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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Hugo Barros
Publicado a: 17/09/2022

O peso da história fica mais leve aos ombros de um griot.

Doug Hammond no Teatro do Bairro Alto: história viva e narrativas cruzadas

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Hugo Barros
Publicado a: 17/09/2022

O TVDE deixa-nos a meio da Rua Gustavo de Matos Sequeira. O jornalista e olissipógrafo da primeira metade do século XX que dá nome a essa rua dedicou, portanto, prosa e estudos à cidade de Lisboa. Essa Lisboa que, a uma sexta-feira, em final de dia, reserva tanto por acontecer. Muito mais do que se possa pensar. É certo que cada qual tem as suas bolhas socioculturais e ignora, por isso, o que se passa para lá da sua esfera limitada. Sinteticamente descrito como um “veterano com história”, a quem desconhece o seu legado um concerto de Doug Hammond — nome incontornável nas metamorfoses do jazz —, junto ao Largo do Rato, passaria completamente despercebido noutras circunstâncias. E quantos destes se perderam já pelo caminho?

O caminho, esse, também já não tem nada que enganar. De frente para a placa da rua dedicada ao olissipógrafo, o Teatro do Bairro Alto fica logo à direita, num beco sem saída. 19 em ponto, precisamente meia hora antes da hora marcada para o arranque da sessão. Aqui, claramente fora da bolha de conforto, mesmo perante a parca amostra de meia dúzia de pessoas que chegaram com antecedência. Mas há algum conforto no desconforto, naquela ligeira sensação de que todos reconhecem um impostor deste lado. Alguém que, à partida, não pertence a esta bolha — e, mais “grave” ainda, não sabe ao que vem. Percepções apenas de quem está em bolha alheia, seguramente. Até porque as poucas conversas triviais que se vão travando não fogem à regra das “mil coisas em que se costuma falar quando se não quer dizer nada”, como escreveu Júlio Dinis. Por estes dias, a morte da Rainha Isabel II ainda preenche espaços vazios. “Três dias de luto??? O Otelo não teve luto!” Nem o Chalana. Cada um com os seus vermelhos. Vá-se lá perceber este país…

Há tradições que não têm explicação. O papel deste Griot que se apresenta daqui a nada é guardá-las — e, agora, partilhá-las. Como a história da cobra venenosa da Flórida, que Doug Hammond viria a contar a dada altura. O baterista e poeta norte-americano cresceu numa comunidade — termo vinculativo — negra, cheia de griots, gente que, mais ou menos profeticamente, lhe foi passando a herança de uma América dividida (e cruelmente romantizada). “The whiter the bread, the sooner you’re dead.” Quem te avisa teu griot é.

E, mal entra, com os seus 79 anos de vida já a pesar nas pernas (mas nunca nas mãos, viríamos a testemunhar), transparece logo nas primeiras impressões as marcas dessa história turbulenta e implacável. Periférico a nomes — deste lado vagamente familiares — como Nina Simone, Charles Mingus, Steve Coleman ou Smokey Robinson, Hammond carrega uma solenidade na figura que corresponde ao estatuto caracterizado por “veterano com história”. Mas, cedo também, faz chegar à plateia uma descontração despretensiosa, que contrasta com a entrada dramática numa sala totalmente negra, silêncio absoluto, luzes em baixo, e círculo branco-celestial ao centro.

Bateria também ela ao centro, virada para a escadaria de madeira, dourada quando as luzes se acendem. Doug senta-se e empatiza de imediato: “Sorry I don’t speak your language, but thank you for coming.” E arranca com batuques desgovernados, num ritmo quase infantil, qual vagabundo a cantar, entre o pensar alto e o humming para os candeeiros das ruas de Lisboa (mapeadas por Gustavo de Matos Sequeira).

Não nos deu tempo, porém, para pormos em causa, imberbemente, todo o seu legado logo nos primeiros minutos. O que parecia uma exibição tosca sem saída desenvolveu-se, de repente, num solo curto à Charlie Parker — como descreveu, em entrevista ao Público, a Mário Lopes, que viria a ser mencionado pelo músico a meio da actuação, por ter feito com que voltasse atrás no repertório e na história para este concerto —, mostrando total desenvoltura no instrumento que agora parece uma extensão dos seus membros. Arranca, também, a primeira ronda de aplausos. “I keep forgeting how to say thank you”, confessa. “Obrigado!”, elucidam alguns. “Arigadow”, devolve o inequivocamente brilhante baterista.

A bateria foi só para começar. Doug tem mais cartas na manga e instrumentos na pequena mala de alumínio que trouxe para palco, acompanhada por partituras e/ou poemas impressos. Em momentos pontuais, recorre a um instrumento invulgar, cujo som cria uma aura tribal à sua volta: uma caixa que parece de percussão, mas que soa tocada por cordas (será uma mini-arpa, fruto das influências de Dorothy Ashby?). E o também (agora reformado) professor universitário de música — que não gostava do ensino universitário dessa disciplina — faz uma demonstração à turma, que observa atentamente o funcionamento do aparelho. Manuseia-o como se enviasse mensagens de um telemóvel. E as mensagens parecem ser recebidas deste lado.

Entre temas, aproveita para contar histórias. Quase sempre fragmentadas; salta de uma para a outra como se já as tivéssemos ouvido. Conversa, apesar de tudo, honesta, puramente biográfica e confessional. São memórias que lhe vêm à cabeça — e, como memórias que são, atravessam-se umas nas outras. Conta-as num tom ligeiro, tu-cá-tu-lá, eu e o Sam Jones isto, eu e a Mahalia Jackson aquilo, retirando carga e pó à história. Mais do que um griot, um homem incondicionalmente dedicado à sua obra. Fazê-la foi o seu verdadeiro desígnio. Mostrá-la é só uma consequência.

Não deixa, porém, de conservar um apurado sentido de humor. Isso nota-se nas cirúrgicas tiradas com que liga o seu discurso entre canções, mas também no inconformado sarcasmo subjacente a vários dos seus poemas, mascarado por um tom, muitas vezes, falsamente optimista. Ou até nos pequenos momentos paralelos à performance propriamente dita: bate com a cabeça no microfone, ri-se, perde a partitura (ou o poema) a meio e perde o fio à meada, o público dá indicações sobre o papel, um homem levanta-se, vai ao palco e aponta para o sítio onde a folha se escondeu, retoma o tema, esquece-se do seguimento, volta a lembrar-se, engana-se no ritmo, volta a retomar… Mas está em casa (e num sítio seguro). 

Declama rap de 1974; rap antes de ser rap. Declama poesia tida apenas por poesia. Declama histórias — não as conta. Mas chega a uma altura em que chega de declamar. Atira o microfone para trás das costas, num gesto tão divertido quanto insurrecto e ajusta contas, novamente, com a bateria. Volta onde tudo começou — hoje e sempre. Prepara-se para a última volta e começa a seguir o rasto às baquetas. Afinal, foram elas, desde o início, que abriram caminho.


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