São dois pesos pesados (e veteranos) da cena afrohouse. DJ Satelite e DJ Gálio, angolanos radicados há vários anos em Portugal, uniram forças através da editora Seres Produções para uma trilogia de discos que se iniciou no ano passado com Horizonte, prosseguiu o seu Caminho e desaguou agora em Raizes.
Com 28 faixas, é um disco que evoca a tradição e herança cultural angolana através de samples de semba ou kuduro, e que traz vozes diversas que se expressam em línguas locais como o kimbundu, o umbundo ou o kikongo.
Para assinalar o novo lançamento e reflectir sobre a trilogia que ficou agora completa, o Rimas e Batidas entrevistou DJ Satelite e DJ Gálio através de uma videochamada.
O novo álbum, Raizes, vem no seguimento dos outros projectos que já tinham feito os dois. Ou seja, a ideia inicial foi logo fazer uma espécie de trilogia ou essa ideia foi aparecendo à medida que foram fazendo músicas? Como é que se desenvolveu esse conceito?
DJ Satelite [S]: A ideia inicial começou com uma trilogia. Quando o Gálio falou comigo sobre lançarmos umas músicas juntos, eu disse: podemos fazer isso, mas vamos fazer de outra forma, vamos fazer uma trilogia. Só que o Horizonte, que foi o primeiro EP, era para ter sido o último, que seria o álbum. O Raizes é que seria o primeiro, a lógica era Raizes, Caminho e Horizonte. O Caminho era o trajecto para depois chegarmos ao Horizonte. Só que já tínhamos muitas músicas feitas em colaboração com artistas, tanto de fora como do panorama angolano, já tínhamos um Horizonte mais aberto, com muitas nacionalidades misturadas dentro do disco… Então começámos dessa forma, depois fizemos o Caminho onde fizemos músicas com o Kaysha ou a Lilly Randa, pessoas que foram aparecendo durante o nosso percurso, também por estar a viver em Portugal nos últimos 10 anos, por causa da editora Seres Produções… Tal como eu encontrei o Gálio ou, na verdade, o Gálio me encontrou a mim.
Como é que tiveram a ideia inicial de começarem a trabalhar em conjunto e fazerem estes discos a meias?
DJ Gálio [G]: Eu queria lançar músicas, já lançava em algumas editoras mas não era propriamente o que eu queria, estava à procura de algo em que me encaixasse e encontrei a Seres Produções. Mandei para lá um EP, o Satelite ouviu as músicas e gostou apenas de uma, disse que a queria lançar; e que as outras iriam para a sublabel. Lá aceitei, comecei a trabalhar com a Seres Produções, naquele momento estava a viver na Bélgica e vim para Portugal. Postei uma fotografia nas redes, ele viu e percebemos que estávamos na mesma zona. Combinámos um café, sentámo-nos, conversámos e eu disse que a partir de agora só queria lançar música na Seres Produções. Fomos tendo aquela ligação, fui lançando músicas, depois comecei a pedir a colaboração dele e fomos lançando, até que tive a ousadia de: olha, e que tal fazermos músicas juntos e criarmos projectos? Ele achou que era uma boa ideia e assim começou esta história toda.
Obviamente, compor e produzir música individualmente é muito diferente do que fazer o mesmo processo em dupla. Como é que trabalharam em conjunto? Desenvolveram algum método? Cada um vai acrescentando coisas às ideias que vão aparecendo?
[S]: Muitas das vezes o Gálio ou eu já temos um projecto e acabamos por trabalhar dentro disso, embora também tenhamos começado algumas do zero. Só foi meio complicado porque o Gálio usa o Logic, eu uso o Fruity Loops e para mim era uma dor de cabeça vê-lo fazer algumas coisas que para mim não faziam sentido [risos]. Porque é que estás a cortar assim, porque é que precisas de copiar isto… Mas comecei a usar mais o Logic com isto. Depois tínhamos aquelas discussões do que é que devíamos deixar ou tirar, mas ao mesmo tempo também foi fácil porque quando ouvimos algo do outro conseguimos sempre flutuar e saber o que queremos, também temos outras inspirações para ouvir, e no final do dia as complicações resultam porque conseguimos fazer trinta e tal músicas. No final do dia é uma complicação saudável.
Também deve ser positivo para descobrir novas formas de trabalhar, ou novos sons, novos elementos.
[S]: Ya, na verdade não é fácil porque temos a mania de sermos perfeccionistas, que nunca está bom o suficiente. Muitas das vezes a música já estava meio que terminada e eu ou o Gálio queríamos meter ainda mais coisas. Chega a uma altura em que, se continuarmos a mexer, não vamos sair dali. Se as pessoas gostarem, gostaram; se não é tranquilo, vamos aprendendo.
