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Fotografia: João Morado
Publicado a: 01/06/2023

Riqueza sónica em Bristol.

Do The Crofters Rights ao Jazz Stroud’23: muito mais do que jazz

Fotografia: João Morado
Publicado a: 01/06/2023

Fim de semana prolongado pede sempre por boa música, e ainda mais quando, depois de um Inverno teimoso, o Sol em Inglaterra decidiu finalmente acordar de uma longa hibernação. Corpos a suplicar por vitamina D passearam-se no passado fim-de-semana pelo polo cultural mais entusiasmante do sudoeste inglês, a cidade de Bristol, que, salvo erro nas contagens, acolheu pelo menos quatro festivais de dimensão considerável. A oferta foi muita e variada, mas dificilmente melhor do que as propostas pelas quais as incríveis gentes do Worm Disco Club nos guiaram ao longo de dois dias. Estas incluíram duas atuações do soundsystem do colectivo, além de uma ida ao festival Jazz Stroud, onde presenciámos concertos de Sarathy Korwar e Church Andrews & Matt Davies.

O coletivo de Bristol Worm Disco Club é o berço da Worm Discs, etiqueta cujos lançamentos dão a conhecer um leque diverso de novos artistas — a maioria com base em Bristol, mas não só — que têm contribuído para definir as matizes que coloram os avanços estéticos do jazz da contemporaneidade. Aqui pelo Rimas e Batidas, o projeto coordenado por Jackson Lapes, Jake Calvert e Nathan Price já não é novidade. A atenção que tem sido dada por estas páginas e emissões de rádio associadas aos lançamentos da Worm Discs faz com que bandas como Run Logan Run, Snazzback, corto.alto ou Dundundun sejam já conhecidas por terras lusas, facto que torna imperativo uma visita destas formações a Portugal num futuro próximo — publico interessado certamente que não faltará.

Além disso, tanto a inovação musical dos grupos da editora como o ecletismo dos DJ sets do coletivo são razões mais do que suficientes para justificar um contínuo mapeamento dos seus movimentos. Não o fazer implica necessariamente uma lacuna na compreensão dos modos do novo jazz. Mas serão estas correntes jazz, verdadeiramente? A resposta assoma-se como intrinsecamente paradoxal, mas plena de sentido: é jazz por ser precisamente muito mais do que apenas jazz. Esta música porosa, adaptável e em mutação constante prescinde de rigidez na forma e conteúdo para dar ênfase ao contexto. E quando assim o é, as ondas do presente tornam-se fontanário inspiracional, e a criação artística assume contornos de praxis assente numa filosofia que busca novas soluções. A reportagem que se segue elucida porque assim o é.


NA PISTA, AO SOM DE UM PAÍS TROPICAL COM WORM SOUNDSYSTEM E BATUKIZER

Sábado, 27 de Maio. Quando a pergunta é se estamos a fim de “brazilian vibes”, a reposta é automática: Hell yeah! Ainda mais quando depois de uma rápida consulta à descrição do evento se lê: “Another session of heavy grooves, jazz, funk and funky vinyl melters.” Uma proposta impossível de recusar-se.

Ao caminhar-se pelo bairro de Stokes Croft, o graffiti e a street art perfazem as paredes daquele que é um dos bairros mais alternativos do Reino Unido. Por ali juntam-se punks, freaks, rockeiros, rastafáris, artistas e transeuntes num caldeirão multicultural em que o vulgar colide com a contracultura. Uma fogueira gigante acesa numa esquina faz-nos recuar até ao tempo dos antigos squatters que ocuparam algumas daquelas casas, tornando-as em lugares de festas e de expressão artística. Hoje uma sombra dessa dissidência nevrálgica que caracterizou o bairro durante várias décadas, Stokes Croft continua a ser sítio de referência para saídas à noite.

Na avenida principal encontramos o The Crofters Rights. Este bar com uma pequena pista de dança e uma excelente oferta de cerveja local acolhe uma residência mensal do Worm Disco Club que por ali organiza concertos e sessões de DJing. A ementa do dia levava aos decks o soundsystem do coletivo representado por Jackson Lapes e Jake Calvert, a quem se juntaria um convidado especial vindo diretamente de Copenhaga — Rasmus dos Batukizer

Os Batukizer são uma dupla de DJs que tem vindo a investigar a música do Brasil – tanto em vinil como em formato digital – há mais de uma década. Durante o confinamento, os números de Carla e Rasmus explodiram no Youtube, e deste então têm uma maior (e merecida) exposição que lhes tem permitido mostrar ao mundo uma valiosa coleção de discos repleta de pérolas e raridades. Para Bristol, o DJ dinamarquês trouxe a mala recheada de 7 e 12 polegadas. No dia anterior, estivera num evento organizado pelo My Analog Journal acompanhado por Shaqdi, Zag e Guinny, outras caras conhecidas deste canal do Youtube.

