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Publicado a: 27/04/2018

DJ Kwan: “Hoje quase nem faz sentido teres uma casa que não passa hip hop, o que era impensável”

Publicado a: 27/04/2018

[ENTREVISTA] Ricardo Farinha [CAPTAÇÃO IMAGEM E FOTOS] Sebastião Santana [EDIÇÃO] Luis Almeida

Do scratch à pista de dança, da rádio à produção: DJ Kwan é um dos maiores e mais completos mestres do DJing nacional e está a celebrar 20 anos de carreira em 2018 — um percurso que no início esteve muito ligado aos Mundo Complexo, grupo da Linha de Cascais que se estreou em 2003 com Acredites ou Não. Na capa desse disco editado pela Loop Recordings está um miúdo que hoje em dia anima qualquer pista do País: DJ Big, o irmão mais novo de Kwan, com quem tem o projecto True Blood.

Encontrámos DJ Kwan para uma conversa no Park Bar, na Calçada do Combro, em Lisboa, naquela que tem sido uma das principais casas a acolher os seus sets recheados de hip hop, claro, mas embrulhado em várias outras sonoridades.

 



Indo primeiro ao teu início de carreira: obviamente que está muito ligado à fundação dos Mundo Complexo, sendo que tu não te juntas logo no início ao grupo, não é? Como é que depois se dá essa ligação?

Já conhecia o Dé, ou seja, o Ridículo, do skate. Na altura eu tinha uma banda de punk rock e costumava ir com ele para concertos e andávamos de skate. Comecei a fazer scratch em 98, um pouco por culpa da vinda cá dos X-Ecutioners, quando foi a Expo. Ficou uma vibe assim mais intensa, o pessoal do scratch começou a aparecer mais. E também acho que aquilo os motivou de alguma maneira. Comecei a fazer scratch um bocado influenciado pelo Cruzfader, o Assassin, que é da minha zona: Carcavelos. E essa altura foi também quando se formaram os Mundo Complexo, ainda com uma formação seminal. Tinha o DJ 30 Paus [mais conhecido como Nomen, na arte do graffiti], o Tony e o Ridículo. