente composto por Jinku, Ukweli, Nu Fvnk, Sichangi, Hiribae e Sichangi (Mvroe foi um dos fundadores desta comunidade mas decidiu, a dada altura, seguir caminho pelo seu próprio pé). Este conjunto de talentosos músicos é responsável por um generoso número de produções para outros artistas, remisturas de temas já existentes, singles isolados com o carimbo EA e, claro, portefólio discográfico assinado a título individual.

A EA Wave – ou os EA Wave – é um dos principais eixos da transformação musical que está a acontecer na África Oriental. Contudo, e à imagem do que aconteceu na Europa e Estados Unidos entre 1760 e 1840, toda a revolução tem um berço. Neste caso em específico, o epicentro foi Nairobi, capital do Quénia e o centro económico da África Oriental, chão fértil para um significante número de talentosos artistas e expressões musicais, do benga ao afrobeat nigeriano e do dancehall jamaicano ao R&B.



[Conhecer Nairobi]

Numa entrevista publicada em 2016 pelo site Stamp The Wax, os Cosmic Homies O.N.E., do qual fazem parte TAIO, Marushka, Runkah (que a solo assina Karun) e Kiwango, traçam o perfil de uma cidade com um forte pulso musical. Começam por falar do We Love Vinyl, um encontro mensal de amantes de discos que aproveitam para comer, beber, conversar, comprar e trocar elementos das suas preciosas colecções. “O que fazemos é espalhar os nossos discos por todo o lado enquanto os escutamos em conjunto”, pode ler-se. A próxima paragem na visita guiada do colectivo é Choices, uma sala de espectáculos que demonstra uma genuína paixão transversal a todos os estilos. “Choices é um espaço de música ao vivo que dá prioridade à verdadeira arte”.

The Alchemist Bar é o ponto de interesse que se segue. “É de longe o melhor equilíbrio entre qualidade sonora e decoração/ambiente”, continuam os membros dos Cosmic Homies O.N.E., “está localizada na melhor zona nocturna da cidade, com a entrada virada para a estrada principal. O som é curado pela incrível Motion Image & Sound. É raro encontrar boas instalações sonoras em Nairobi, mas estes tipos são os distribuidores oficiais de sistemas da AudioFocus [uma marca Belga de soluções áudio] para a África Oriental. Além de bom equipamento, têm as capacidades técnicas. A MIS e o The Alchemist Bar estão a revolucionar o mercado da música ao vivo no Quénia”.

Dos bares para as festas no exterior. Derivado ao bom tempo que usualmente se faz sentir na cidade, grande parte das celebrações optam por sair à rua. “Somos todos obcecados por festas. Os eventos acontecem ao fim-de-semana mas também ao logo da semana. Houve, inclusive, uma pesquisa de turismo global que classificou Nairobi como a ‘cidade modelo da mudança’ em África. Os eventos ocorrem de tantas formas e com uma frequência tão estonteante, que se torna impossível escolher apenas um. O melhor mesmo é aparecer na cidade durante a semana e testemunhar o que acontece”. Ainda assim, o grupo dá principal destaque ao Live At The Elephant, um evento fundado pelo músico queniano Eric Wainaina, cujo espaço escolhido e decoração em muito se assemelham ao nosso conhecido Out Jazz: fardos de feno espalhados por um imenso e confortável chão verde, polvilhados por vários cobertores kikoi e rodeados por um generoso número de pontos de venda de bebida. “O Live At The Elephant recebe algumas das melhores actuações da cidade”, afirmam.

Por fim, os festivais dentro e fora de Nairobi. Blankets & Wine, um evento em Nairobi que já contou com cabeças de cartaz de renome, como Estelle, Jojo Abot e Aloe Blacc, e Nyege Nyege, um festival recentemente estabelecido em Jinja, Uganda, com dois palcos distintos e uma localização de luxo: nas margens do Nilo Branco, também conhecido como Victoria Nile. Numa reportagem publicada em 2017 para o site Independent, o jornalista Kit MacDonald disse que este festival tem a particularidade de ser dos poucos onde se podem saborear bebidas com o Nilo como pano de fundo e onde é possível ver macacos a arremessarem bananas dos topos das árvores onde se encontram em direcção aos visitantes. “É algo que vale a pena celebrar de todo o coração”, remata assim o artigo.

