Em entrevista ao Rimas e Batidas, Lynce, o DJ mais regular da cena clubbing do Porto e residente do festival Mucho Flow, abre uma fresta para as práticas que habita há 25 anos, nas quais se contam alternar discos, programar noites de clubbing, procurar talentos escondidos e, mais recentemente, produzir. Dos anos a colecionar CDs em Lisboa até aos primeiros lives em 2023, o artista radicado na Invicta fala sobre DJing, de cultos e do ethos que o eleva a um dos misturadores de música mais consensuais do país.
DJ Lynce é um nome a cujo acaso devolveu uma importância singular. Uma mera brincadeira num quarto do produtor, compositor e artista multimedia Jonathan Uliel Saldanha, valeu-lhe o epíteto que, fadado, define judiciosamente bem a sua carreira artística: o alternador de discos radicado no Porto não partilha apenas a origem beirã com o felino mais protegido da península ibérica, mas também vive de uma certa escassez de aparecimentos públicos fora do seu habitat natural — leia-se, as pistas do Porto — e goza de uma inesgotável admiração dos mais atentos.
A brincadeira deu-se aquando dos tempos áureos do coletivo Faca Monstro, de que Lynce, a par de Jonathan Saldanha, Ghuna-X, Maze, Expeão, entre outros produtores da cena bass do norte metropolitano, faziam parte. “Eu vinha do Fundão, perto da Serra da Malcata, zona do lince ibérico. Na altura, o animal estava quase extinto e o Jonathan estava fascinado com isso, tinha até recortes de jornais com fotos no estúdio. Fizemos brainstorming e nasceu ‘DJ Lince’. Eu disse logo: ‘mas tem de ser com Y, como o HHY’. E ficou.”
Lynce é o nome que o acompanhou nas cabines desde praticamente o início, apesar do arranque em nome próprio, Pedro Santos, ou com o coletivo Concorrência. Não foi no Porto que começou, contudo, ainda que seja já um nome indissociável da cidade. Os primeiros anos foram em Lisboa, principalmente no A Capela, e desde 2003 que se estabeleceu na Invicta: “Já apanhei o fim da Ribeira. Em 2004, quando o Becas abriu o Passos Manuel, comecei logo a tocar lá e continuo até hoje. Também estive no circuito com Café Au Lait a partir de 2007 e até fechar.” Tudo isto a tocar, a programar (no Aniki Bobó, no Plano B e no próprio Passos Manuel), e a procurar novos MCs para debitar rimas sobre batidas tangenciais ao grime com a Faca Monstro (tudo devidamente documentado no Bandcamp).
Durante a conversa, houve algo que se destacou — escutar um agitador de pistas do mais incendiário que já se ouviu a admitir uma certa resistência ao contemporâneo, mas nunca ao novo. “É um bocado como dizia o Mark Fisher: ouves algo recente e pensas ‘já ouvi isto antes’.” O que não admira para alguém que leva um quarto de século a colecionar música de todos os quadrantes, ainda que com uma preferência: “Comprava discos na Valentim de Carvalho, no Chiado. Tinham uma boa secção de música eletrónica, Warp, Rephlex… absorvi aquilo tudo. A primeira música eletrónica que comprei foi drum and bass, em ’97, na Virgin. Uma compilação da editora do DJ Hype. Bateu-me imenso, nunca larguei o jungle.”
Esta frase, em particular, define bem a sua expressão mais recente e sublinha, também, uma das duas constantes da carreira de Pedro Santos: a primeira, a agilidade iconoclasta com que se mexe entre batidas quebradas do jungle, hardcore drum and bass e breakcore e os sintetizadores saturadíssimos do acid e do braindance; a segunda, preterida na afirmação, será sempre a elasticidade que lhe permite estender-se do dub, ao ambient, ao rock, ao trance, ao techno e ao que for. Foi assim que segurou duas noites de sets no festival de música extrema Amplifest, em 2015, e é o que faz na sua atual residência no clube de rock Barracuda, no Porto, onde apenas se foca em guitarras e distorções. “Estou a adorar. Sempre ouvi isso desde adolescente. Apesar da eletrónica ter tomado conta da minha carreira, o rock nunca desapareceu.”
[É sempre sobre uma hora bem passada]
“O DJ para mim é só um intermediário entre o artista e o público,” explica-nos, depois de contar que produzir revelou-se um exercício natural. “No fundo, é uma extensão do meu trabalho como DJ. As referências que trago para o live vêm todas da minha cabeça e aplico-as nas minhas produções. É a continuação do meu trabalho dos últimos 20 anos.”
