pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 08/01/2025

Uma voz que chama ao essencial.

Dullmea: “Em tempos de fast-everything, gosto de acreditar que consigo manter a atenção prolongada em ideias simples”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 08/01/2025

A compositora e performer Sofia Fernandes, enquanto Dullmea, tem desenvolvido, desde 2016, um trabalho continuado com edições de álbuns e apresentações em diversos contextos, construindo uma identidade que desperta para a beleza da simplicidade musical, retomando como primordial a expressão vocal.

Assim, apresentar-se-á no próximo dia 10 de Janeiro em Lisboa no espaço ZABRA – Centro de Investigação de Arte Pós-Humana. A sua performance incidirá sobre o retomar de dois registos discográficos anteriores e motivou a troca de ideias e palavras com a artista. Para que a expressão da sua música em torno da voz possa transpor todo o significado, ficam as palavras ditas em discurso directo.



Ao entrar no espaço sonoro que desenvolves desde Dullmea tem-se a sensação do novo mas a que se pertence; encontramos o que, ainda sem saber, faz parte do nosso mundo. Mas isto é a percepção de quem entra para escutar. Por isso pergunta-se qual a visão e sobretudo o impulso criativo de quem desponta para o lugar?

A busca pelo equilíbrio entre o desafiante e o espaço comum é infinda, por agora, sei dizer que para mim tem sido um espectro onde venho a navegar: já tive fases com mais componente de novo ou estranho, e fases com maior componente de familiaridade. Ainda assim, tento não pensar demasiado nisso, tento que essa busca não seja uma prioridade. Procuro organizar os sons desde o meu próprio ponto de vista tendo em conta: a minha necessidade de regulação sensorial; o tipo de emoções com que me quero conectar (ou com as quais já estou conectada e quero partilhar); memórias que estão em mim, as quais — quando tenho sorte — consigo encontrar o som certo que as evoca. Depois, caminho entre as ferramentas que conheço e domino (ferramentas mais racionais, técnicas) e aquilo que o meu instinto decide perseguir (procuro não o silenciar). Acarinho a esperança de que outras pessoas possam encontrar ecos de si (ainda que não os consigam explicar) quando ouvem o meu trabalho.

Justamente o trabalho autoral que tens inscrito desde 2016, com o primeiro registo Keter, parte da acção primordial da electrónica e da voz, a mais ancestral das instrumentações em campo. Contudo fazes um uso não idiomático da voz e tomas dessa expressão uma linguagem não inscrita, o que permite muitas possibilidades na ideia da voz como instrumento extensivo e mesmo experimental. No entanto, no teu mais recente trabalho Outro Outro abordas o campo concreto das palavras. Onde se situa Dullmea neste momento?

Dullmea é um projeto musical que explora as infinitas possibilidades entre voz e electrónica, é sempre aí que o projeto se situa, por isso, ignorar a palavra enquanto componente vocal — com tudo o que há de ritmo, textura, desenhos melódicos — seria até um desperdício. Tento não enfiar os meus projetos em gavetas que me proíbem explorar outras coisas, gosto que a liberdade seja uma constante, a par do desafio, então quis dedicar um álbum inteiro a essa experiência: perceber que tipo de composição sonora podia ser alavancada pelas palavras. Neste momento, há muitas outras componentes que quero explorar, por isso, não prevejo que volte a usar texto no meu trabalho, tão cedo.

Precisamente e a propósito da apresentação de Hemisphaeria dizias tratar-se de uma “canção sem palavras” feita de fragmentos de uma língua perdida, de uma multidão. É de facto uma língua perdida ou mesmo inventada a que vamos encontrar, de todos os modos desconhecida. E há nisso um campo fascinante, como aliás é disso feita a experiência auditiva nesse registo. É por aí que anda o propósito também?