Nos instantes finais da entrevista para o Stamp The Wax, e depois de terem sido questionados sobre quais os seus artistas predilectos dentro da nova cena musical de Nairobi, os Cosmic Homies O.N.E não parecem ter qualquer dúvida na primeira ocorrência. “EA Wave. Como nós, Jinku, Hiribae, Nu Fvnk, Ukweli e Mvroe [nesta altura ainda membro do grupo] combinam esforços para criar uma comunidade sobrenatural. Nós colaboramos muitas vezes com eles e somos constantemente surpreendidos pelas escolhas de temas, produções e performances ao vivo”.



[EA Wave]

Jinku é um dos artistas mais proactivos da EA Wave. Além de somar várias produções assinadas com o seu nome (“Ameana”, “Hindewhu” e “Anikere” são alguns exemplos), reúne ainda créditos na construção e consolidação de álbuns de outros artistas (à já referida produção para Karun, abordada logo no início do texto, pode juntar-se DUST EP de Wanja Wohoro), isto para não falar de um EP em parceria com a cantora e compositora Namvula Rennie, State of Emergency, e da sua caminhada discográfica em nome individual, com Amadeyo EP.

Editado em 2015, Amadeyo EP é um mergulho no potencial da África Oriental, uma luta pela construção de um novo futuro, criando um modelo e inspirando aqueles que o escutam a confiar nas suas próprias vibrações e nas vibrações que o mundo emana. De Charles Bodo a Valentine Ziki, passando por Joseph Kiwango e Checkmate Mido, acabando no companheiro de equipa Nu Fvnk, são vários os nomes que ajudam Jacob Solomon, nome de baptismo, na sua aventura, depositando, na maior parte das vezes, as suas vozes sobre instrumentais dançáveis que exploram quase sempre os ritmos africanos. O título do álbum é uma adaptação do segundo nome do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart e representa a vontade de Jinku fazer em África aquilo que o homem de “Don Giovanni” fez na Europa e no mundo, salvaguardadas as devidas distâncias.

State of Emergency é outro dos destaques no trabalho de Jinku. O EP, que partilha protagonismo com Namvula, artista que divide as suas origens entre a Escócia e a Zâmbia, foi, por altura da sua edição, em Julho do ano passado, alvo de aplausos e reconhecimento. Nos créditos do álbum é possível encontrar também a mão de El Búho, músico inglês radicado em Paris que concentra as suas energias nos ritmos e nas linhas de baixo de origem latina.

Destacado em 2016 pelo site The Fader como um dos 25 artistas a nível mundial a ter em atenção, Jinku mistura trap de textura 808, afro house e downtempo com percussão africana, sendo um dos elementos do colectivo que mais enraíza a sua obra. “Jinku é um macaco do espaço que fez da terra a sua segunda casa”, pode ler-se na conversa que o colectivo teve com o site Okayplayer em 2016, “ao longo dos anos tornou-se numa esponja de diferentes estilos, do rock à música clássica e à electrónica”. Solomon faz ainda parte do Santuri Safari, uma rede de músicos, DJs e produtores que visa estreitar relações entre o som tradicional da África Oriental e a cena de dança internacional.

Nu Fvnk conta igualmente com uma respeitada carteira de remisturas e produções em nome próprio. Começou a sua carreira como rapper mas o facto de ser ainda novo numa indústria com uma tão limitada rede levou-o a desenhar e a construir as suas próprias produções que não só cimentaram as suas intenções no campo do hip hop como também abriram ângulo a novos horizontes. À medida que a sua paixão pela produção se foi desenvolvendo, Nu Fvnk, de seu verdadeiro nome Kelvin Hansen, devorou vídeos de artistas como 9th Wonder e Hit-Boy, dois produtores que alcançaram a fama ao partilhar produções caseiras no MySpace.

