De Floribella aos Fingertips, DJ Vicecity agarrou-se ao imaginário colectivo português da sua geração para Tugacore, um festim de IDM feito de cadências UK garage, house e breakbeats, com base em samples que remetem para a nossa cultura popular.
O primeiro volume havia sido lançado pelo seu Coletivo Lenha, mas o projecto conta agora com uma sequela que chega via Rotten \ Fresh. O Rimas e Batidas aproveitou para entrevistar DJ Vicecity sobre este fascínio e o seu processo criativo.
Porque decidiste lançar agora um segundo volume de Tugacore, mais alargado?
Em boa verdade, a ideia original passava por ter apenas uma edição única, sem volumes, compilado num pequeno EP. Acontece que o meu velhinho portátil deixou de funcionar no processo de finalização das últimas músicas, tendo perdido a maior parte dos projectos e demos. Assim que consegui comprar um novo portátil, a fome de produzir e pôr qualquer coisa cá fora era tanta que consegui fechar três faixas num curto período de tempo, acabando por lançar o Vol. 1 em formato de CD ripado, modo DIY, através da label do colectivo que integro — Coletivo Lenha. Quando saiu, o Diogo da Rotten \ Fresh gostou do conceito e lançou-me o desafio de lançar lá o Vol. 2. Miraculosamente, consegui recuperar duas faixas do EP inicial que tinha perdido, “A Bete Abusa” e “Baby Girl”, o que acabou por acelerar a concretização do Vol. 2 e o lançamento da K7.
O que é que te inspira nestas tão variadas referências pop portuguesas para as quereres trazer para este contexto electrónico?
Acho que o ponto comum em todas as faixas ou elementos que samplei é o facto de fazerem parte da minha infância e adolescência, tendo marcado o imaginário nostálgico da minha geração por variadíssimas razões. Desde programas televisivos a bandas sonoras de novelas e séries juvenis, ou até mesmo músicas pimba que preenchem qualquer festa popular do Portugal profundo. Ao mesmo tempo, sempre gostei de brincar com samples e tiro prazer no desafio de criar sonoridades distintas partindo de músicas ou elementos que nada têm a ver com o resultado final. Creio que um dos principais objectivos da cultura do sampling é a utilização de samples únicos que ainda não tenham sido flipados, e a utilização destas referências portuguesas é óptima a satisfazer essa intenção, na medida que ainda existe por aí muito material intacto.
Achas particularmente interessante dar novas roupagens e vidas a elementos emblemáticos da cultura pop nacional?
Sim, completamente. Acredito que o sampling é uma ferramenta de produção tão válida como tantas outras. Quando samplamos uma faixa, estamos não só a dar destaque à produção mãe, como também a eternizá-la com uma abrangência além da original. Quase como criar arte a partir de arte. A ideia não é nova, vemos esta abordagem em inúmeros remixes, edits de músicas pop internacionais nos mais variados registos, com especial destaque no jungle, UK garage, drum and bass e hardcore, por exemplo. Porque não homenagear a nossa identidade colectiva, enriquecendo a nossa cultura e ao mesmo tempo criando algo diferente do que é habitual? O facto de certos estilos serem, ainda ao dia de hoje, muito influenciados pelos países ou culturas que lhes deram origem, como o caso do UK, não podemos deixar que esta estética seja estanque e limite novas abordagens próprias de cada contexto social ou cultural. Se existe o UK garage, também pode existir o TUGA Garage, certo? Creio que este caminho já começou a ser trilhado por artistas que admiro no contexto português fora do mainstream, como GABBEROLAS, Sónia Trópicos, DJ Mafia, HIFA, DJ Nevoeiro, só para enumerar alguns. Paralelamente, penso que esta abordagem pode também convidar novos públicos a criar uma relação com determinados géneros musicais, em virtude da familiaridade que encontram nos samples.
O processo criativo aconteceu muito à base de experimentação com estes samples? Como descreverias esse processo?
Essencialmente, o processo começa com a exploração de um determinado sample em função daquilo que pretendo atingir. Nem sempre o objectivo inicial se traduz no resultado final, mas essa é a piada. Deixar-nos levar pela fluidez do nosso universo criativo. Às vezes utilizo samples mais flagrantes, com letra ou construção melódica da música original, outras vezes utilizo samples muito cortados e menos identificáveis. No caso da “Fotografia de Mim (Remix)”, conseguimos facilmente identificar o sample principal que dá corpo à faixa, mas existe um easter egg muito disfarçado, em que no refrão da faixa uso o mítico piano da intro de “Lena (A culpa não é tua)”, do Boss AC. Tento sempre que as faixas tenham uma vida própria, além da música original que é samplada, podendo ser apreciadas tanto por quem conhece o sample, como por quem não conhece.
Tens nos planos lançar mais volumes de Tugacore? Ou outros projectos que queiras revelar?
Este desafio de samplar acaba por ser viciante, e já tenho alguns projectos a meio que se podem traduzir num novo volume tugacoriano. Para já, quero lançar alguns trabalhos de jungle e break que estão praticamente fechados, onde o sample continua a ser o motor, mas sem ter necessariamente a identidade portuguesa no centro, como aconteceu nos Tugacore. O plano vai continuar a passar muito por lançar EPs e faixas em VAs [compilações com vários artistas] de labels que admiro e com as quais me identifico.
Já agora, resume-nos um pouco o teu percurso. Como e quando começaste a fazer música, de onde és?
Sou natural de Alcains, uma vila da Beira Baixa, e tudo começou numa pequena associação que dava aulas de música e instrumentos. Foi aí que criei uma banda com alguns amigos e comecei a levar a produção musical a sério. Quando vim para a faculdade em Lisboa, o projecto da banda acabou por ficar para trás por questões de disponibilidade, mas a vontade de criar e produzir continuou, o que me levou a comprar uma MIDI Controller para fazer uns beats de hip hop. Toda a minha fixação pelo sampling vem destas raízes hiphopianas que, na altura, deram origem a algumas produções neste registo. Conforme ia descobrindo a cultura clubbing na capital, ia migrando o foco das produções para uma base muito mais electrónica e dançável. Foi numa dessas saídas que acabei por conhecer o Miguel e o Rui, fundadores do Coletivo Lenha, que integro hoje e que tem sido uma parte importante da caminhada que tenho feito.