Viver a comunidade é diferente de conhecê-la por uma ótica distanciada, tirando conclusões a partir da visão de terceiros. Foi isso que aconteceu nos 7 dias que “vivi” em Portugal. Digo que foi uma vivência porque fiz questão de, ao menos, tentar conhecer lugares para além das zonas turísticas. Também, mais precisamente em Coimbra, tive a oportunidade de acessar a cultura por dentro e conversar com as pessoas que a fomentam naquele sítio, do teatro ao jazz, passando pelo hip hop e as artes visuais. Essa imersão aconteceu por intermédio do Cu.Co.: Encontro de Jornalismo Cultural de Coimbra, organizado pela Câmara Municipal de Coimbra com a curadoria de Rui Miguel Abreu, uma das mentes mais brilhantes do jornalismo de cultura do mundo, que em sua primeira edição se mostrou essencial para debater temas relacionados à arte, em suas diferentes manifestações, e apresentar aos residentes, àqueles que não vivem e os que estão de passagem por ali, que diversas ações estão acontecendo todos os dias.
Obviamente que, pelo tempo, não foi possível imergir profundamente em tudo. Mas deu para perceber que há riqueza e diversidade em cada uma das expressões, e muita dedicação de quem as mantém vivas. Nessa experiência diária tive a oportunidade de conhecer a gastronomia, arquitetura, tradições, a língua, que tem características totalmente diferentes da falada no Brasil, e as pessoas — em especial.
As rodas de conversas foram importantíssimas para entender a importância e os desafios dos medias e jornalistas na expansão do alcance da cultura local. A pluralidade de visões e opiniões criou distintas reflexões sobre o papel do jornalismo cultural (de fato) e a aproximação que deve ter com os criadores artísticos para que o público acesse e conheça o que está sendo desenvolvido. Isso de uma forma isenta, fugindo do viés publicitário, para gerar interesse a partir da informação e da crítica — algo que está quase extinto na cobertura jornalística. Dessas mesas saíram várias observações e direcionamentos, que ganharam uma amplificação durante os almoços, lanches e jantares, regados à boa comida tradicional e (claro) muito vinho, levando ao pé da letra a frase dita por alguém que “as boas ideias surgem depois de muita comida e algumas taças de vinho”.
Como observador externo, de um país com dimensões continentais que é o Brasil, tive impressões positivas em relação ao funcionamento das organizações culturais de Coimbra. Considerando as devidas proporções de cada lugar, muitas delas podem servir de exemplo para algumas realidades brasileiras — principalmente nos pequenos municípios do interior. Um dos pontos é a utilização do espaço público e/ou privado para que todos sejam contemplados pela arte de forma gratuita ou, quando paga, por um valor acessível; o outro está no apoio e investimento da Câmara Municipal [Prefeitura] e secretaria de cultura/arte para que as instituições promovam seus concertos com qualidade e organização; e um terceiro está na conexão entre esses organismos culturais, que mesmo seguindo por caminhos distintos se complementam e fazem com que o meio artístico desse território se movimente.
Foi incrível ir ao Centro de Artes Visuais (CAV) para conhecer um pouco mais sobre as obras de António Palolo, um dos grandes artistas plásticos portugueses, e da Dalila Gonçalves, que faz a junção de esculturas de cabaças e sons, tornando a apreciação quase que interativa. Ambas exposições tiveram a curadoria de Miguel von Hafe Pérez, com o qual tive a honra de partilhar o talk “Novos desafios do jornalismo cultural”, juntamente com os colegas Débora Cruz (Gerador), Pedro Dias de Almeida (Visão), Carlos Antunes (CAPC), Daniel Belo (Antena 3) e Ana Margalho (Diário de Coimbra).
De 1542, o prédio que abriga o CAV já foi sede do Antigo Colégio das Artes, que em seguida tornou-se um lugar para prender quem difundia ideias e ideais renascentistas e humanistas. Já no seu pátio eram feitas as inquisições. Ali, ao longo do Cu.Co., aconteceram duas apresentações magníficas. Uma mais intimista e experimental com Sérgio Costa e José Anjos, e a outra um cine-concerto ao ar livre que acompanhou magistralmente as cenas “mudas” do filme The Wind. Foi a primeira vez que presenciei um espetáculo desse tipo, que reviveu um período em que as orquestras faziam as trilhas ao vivo nas salas de cinema. Me impressionou a capacidade que esse jeito “clássico” de contar uma história tem de prender a nossa atenção com a música servindo de guia. Os responsáveis por essa ambientação, dos efeitos sonoros à musicalização, foram João Mortágua, Luis Pedro Madeira, Gonçalo Parreirão e João Silva.
[DO HIP HOP AO TEATRO]
A monocultura pode desencadear muitos danos ao solo onde aquela espécie está plantada, causando o esgotamento e empobrecimento de seus nutrientes. O mesmo acontece quando um ambiente culturalmente rico investe apenas naquilo que tem condições de gerar mais atenção que outras. Por muito tempo o Brasil ficou conhecido no exterior apenas pela bossa, samba e carnaval. Porém, esses elementos culturais populares, e de suma importância, não resumem toda uma cultura que é formada por várias culturas com diversidades extraordinárias.
O mesmo acontece em Portugal porque para identificar a sua identidade e característica cultural, logo citamos que é a terra do fado. Mas pude ver que não se resume a ele porque existe uma multiplicidade criativa que agrega diferentes vivências regionais, que ao se juntarem gera ainda mais interesse de quem está de fora. Esse contexto nos ajuda a entender os movimentos que têm acontecido em Coimbra para que essa heterogeneidade exista.
É o que vivenciámos no Parque Municipal de Skate de Coimbra, que fica debaixo da Ponte Rainha Santa Isabel. Ali, em meio ao ruído do trânsito, grafites e pixos nos pilares, bowls e rampas, acontece toda quinta-feira a principal batalha de rima do país: a Roda o Centro. O mais interessante é que essa roda de rima tem apenas um ano de existência e já se tornou referência no país inteiro. A maior influência para a criação dela foi a Batalha do Conhecimento (BDC), organizada em 2007 no Rio de Janeiro pelo MC Marechal. Essa chamou mais atenção que outras pelo seu foco estar na educação, mas também por refletir melhor a realidade da juventude portuguesa.
Dessa forma, pegaram um formato muito bem sucedido no Brasil e adaptaram para uma linguagem local. Mas para além das disputas de quem tem a melhor habilidade, a Roda o Centro também tem se tornado uma plataforma de formação para que os participantes tenham uma base caso queiram se tornar artistas. Existe também um cuidado para que aquele experimento comunitário não se torne mais um produto na indústria, como tem acontecido com várias batalhas de rima brasileiras e até em Portugal com o patrocínio de grandes corporações. Como pontuou Isabel Craveiro (O Teatrão) na conversa “O hip-hop e a construção de comunidades”: “A industrialização da cena mata a cena”.
Naquela mesma região em que as batalhas acontecem também se localiza O Teatrão e a sede da Marionet, duas grandes companhias de teatro que são complementadas neste setor pela A Escola da Noite. No quesito teatral, o Brasil também se faz presente de alguma forma. A Mostra de Teatro Brasileiro do Teatrão, de 12 setembro a 31 outubro, é mais um exemplo de como a cultura dos dois países possuem confluências. Esta edição da Mostra celebra a passagem por Portugal, entre 1974 e 1976, de dois dos principais renovadores do teatro brasileiro: Augusto Boal e José Celso Martinez Correa.
Colocado no status de inacessível para classes populares, ele precisa ser feito para todos porque é uma espécie de serviço público. O Marionet tem feito isso muito bem, mesmo que indiretamente, com peças focadas na ciência, que levantam temas que são comuns para pessoas com algum tipo de doença. Esse é o poder que o espetáculo tem de causar impacto nas pessoas. Por isso precisa fazer parte do dia a dia de todos, inclusive das crianças. Toda a importância dele para a sociedade foi debatido no talk “Uma cidade de muitos palcos – Teatro em Coimbra”.
[BLUEHOUSE & RUC]
Depois de um almoço super produtivo, no dia 5 de setembro, caminhámos em direção à Bluehouse. A casa, que é branca e não azul, funciona como laboratório criativo para artistas locais. Serve também como residência artística e palco para concertos intimistas como o dos Duques do Precariado, que mesmo com uma falta temporária de energia mantiveram a cadência de seus violões. No estúdio, Francis Salema estava gravando com sua banda. Logo após finalizarem, Rui Miguel Abreu, da sala de controle, fez um desafio para que finalizasse a música para encerrar a sua próxima série de programas na Antena 3, de 50 canções portuguesas de protesto. De imediato, Francis aceitou o desafio.
