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DJ Ride no Lisboa Dance Festival: quando se arrisca, coisas mágicas acontecem


[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO E VÍDEO] Bruno Martins

Aviso prévio: sou amigo pessoal de DJ Ride há muitos anos. Já editei discos da sua autoria, já produzi concertos seus, já passei muitas horas a falar de música com ele. Já gostei muito de discos que fez, já gostei um pouco menos doutras coisas em que deixou a sua marca, mas nunca deixei de ter uma perspectiva crítica sobre toda a sua obra. Trabalho e conhaque, como diria Nerve.

O hip hop tem por cá evoluído sempre à custa de golpes de rins por vezes misturados com pitadas de génio, com todos a buscarem a mágica fórmula da superação, mas com poucos, na verdade, a poderem garantir tê-la encontrado. E para o caso presente, esqueçamo-nos do campeonato dos discos, dessa dimensão em que se desenha na cabeça, concretiza-se no estúdio e coloca-se o resultado final numa rodela. Pensemos no palco. Em cima das tábuas tem havido nos últimos anos quem tenha percebido que já não é só acerca de pegar num microfone, disparar um beat de uma máquina e esperar que tudo corra bem. Quer dizer, até pode ser só isso, mas para resultar uma pessoa tem que se chamar Nerve o que é algo que poucos podem reclamar. É preciso mais: nesse campeonato, Sam The Kid terá sido dos primeiros a perceber que se poderia ir mais longe, quando começou por recrutar gente dos Cool Hipnoise que acabou por o conduzir à fantástica encruzilhada de ideias e de talentos que se chama Orelha Negra. Há outros casos: Mundo Segundo é outro exemplo possível, outro MC habituado a intensos diálogos com o microfone com cenário proporcionado pelo que se desenrola nos seus auscultadores, mas que entendeu que em cima do palco é possível tentar outras dinâmicas, outras possibilidades. Outro exemplo ainda será o de Capicua, artista que investe uma invulgar capacidade de comunicação em cima de palco e consegue sempre tocar nas pessoas – nos corações, nas cabeças, nas consciências, oferecendo uma ideia de envolvimento em que a palavra é o principal, mas não o único argumento.

Na prestação que assinou no segundo e derradeiro dia de Lisboa Dance Festival, DJ Ride juntou-se a essa liga. Atenção: o homem que o final do ano passado lançou From Scratch nunca encaixou propriamente no perfil estático do DJ, mesmo no do DJ de hip hop, que aos party bangers pode até juntar assinalável destreza técnica, mas que no fim do dia o que leva para o palco pouco mais é do que uma boa mala de discos – real ou virtual – e um apurado conjunto de skills. Interagiu com músicos – em projectos com Rocky Marsiano ou Rodrigo Amado. Dialogou com gente de galáxias diferentes, como Legendary Tigerman, por exemplo. Injectou imagem na equação de scratch que tão bem domina com o seu Pixel Trasher. Tentou sempre dar mais um passo. Mas no palco da sala Zoot fez outra coisa.

Rodeado de músicos, recursos humanos dos HMB por exemplo, que se dividiram na bateria, guitarra, teclados, saxofone, ladeado por pares como Stereossauro (tão enorme este homem) ou Holly (já nem é promessa, é certeza este “menino”), e com input de vozes como as de Jimmy P, dos pesadíssimos MGDRV ou da sempre perfeita Capicua, Ride fez o que já pouco se faz, sobretudo quando o contexto é de maior exposição e o bom senso diz que é melhor jogar pelo seguro: arriscou. E no risco, é assim em tudo na vida, é que se descobrem as novas possibilidades.

O concerto da Zoot marca, de facto, um recomeço para DJ Ride. Não será “from scratch”, do nada, porque consigo este DJ carrega uma respeitável bagagem de experiência e de conquistas artísticas que não lhe podem ser regateadas. Mas abriu-se ali algo de novo para si. Porque ontem, além de DJ, Ride foi maestro, foi director artístico, foi arquitecto de um novo edifício sonoro. DJ Ride, e aí posso invocar a tal amizade que comecei por referir para garantir que sei do que falo, tem um trunfo de que nem todos os DJs poderão orgulhar-se, por estranho que isto possa parecer: um excelente ouvido. Sei disso por causa das tais incontáveis horas de conversa sobre funk e library music, sobre electrónica experimental e rock psicadélico e free jazz que ele colecciona com afinco em vinil. Tem um ouvido generoso, com sede suficiente para beber em múltiplas fontes. Como eu disse, deveria ser uma qualidade repartida por todos os DJs, sobretudo os de hip hop que é um género que tem essa aparentemente infinita capacidade de transformar toda a matéria sonora de todas as origens e estéticas em loops ou samples significantes, mas a verdade é que poucos que eu conheço vão além da curiosidade da descoberta do tal loop ou sample, poucos querem ouvir o resto do disco depois de encontrarem os dois segundos que vão ser usados num novo beat. Tudo bem, também funciona assim e há gente capaz de pintar autênticas Capelas Sistinas sem ir para lá dessa curiosidade funcional e desses dois segundos. Mas DJ Ride não é assim. E ainda bem, porque para o palco, esse ouvido generoso acaba por ser um argumento importante. Ride, já se sabia, é um produtor de mão cheia, um DJ de outra galáxia, um músico muito sólido. Com este concerto passou também a ser um autor de respeito, o detentor de uma visão apurada, um orquestrador e um arranjador que entende as novas dinâmicas hip hop e que consegue ser ambicioso na hora de pisar o palco.

Claro que DJ Ride tem andado a ouvir Kendrick Lamar. E Flying Lotus. E Thundercat e Kamasi Washington. E Dam-Funk. Todos temos andado a ouvir isso tudo. E a processar o que se ouve. Mas nem todos saberão depois traduzir o que se vai ouvindo e o resultado da mistura de todas essas audições numa nova e coerente proposta artística: ontem, houve jazz livre e funk suado, houve malhas rock e vocoder cósmico, houve guitarra portuguesa no sampler, houve hip hop, como é mais do que óbvio, houve momentos de calma soul e tempestades sonoras trap. No final, o concerto parecia ter demorado apenas uns 20 minutos, mas isso é o que acontece quando a música faz ao tempo aquilo que os cientistas dizem que se passa nos buracos negros, quando as dimensões todas se comprimem e até a luz desaparece. DJ Ride apresentou uma dimensão nova, sem ceder musicalmente, sem ir pelo lado mais fácil de levar músicos para cima do palco só para se dizer que se tem uma banda e assim tentar-se abrir outro tipo de palcos. Nada disso. Ride tratou a banda como costuma tratar as pequenas células de som que extrai do seu sampler, do seu gira-discos ou dos seus sintetizadores – como peças de um quadro mais vasto, de um puzzle que resolve com arte. Quem o conhece saberá que nada aconteceu ali por acaso, que tudo foi premeditado e que nos ensaios há-de ter dito coisas como “na boa, man, leva isso ainda mais longe, não tenhas medo de abusar”. Ou algo que o valha. E quando esta máquina estiver afiada e afinada, a coisa poderá resultar ainda mais séria.

O que eu sei é que quero ver como vai correr o próximo.

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