Isto é algo particularmente audível no live que editou em cassete pela icónica Príncipe Discos, gravado em maio de 2023 na ZDB. Live @ Bola de Cristal revela precisamente esta capacidade de construir sets a partir da nuvem de ideias e influência que já habitam o seu córtex cerebral. Foi, também e segundo o próprio, o momento pivotal em que o seu “setup mudou radicalmente” e chegou ao ponto em que se encontra agora.
No início da gravação, um synth bem robusto, quase grave, abre espaço para uma linha de um outro synth e uma batida de tarola e elementos rítmicos mais altos, quase sem kick. Daí ao hardcore entrar pela pista (e pela fita), é o suficiente para o primeiro acid bater com uma nova linha melódica e guiar-nos até aos amen breaks. A noite ficou feita quando, só munido de sintetizadores, Pedro Santos levou a sala do Bairro Alto de volta a ’92, com harmonias aurais a saltar entre hardcore e jungle antes de se lançar para o abismo do fim com mais acid. Qualquer fã de aeróbica iria catalogar este lançamento como um dos mais essenciais de 2024 para queimar massa calórica.
A sua metodologia é inseparável da sua experiência de DJ: “Eu penso no meu próprio concerto, no set. É muito mais ligado à minha maneira de atuar. Misturo o que me interessa: braindance, acid, jungle… O primeiro passo é sempre pensar na cena longa. Quando começo a criar, vou percebendo. Não penso ‘isto tem de ter 8 minutos’. É mais: ‘este som interessa-me’, aplico um beat, depois junto os meus beats, depois um sampling… Vou ver onde a coisa me leva.” O resultado é uma não linearidade de influências de clubbing que se misturam de forma imperceptível, ou, como o próprio diz, “o público nem nota.”
Também por isso, não há uma real separação entre as duas formas de atuar. No Mucho Flow de 2024, Lynce apresentou-se para fazer exatamente as duas coisas em paralelo: DJ set e live set. Acabou por fazer uma hora de sintetizadores e depois lançar-se aos pratos. Uma nova aptidão que parece ser apenas natureza, mas algo que levou a cozinhar. Ao Rimas e Batidas explica que há uma década que anda a preparar esta nova fase: “Comprei máquinas, mas não sabia nada. Passei uns três anos só a estudá-las, sem editar nada. Só há dois anos ganhei confiança para mostrar ao vivo.” E mesmo assim, o primeiro concerto foi uma prova de fogo em que “estava cheio de medo [e levou] o estúdio todo,” no início do ano 2023 na Lovers & Lollypops.
[Entre a música e o ouvinte, o DJ]
Agora com material acumulado e uma segurança nas máquinas equivalente à que tem demonstrado nos pratos, Pedro Santos vai iniciar um novo capítulo a editar música. Quase uma viragem de página, em que passa de mediador a mediado, mas sempre com os olhos e o coração na pista de dança. A sua metodologia de composição, como se viu, é sempre a mesma: criar peças longas, narrativas de uma hora ou mais a induzir dança e danificar soalhos, encontrar as transições e retalhá-las. A gravação, contudo, é tão “conservadora” quanto a sua persona de alternador de discos: “Gravo sempre num take só. Ensaiado, mas de uma vez. Não uso computador para produzir, só um gravador. É muito analógico, mesmo à moda dos anos 80, como se fazia em Detroit.”
Conservador, porque, como diz o próprio Lynce, há uma certa resistência aos novos cultos de personalidades — talvez informada por uma certa proximidade estética à soundsystem culture que colocava o próprio som como figura de proa do “palco”, com os DJs escondidos atrás do público. “Eu, se calhar, sou mais conservador nesse aspeto. Acho que as redes sociais tomaram conta da cultura do DJing. Há muito aquela pressa de ‘quero ser DJ’ ou de ter algo para mostrar,” conta-nos. “Eu acabo por não acompanhar tanto as novidades, nem seguir a DJ culture como antes. Não vou ver sets, playlists ou podcasts. O que me interessa é o produtor, quem faz a música. O meu foco são as editoras e os artistas. Sempre foi assim, na verdade.”
E se Lynce assim ficou, resistindo durante mais de duas décadas ao constante perigo de extinção, também o seu ethos permanecerá integralmente presente na sua prática. “O DJ para mim é só um intermediário entre o artista e o público”.
Para breve, além do regresso ao seu laboratório de experimentação de excelência no festival vimaranense Mucho Flow, a decorrer entre 30 de outubro e 1 de novembro e com o encerramento seguramente ao encargo de DJ Lynce, Pedro Santos vai lançar a sua próxima cassete pela editora Golden Mist, sob o título Tales From the 404 Code.