Ao longo do Cu.Co. presenciei a criação de conexões dentro do ambiente artístico. Foi cativante perceber como isso acontece naturalmente a partir de conversas informais ou de colaborações que fazem com que artes distintas se encontrem para desenvolverem algo que vai além de qualquer limite. Aliada à arte e às dinâmicas estabelecidas por ela, a rádio também possui um papel primordial na difusão do que acontece nos mais diferentes cenários.
Assim como as rádios comunitárias, educativas e universitárias brasileiras, que estão focadas no que acontece no entorno, a Rádio Universitária de Coimbra (RUC) vai na contramão das grandes emissoras para dar vazão ao que acontece dentro do seu raio de extensão com uma programação diversa, além de ser uma “formadora” de radialistas, técnicos e repórteres. Conversando com membros da RUC dá para contemplar a paixão de cada um por fazer parte de algo que representa uma cidade inteira por ser o único veículo radiofônico da localidade.
Todo esse ecossistema formado por companhias artísticas, os próprios artistas, promotores, curadores, medias locais, jornalistas culturais, a Câmara Municipal, o Teatro Académico Gil Vicente (TAGV) e o Convento São Francisco movimentam as cenas de uma cidade com mais de 130 mil habitantes.
[JAZZ AO CENTRO CLUBE]
No Brasil, ainda existe uma crença de que o jazz é uma música que só pode ou deve ser apreciada por pessoas “inteligentes” e que fazem parte da burguesia. Inclusive, esse discurso tem sido constantemente reproduzido para colocarem essa arte numa espécie de redoma, que só pode ser acessada por alguns. Não por acaso, os pequenos e grandes clubes de jazz têm presença majoritária de quem possui o “distinto conhecimento” e dinheiro para pagar a entrada e o consumo.
É claro que isso não se aplica a tudo nem a todos os lugares. Focando diretamente em Campinas (onde vivo), que fica há cerca de 1h20 de São Paulo, que tem uma população universitária comparada com a de Coimbra, dificilmente você irá a algum tipo de concerto de jazz pago, seja ele o mais acessível, sem tirar do bolso ao menos 15 euros (ou 100 reais) — contabilizando entrada e consumo mínimo. Na realidade brasileira, este é um valor alto que não é possível ser retirado do orçamento todos os finais de semana. Mas para ser justo, uma das organizações que oferece acesso gratuito (com qualidade garantida) — ou a preços módicos — à arte, música e cultura é o SESC São Paulo e organismos públicos como o Centro Cultural São Paulo (CCSP) e pontos de cultura, para citar alguns. Porém, a grande maioria das pessoas desconhece muitas dessas atuações.
Ao conhecer as entranhas do Jazz ao Centro Clube fiquei impressionado com o trabalho que fazem. O jeito que o jazz é tratado tem um viés totalmente distinto porque foca na popularização. Isso se aplica aos concertos ao ar livre, aos que são feitos no belo Salão Brazil, que já considero um templo sagrado do jazz (não focando apenas nele), o selo JACC Records e ao Festival Jazz ao Centro, o qual pretendo acompanhar de perto nas próximas edições. Toda a estrutura organizacional serve de referência de como o jazz, a música instrumental e improvisada devem ser abordados (sem preconceitos ou barreiras). Ter conservatórios focados em jazz, mesmo que não estejam ligados à universidade, também contribuem para que Coimbra tenha uma gama de artistas que fortalecem a cena local.
Uma das questões levantadas ao longo do talk “O jazz no centro” tratou de chegar a uma conclusão do que seria jazz. Claramente, não foi possível defini-lo porque é um tipo de arte que não se limita. Por esse motivo o Salão Brasil é palco para artistas variados, inclusive brasileiros. Lá, tive a oportunidade de ver a psicodelia latina do trio mexicano Cariño Muerto formado por Lorena Sequeyro (voz e sintetizador), Eduardo Alves (sintetizador e percussão eletrónica) e João Delicado (guitarra); o projeto Chauscape, de Pedro Chau (The Parkinsons, Ghost Hunt); e o free jazz de João Mortágua e Diogo Alexandre, que juntos formam a dupla STAU.
Pelo jazz ser uma das minhas paixões, conhecer projetos como o Jazz ao Centro, que está na ativa há mais de 20 anos, gera uma expectativa para que crie células em diferentes sítios. É mais que necessário.
View this post on Instagram