Going On”, lançado no passado dia 1 de Fevereiro, é o mais recente single de Nu Fvnk e junta-se a “254 Dip”, “The Story of Rudy” e “In The Waters” como das mais escutadas no SoundCloud, uma das plataformas predilectas do colectivo, onde é possível escutar uma extensa colecção de faixas com o carimbo EA Wave.

Ukweli é outros dos membros desta família e é também manager, contabilista, porta-voz e fotógrafo. Começou a produzir instrumentais aos 16 anos, mas a falta de reconhecimento por parte daqueles que testemunharam as suas primeiras passadas levaram-no a parar durante um ano. Fechou-se no quarto, consumiu tutoriais no YouTube de forma desenfreada, aprendeu a samplar e a masterizar batidas com textura 808 e moldou a sua própria identidade, cruzando as suas influências enquanto novo – do r&b ao indie rock e ao jazz – com sintetizadores minimalistas e cadências lentas e descontraídas.

“Fools Paradise”, “Roses”, “Get Lost” e “How Long” são alguns dos temas mais populares de Ukweli, nos quais é possível encontrar as participações especiais de Jason Kalinga, Kiwango, Karun e o cantor norte-americano JABS, que em “Get Lost” se faz acompanhar da cantora, actriz e bailarina Willow Smith, mais conhecida como Wilough.

De todos as parte que constituem a equipa, apenas Hiribae tem formação nos campos da música clássica, adquirida depois de vários anos como trompetista na orquestra da escola que frequentava. É por isso normal que as suas composições evidenciem um tratamento singular, recheado de sintetizadores aéreos e suaves secções de trompete. “Lord forgive me for my synths”, é possível ler no SoundCloud daquele que é considerado o elemento mais soul do colectivo. Em 2016, lançou Alpha EP, um trabalho de onde é possível retirar uma interessante remistura que usa a voz de Guru dos lendários Gang Starr.

Os EA Wave começaram enquanto quinteto mas alargaram a sua formação com a inclusão de Sichangi. Contudo, a saída de James Mburu, também conhecido como Mvroe, reduziu o sexteto à sua dimensão inicial. Em conversa para o site da empresa de comunicação queniana Mediamax em Agosto do ano passado, o grupo fala sobre a saída de Mburu, artista que tinha como principal foco a vocalização com recurso a auto-tune, reverbs e delays. “Foi uma decisão tomada em conjunto, ele continuará sempre a fazer parte da família. Continuamos a estar juntos e a fazer música em conjunto”.

Sichangi, o derradeiro individuo da colectividade e também o mais novo, com 22 anos apenas, iniciou-se no estudo da guitarra em 2013. Todavia, a vontade de criar sonoridades mais preenchidas e elaboradas do que as alcançadas com uma abordagem simples ao instrumento, rapidamente o introduziu ao mundo da produção musical. Classifica a sua música como aberta e flexível, dadas as diferentes interpretações que coloca à disposição. Sichangi conta com um EP, Hold On, tornado público em 2016, e com um álbum/mixtape, The Project Greatness, lançado no ano passado.



[World Music 2.0]

No final da década de 80, depois do colapso do mercado legal derivado ao contrabando excessivo, editoras multinacionais como a EMI e a Polygram decidiram colocar um termo ao programa de desenvolvimento de artistas em Nairobi. A partida destes importantes selos criou um gigantesco buraco na indústria musical queniana, durante décadas, e foi nos artistas novos, emergentes, que se sentiu o maior impacto. Os recursos deixados foram escassos e apenas os artistas mais apelativos e comercialmente seguros tiveram acesso a eles.