Se tinha certezas sobre a qualidade musical dos discos que Jackson e Jake trariam para a pista de dança, tão pouco imaginara que ambos tivessem uma ligação tão visceral com a música do Brasil. A dupla nutre um amor infinito por este país tropical. O seu vínculo à cultura brasileira é praticamente umbilical – num plano espiritual, é certo, pois ambos nasceram deste lado do Atlântico – e transcende uma mera idealização de um local distante. Enquanto adolescentes, envolveram-se ativatemente com a música do Brasil através de várias bandas. Percussionistas apaixonados pelos ritmos e cores, em 2013 formaram os Afon Sistema, grupo de maracatu que funde as cores e ritmos brasileiros com canções de todo o mundo. Todos os anos viajam até ao Brasil, na altura do Carnaval, e têm uma predileção especial pelo Carnaval do Recife. Falam português fluentemente e são excelentes anfitriões. Conhecedores e colecionadores dedicados dos balanços dos vários estados brasileiros, é inspirador ouvi-los contar histórias e recordações do “país do futebol” que é tão, mas tão mais do que isso.

Estavam, portanto, reunidos todos os ingredientes necessários para um farto rodízio musical. Por entre sorrisos abertos e caras simpáticas, a impecável seleção de Jackson, Jake e Rasmus fez as delícias de todos os que por ali pararam para ouvir os heavy grooves que as colunas debitaram. A festa foi inclusiva: diggers sentiram-se no paraíso; amantes de música regozijaram com a singularidade do momento. Há pouca coisa na vida que seja tão especial como ouvir música escolhida por pessoas que a sabem partilhar. E por entre discos que rodaram de Tim Maia, Gal Costa, Carlos Moura ou Os Tincoãs, outros tantos tocaram de bandas e artistas brasileiros não-shazzamáveis e obscuros, de cuja música ou se ouve nestas festas ou é praticamente impossível de se encontrar (certamente que a maioria não está disponível para streaming). Foi percorrido grande parte do amplo espectro da música do Brasil: do MPB ao disco, do samba (menção especial para este samba espiritual de Dinalva) ao forró, do samba reggae ao psych rock, não faltou espaço para explorar ininterruptamente e através de passagens sem costuras toda a riqueza da música daquele país. E embevecidos por atmosfera tão elevada e contagiante, nem mesmo o piso colante e pegajoso – há meses a implorar por um balde e uma esfregona – impediu que os pés dos presentes se levantassem do chão para dançar. Houve ainda espaço para que Rasmus, a representar a Lisboa africana com uma t-shirt da Príncipe Discos, se desviasse da rota original para tocar um tema do último disco de DJ Danifox – sem “Ansiedade”, pois claro. A festa foi bonita. Toda a gente saiu dali de coração cheio.



SARATHY KORWAR NO JAZZ STROUD: A MÚSICA CELEBRADA EM COMUNIDADE

Na pitoresca vila de Stroud, localizada a pouco mais de meia hora de carro de Bristol, realiza-se um maravilhoso festival de jazz que retém a natureza familiar e espontânea do tipo de eventos que são feitos de e para a comunidade. Na edição deste ano, o cartaz incluiu nomes como Yazmin Lacey, Alabaster Deplume, Laura Misch, Sarathy Korward, Nat Birchall, TC and the Groove Family (representantes do refinado catálogo da Worm Discs), entre muitos outros. Foram 4 dias de música ao vivo e clubbing, com eventos distribuídos por vários locais da vila que abarcam uma vasta gama de sonoridades que radiografam alguns dos mais talentosos artistas – quer emergentes, quer já consagrados – do Reino Unido. Apenas pudemos assistir ao final do festival, tendo sido esta curta passagem por Stroud mais do que suficiente para fazermos votos de lá regressar para o ano para a experiência completa. 

Durante o confinamento, Sarathy Korwar gravou uma performance na The Goods Shed, um armazém convertido em sala de espetáculos com fidelidade sonora à altura dos mais exigentes audiófilos, oferecida por um notável sistema de som da d&b audiotechnik. Na noite de domingo, 28 de Maio, o músico radicado em Londres regressou a esta icónica sala de Stroud para um concerto intimista e profundamente intenso, que juntou gente de todas as idades para comungar em torno de culto comum. A disposição da sala favoreceu uma imersão total no momento, facto que mereceu comentários da parte do próprio Sarathy Korwar, que fez questão de mencionar que esta configuração espacial – em que a banda se encontra no centro e o público reunido à sua volta – devia ser ubíqua, pois potencia e põe a descoberto o caráter comunitário da criação musical.