[G]: É igual a fazer remixes. Olha, agora vai para ti, agora vai para mim.
E vocês estavam ao mesmo tempo a produzir música para os três projectos, para os três discos da trilogia, ou fizeram as coisas de forma separada porque sabiam o que queriam para cada disco?
[G]: Na verdade, fomos fazendo músicas, depois é que decidimos que estas iam para aqui e aquelas iam para ali. Algumas foram ficando de fora, fomos mudando o número de faixas, depois também apareceram participações de pessoas que têm uma vibe que a gente curte, mais R&B, por exemplo, fomos juntando e chegámos até este ponto em que temos os três projectos.
Olhando agora para os três discos, o que é que este Raizes tem que os outros não têm? É um disco com sons um pouco mais ancestrais, que vai evocar essas raízes, não é?
[S]: A música angolana é grande, mas ao mesmo tempo parece pequena, porque os artistas estão muito focados no imediatismo, então tens pouca gente a fazer coisas alternativas. Embora o afrohouse seja grande, não há muitos artistas que queiram cantar por cima dos instrumentais. Tens muito mais produtores do que cantores no afrohouse. Então foi um desafio para nós porque queríamos ter músicas com kimbundu, umbundo, kikongo… Conseguimos ir buscar pessoas como a Melvi, o Alex Kasion, o Peter Rodrigues, que o Gálio já conhecia; depois eu apresentei a Kelly Gomez; e fomos buscar essas raízes, trazer essas vozes para dentro dos instrumentais, e fomos samplar coisas de kuduro, de semba, instrumentos como o dikanza… Conseguimos ir buscar todo esse espectro da nossa cultura, principalmente as línguas que para nós era o mais difícil… Temos também uma mistura de suaíli. Conseguimos gravar com uma nigeriana, a Riwo; com uma sul-africana, a Sokhana; então foi um encontrar dessas raízes africanas e fiquei muito feliz porque não é fácil ires para Angola e encontrares pessoal que esteja disponível para gravar em afrohouse. E são artistas com óptimas vozes e trabalhos, vários já são conceituados e já entendiam o que precisavam de adicionar, as suas harmonias… Foi um trabalho 100% a fluir.
[G]: O afrohouse surgiu muito com aquelas vozes e os instrumentos mais africanos. Então, quando não se tem essas vozes, pode ser bom, mas já não está tão enquadrado no afrohouse.
Quando referem que é difícil encontrar em Angola vocalistas pré-dispostos a gravar em beats de afrohouse, isso também acontece com os cantores de kuduro, os kuduristas?
[S]: Se fores para estúdio com pessoal que canta kuduro, é muito mais fácil que eles possam meter a sua voz nos beats de afrohouse. Só que também temos a preferência de na maior parte das músicas termos vozes mais soul. E se encontras um kudurista, provavelmente ele vai fazer tudo o que ele quiser fazer, são mais predispostos a fazer qualquer coisa. Mas o maior mercado é o da kizomba, não tens a mesma adesão no afrohouse. É muito mais fácil actuares por toda a Angola fazendo kizomba, kuduro ou semba, por isso é que há muitos artistas que acabam por não apostar no afrohouse. Podem ter uma música ou outra, mas não vêem algo que os beneficie.
Mas, também estando vocês a viver em Portugal, suponho que se posicionem num circuito mais internacional do que apenas o mercado angolano. Até porque há comunidades angolanas ou dos outros PALOP espalhadas pela Europa e pelo mundo.
[S]: Na prática, não é bem assim porque os angolanos não vivem muito em comunidade. Por exemplo, há comunidades muito fortemente ligadas a Cabo Verde, mas isso não acontece muito com o caso dos angolanos. Estão sempre meio espalhados e nunca há aquela ideia de comunidade. E aqui em Portugal o pessoal que mais toca é aquele que já nasceu ou cresceu em Portugal. E há lobbies. Mas, no final do dia, vou continuar a fazer música e a tocar onde realmente estejam interessados. É mais fácil tocar em França, na Bélgica, na Alemanha, na Holanda ou no Quénia, no Senegal, na Nigéria…
Vão ter agora datas específicas em que vão apresentar o álbum?
[S]: Depois de Lisboa, a 17 de Maio vamos actuar em Paris, especificamente para apresentar o álbum, e a 24 de Maio temos em Cabo Verde a Akuaba, a celebração do Dia de África, e também vamos com o conceito do álbum, o pessoal convidou-nos mesmo por isso. Provavelmente também vamos fazer em Luanda, talvez em Julho.
[G]: Vamos tocar algumas músicas do disco, mas também misturar com músicas de outros artistas que gostamos de ouvir, que têm a mesma onda e que nós também gostamos de tocar.