É no seguimento desta escassez de apoios e da dificuldade de exposição mediática que um conjunto de DJs e produtores sediados em Nairobi decidiu unir esforços para criar o seu próprio movimento, a sua própria expressão musical e assim esculpir aquilo que actualmente podemos chamar Nu Nairobi. Jinku, Ukweli, Nu Fvnk, Hiribae e Mvroe travaram conhecimento através de partilhas e gostos nas plataformas online, importantes veículos para a divulgação de trabalhos regrados pela filosofia DIY (Do It Yourself). Num interessantíssimo artigo publicado pelo Bandcamp Daily, Megan Lacobini de Fazio classifica este tipo de filosofia e comportamento como World Music 2.0. O termo, instituído por Jace Clayton, também conhecido por DJ Rupture, autor do livro Uproot: Travels in 21century Music and Digital Culture, diz respeito à música articulada por jovens espalhados por todo o mundo através de computadores baratos e programas de produção gratuitos. “Usam a ingenuidade para moldar a sua própria identidade”, pode ler-se.

Em 2015, depois de se conhecerem pessoalmente, os cinco elementos decidem então começar a produzir em conjunto. Fazem-no, em alternância com os estudos, no Creatives Garage, um espaço multicultural localizado nos subúrbios de Nairobi onde chegam, inclusive, a trocar trabalho provisório por horas estúdio. Inicialmente, os EA Wave tinham como missão criar um género novo, unicamente caracterizado pelo processo de criação, experimentação e colaboração. “Sentimo-nos várias vezes pressionados a escolher um som específico”, revelam as palavras de Ukweli nesse mesmo artigo. “Mas a cultura queniana é tão diversa e ouvimos tanta música oriunda do resto do mundo, seria impossível reduzirmo-nos a um único estilo”.

Existe nos EA Wave uma desmedida vontade de redefinir a sonoridade de Nairobi, para que esta procure novos horizontes sem nunca se afastar totalmente das origens. “Estamos a injectar uma nova vibração na cidade à imagem daquilo que outros artistas fizeram nas suas, como a Soulection [Los Angeles] ”, confessa Ukweli numa recente entrevista para o site Tangaza Magazine. “Os quenianos ouvem muita música que não é queniana mas não o aceitam se for um queniano a fazê-lo. Se os Sauti Sol [grupo musical de Nairobi] lançarem um tema de future bass, toda a gente vai pensar ‘que porcaria é esta?’. Felizmente encontrámos um público que aceita isso, tal como nós”.

Se existem actualmente bandas a arriscar na sua sonoridade e a seguir caminhadas não necessariamente ligadas ao padrão dos topos comerciais quenianos, em muita parte devem-no aos EA Wave e à coragem que tiveram para certo dia criarem algo com o qual se identificavam. “Demos aos artistas a confiança de fazerem música sem estarem preocupados com o facto de agradar ou não a uma audiência queniana, do estilo ‘não posso fazer r&b só porque não é aquilo que as pessoas querem…’. Até ao momento, o novo paradigma musical em Nairobi tem ajudado traçar um novo caminho para artistas emergentes”, acrescenta Hiribae na mesma entrevista.

No seguimento da produção do EP Indigo para a cantora e compositora Karun, os EA Waves foram convidados a trabalhar com Jojo Abot, artista ganesa que encontra a sua identidade na mistura de electrónica, jazz, afro-beat, house, neo-soul e reggae. Jojo, que se encontra radicada nos Estados Unidos, voou até ao Quénia para dar início ao projecto AFRI-NA-LADI, uma residência multimédia que se desdobrou em artes visuais, moda e espectáculos ao vivo. Juntos, os EA Wave e Jojo produziram o tema “Mega Kpenu Nao”, traduzido para português para “não te deixes envergonhar”, um desafio às generalizações sobre a música e arte africanas. Nu Fvnk contribuiu com as teclas, Hiribae adicionou os efeitos vocais, Mvroe focou-se nos elementos 808, Ukweli tratou a secção trap e do artwork, Jinku incluiu um sample de Missy Elliot e masterizou a canção.

Lançado no passado dia 11 de Janeiro, “Alango” é o mais recente tema com a chancela EA Wave e conta com a participação de Makadem, um artista popular queniano especializado em benga. “Alango”, que mistura o lado mais tradicional com electrónica, resume perfeitamente a filosofia da EA Wave: articular os géneros e as texturas que mais gostam sem nunca descurar as raízes.


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