Quando não uso palavras — que é quase sempre — fascina-me a ideia de que, ainda assim, eu posso usar palavras [risos]. Passo a explicar: enquanto improviso, há sons, imagens, cheiros, mas também há frases, também há poemas, há português, inglês, francês, espanhol. Há, por exemplo, uma ideia vaga de língua tribal que ouvi uma vez, e ainda que eu não compreenda as palavras, sei o que significa para mim essa memória (a cor das roupas, a aspereza do chão onde estava essa pessoa que falava, o contexto, a comida que comia, o cão que estava ao lado); há, outro exemplo, uma canção de embalar escutada há muitos anos, cujas palavras, no meu trabalho, se partem, perdem pedaços e criam espaço para incluir outros detalhes dessa memória: nesse momento, não estou a cantar uma canção de embalar, estou a partilhar aquilo de que me lembro, só que por acaso, uma ou outra sílaba podem sair. Eu tenho consciência de que posso evocar estas memórias da minha biblioteca pessoal e trazê-las em fragmentos. O resultado é uma manta de retalhos onde cada pessoa pode agarrar um pedaço e deixar-se ficar.

Vem isto a propósito da próxima apresentação — no espaço ZABRA em Lisboa — e a qual anuncias que se fará em torno dos registos Hemisphaeria e Ephemeroptera, testemunhos da tua discografia mas que agora retomas ligando-os neste presente. São duas passagens que se tocam em muitos pontos, diríamos de forma resumida que do primeiro se estabelece esse espaço que pelos temas apresentados do segundo se podem habitar, em modo de metamorfose, justamente as formas efémeras criadas. Mas qual o teu propósito com esta apresentação?

Há uma simplicidade em ambos os registos que me atrai muito: voz solo com um setup muito pequeno de electrónica. Essa redução obriga a um tipo de conexão e domínio de cada elemento excepcionais. Por um lado, é um desafio aliciante e por outro, é uma oportunidade para me conectar de forma mais profunda com cada elemento (técnico ou expressivo, se é que podemos separar um do outro completamente). Com tão pouco em palco, não há muito onde a performance se possa esconder, tudo acontece em tempo real, o público vê tudo e por isso eu tenho de estar num estado de concentração máxima para que o fio que agarro na primeira nota do concerto não se perca até ao final. Acho que faz sentido trazer este desafio nos dias que correm. Em tempos de fast-everything, gosto de acreditar que consigo — que conseguimos todos — manter a atenção prolongada em ideias simples.

Tens contado com a expressão da arte visual de João Pedro Fonseca, em concreto no teu álbum Lloc Comú. Sendo um artista comprometido com a ideia transcendente do pós-humanismo, envolto num ciber-espiritualismo e precisamente ao leme curatorial do espaço ZABRA, pode-se esperar uma componente visual colaborativa para esta apresentação?

O João Pedro fez o artwork do Hemisphaeria, do Lloc Comú e fez vídeos para o Ñe’ẽsẽ, interessa-me sempre muito o rasgo criativo que ele traz, proposta atrás de proposta. Por causa do tipo de música que faço, normalmente nas apresentações ao vivo peço contenção nos estímulos visuais, porque muito facilmente podem ser distrativos — o que é muito natural, porque somos seres muito visuais numa sociedade amplamente guiada visualmente. Assim, ainda que haja um cuidado com a luz, não está programada uma componente visual colaborativa.

Parece incontornável que a composição vocal de hoje, nos campos mais experimentais, em muito se relaciona com o que uma Meredith Monk foi contaminando — e ainda o faz — nestes territórios. Mas actualmente assistimos à sua fulgurante presença, e aqui bem perto, de nomes como Ece Canlı, ou em Cobra Coral, nas facetas de Mariana Dionísio e o seu novo ensemble vocal LEIDA e, claro, Dullmea. E depois outros compositores a convocarem essas vozes para a sua música como Pedro Melo Alves ou Mané Fernandes. Como vês este fervilhante e bem actual panorama?

É muito bom, porque cada um destes projetos contribui para agitar o frasco da voz enquanto instrumento e amplia um pouco mais as possibilidades, as ramificações e as suas variadíssimas permutações. A descoberta e a exploração estão muito vivas e isso é muito emocionante, cria impulsos novos, é muito inspirador.


pub

Últimos da categoria: Curtas

RBTV

Últimos artigos