Na formação escolhida por Korwar para este concerto, os dois percussionistas dispuseram-se frente a frente, perpendicularmente à dupla nas teclas e sintetizadores, também ela a encarar-se mutuamente. O produto desta combinação de vetores em cruz está bem definido pela matemática, e é-nos dado pela regra da mão da direita. Quando assim o é, só há uma direção possível para onde a música pode fluir: verticalmente e, em particular, em direção aos céus. Ao longo de um concerto de hora e meia em que foi dada especial atenção ao último disco de Korwar, KALAK (The Leaf Label, 2022), o quarteto envolveu-nos em mantras sintéticos e tremores ondulatórios que percolaram pelos motivos rítmicos desenhados pelas percussões orgânicas e primevas que amiúde se fundiram em torvelinhos. 

E nem mesmo quando as longas introduções convidaram a uma meditação guiada pelas imagens projetadas nas paredes, o fio narrativo do concerto foi perturbado. Viajámos pelo misticismo da Índia e pela riqueza improvisacional dos seus ritmos (quem leu Derek Bailey saberá da complexidade e importância que a improvisação assume na música indiana), sempre acompanhados por uma parede de som sintética que embrulhou o público numa bolha transitória onde polirritmias, harmonias e melodias orientais deram a mão a nuances jazzísticas. À roda nesta cápsula cósmica, Korwar relembrou-nos da circularidade do tempo e da intangibilidade que experiências musicais como esta – místicas, não há como o negar – nos relembram da presença de algo maior, inefável. Para o público português, as boas notícias são que Sarathy Korwar estara já no próximo fim de semana em Portugal para tocar na 17.ª edição do Serralves em Festa. Um concerto a não perder.



CHURCH ANDREWS & MATT DAVIES, E MAIS GROOVES PESADOS DO WORM SOUNDYSTEM

Sabes que estás no local certo quando a música do indicativo do teu programa de rádio ouve-se na pista. Enquanto as hostes no Stroud Valleys Artspace se preparavam para o sprint final, “Pettit Belle” de Art Farmer ecoava nas colunas, convidando o público a juntar-se aos últimos momentos do festival Jazz Stroud. Contudo, ainda que as expectativas fossem elevadas, nada nem ninguém poderia preparar os presentes para a explosão sónica que se seguiria.

Church Andrews & Matt Davies são, sem rodeios, um dos projetos mais interessantes que testemunhámos nos últimos meses. A dupla toca junta há vários anos, ainda que admita ser fresca nestas andanças dos concertos ao vivo. Não o transparecem, diga-se de passagem, apresentando-se em palco com um à-vontade, rigor e profissionalismo dignos de quem já percorreu muitos quilómetros de estrada. Frente a frente – Church Andrews, na eletrónica, e Matt Davies, na bateria – apresentaram um set de eletrónica futurista em que o digital e orgânico imiscuíram-se num manto sónico de BPMs irrequietos e interações imprevisíveis. 

Matt Davies – um baterista incrivelmente dinâmico e magnético – usa um kit híbrido: pratos “analógicos” (ainda que um deles acoplado a um microfone de contactos usado para pós-processamento) complementados por tarola e bombo digitais. Durante cerca de uma hora fizeram o público mexer-se com breaks de partir o pescoço, composições de tempo variável, métricas complexas, e pulsares glitchy produzidos pela arte de Church Andrews nos samplers e sintetizadores. Eletrónica? Música experimental? Footwork? Hip hop? Dub? Techno? É tudo isto e muito mais. Como escreveu o crítico de cinema Philip French, “nothing dates the past like its impressions of the future”, e esta nova síntese que é a música de Church Andrews & Matt Davies, por muito futurista que pareça é, na verdade, som do presente. Uma banda a que devemos seguir os passos atentamente. Interessados podem ouvir os vários álbuns que a dupla lançou pela etiqueta Health, todos eles disponível no Bandcamp da editora.

Por fim, a noite terminou com mais duas horas de música selecionada pelo Worm Soundsystem, desta vez com Jake Calvert e Nathan Price nos decks. Foi mais uma sessão repleta de música de encher os ouvidos, escolhida a dedo e com um gosto musical superior. Dançou-se até não se poder mais ao som de ritmos africanos, música do Brasil, batidas disco e balear, samba e jazz. O final perfeito para um festival cuja dimensão não faz jus à imensa qualidade. Regressaremos para o ano, com certeza.

Voltando à questão do início: serão estas correntes jazz, verdadeiramente? É evidente que a música que a Worm Discs lança espelha em pleno a multiplicidade de estilos a que os seus curadores se expõem com frequência. Assim, repetimos: é jazz por ser precisamente muito mais do que apenas jazz. É esta riqueza, abertura e conhecimento que faz com que haja todo um movimento de pessoas – músicos, DJs e promotores – interessado em ir mais além. E os cérebros por detrás da Worm Discs são exemplos perfeitos de mentes conscientes dos sons do passado e do presente; mentes ávidas por mostrar ao mundo as sonoridadades contemporâneas que brotam de Bristol (e não só). Reconhecem com clareza o tesouro que os rodeia, e nós agradecemos por isso.


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