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Publicado a: 07/05/2016

DJ Screw: a arte de misturar a lume brando

Publicado a: 07/05/2016

[TEXTO] Nuno Afonso [FOTOS] Direitos Reservados

 

Há vidas que só por si representam um lenda. No ano em que se recorda a arte de J Dilla, a alma que mudou para sempre a concepção e visão do rap, é mais que natural olhar em retrospectiva e formular algumas questões. Que ficou afinal para trás e o que se trouxe para este tempo presente – e certamente para o futuro? Que nomes, que discos, que histórias? Ora o espólio de Dilla fala por si e a repercussão do seu trabalho é sentida em artistas como Flying Lotus, The Roots ou Common, somente para citar uma pequena dentada da legião de Donuts. Na senda de legados no rap, e em escalas e resultados obviamente diferentes, DJ Screw é ainda é um ilustre desconhecido para o grande público. O próprio, que também percebeu e abraçou a magia de Dilla, teve uma vida intensa, mas igualmente curta. Um período no entanto suficiente para erigir uma linguagem absolutamente desafiadora e impossível de soar como mais ninguém – fale-se aqui precisamente em linguagem, num sentido mais abrangente do que o musical, quase como filosofia de existência. Uma linguagem então descortinada, esculpida e partilhada sempre longe das massas, mas sempre perto de quem o queria escutar. E assim o jovem Robert Earl Davis, Jr inscreveu a sua assinatura no lado z do hip hop; o lado mais sedutor e surreal possível.

And now you know what my real G’s do: sip syrup, swang and bang, jam nothing but that Screw, fool“. A linha faz parte do êxito “Swangin’ and Bangin’” de E.S.G, rapper e colaborador próximo de Screw. Ambos oriundos de Houston, estado do Texas. A cidade que um dia projectou os primeiros homens na Lua e que fez sonhar tantos outros pelo mundo fora, foi então o berço de uma dialéctica original – e igualmente estelar, sonhadora – de um género então popularizado nas outras margens dos Estados Unidos. Desde criança atrás dos pratos e rodeado de discos, o seu percurso esteve sempre conectado à produção musical. Tornou-se DJ residente em vários bares, fazendo o circuito habitual que o permitiu angariar um pequeno grupo de seguidores atentos. Sem editora, sem estúdio e com poucos, ou mesmo nenhuns skills de negócio, conseguiu contudo fazer da sua casa um laboratório relativamente aberto ao público. Era lá onde misturava, gravava e distribuía, em mão, as míticas mixtapes (no total rondaram o espantoso número de duzentas edições). As romarias à sua propriedade multiplicaram-se ao longo do tempo com fãs a cruzarem estados inteiros para agarrar as cassetes ou com a polícia a arrombar a porta pensando tratar-se de tráfico de droga. Esta proximidade humana e a lógica Do It Yourself inerente, transformou-o numa espécie de cicerone não só para a cena local do rap como para o bairro onde vivia. No fundo, a música como agregador social.


 

 


Se é verdade que DJ Screw fazia a sua vida à conta de uma produção caseira das suas criações, depressa tornou-se vítima desse mesmo sistema com o surgimento de cópias piratas a elevados preços (ainda nos dias de hoje é difícil certificar a autenticidade de muitas delas pelo eBay e afins). Porém a ética de trabalho nunca mudou, excluindo então o assédio de editoras ao intenso legado que aos poucos veio a compôr. E foram muitas as labels a procurarem lançar esse material. Sem sucesso, claro.

Cada uma das valiosas mixtapes reforçou uma morfologia atípica no hip hop. Muitos estranharam, outros abraçaram-na de imediato pelo carácter magnético que possuíam. Aí as canções diluíam, no espaço e no tempo, num contínuo híbrido onde as batidas se apresentam bem mais lentas que o habitual e ocasionalmente outras vocalizações eram sobrepostas – entre as quais a de Screw. Uma ideia aparentemente simples, focada em alguns ensinamentos básicos do dub, porém irremediavelmente refrescante e plenas de possibilidades – técnica que ficou posteriormente conhecida como “screwed & chopped“. Linhas de baixo fortes, beats rastejantes e sinuosos e, de repente, uma nova perspectiva de escuta. Como resumia na perfeição um antigo admirador seu num testemunho póstumo: “You can slow down the beat, and it slows you down“. Esta relação física, mas também perto do campo espiritual, reflectia uma clara forma de estar onde a letargia se sobrepõe à adrenalina. Uma noção de trip, à boleia de largos copos de bebidas espirituosas, charros generosos e drageias de codeína.


 

 


Ao penetrar mais a fundo o catálogo de mixtapes, é notória a condição de epifania alicerçada à abordagem – e visão – que desenvolveu. Se William Basinki fê-lo na música ambiental ou Kevin Shield (dos My Bloody Valentine) no rock, então Screw descortinou uma faceta insular no rap. Curioso é observar como neste tempo presente os seus ecos se fazem escutar em variadas frentes: do dito mainstream ao menos mediático; de Drake a Three 6 Mafia; de anúncios publicitários até bandas sonoras de séries televisivas. As texturas sub-sónicas e a cadência harmoniosa dos ritmos parece tecida especificamente para as madrugadas a fundo. Apelando mais ao subconsciente, é nesse estado que as jornadas sonoras de Screw melhor se assentam. Não faltam histórias de rappers que ao visitá-lo ficavam retidos por dias na sua sala rodeados de “fruta” e som. “Screwing & chopping” era pois um modo de vida paralelo à realidade lá de fora – mas não voluntariamente excluído.


 

Documentário integral de DJ Screw: The Untold Story


Mas em termos práticos por onde começar a explorar a (quase) infinita galáxia de Screw? Provavelmente não existirá apenas uma única resposta a esta questão, tão pouco uma melhor ou pior. Pelo YouTube há que dar graças aos admiradores que partilharam, frequentemente na íntegra, boa parte das “Screwtapes“. Na mesma plataforma encontram-se conferências e documentários sobre a vida e arte de DJ. Para os menos exploradores, existe uma edição tripla Best Of The Volume onde é condensada uma parcela generosa da nata do artista. É certo que nos próximos anos ainda iremos descobrir faixas inéditas ou perdidas no tempo. Afinal o truque dos génios é esse: permanecer e fascinar os que restam por cá após a sua abalada.

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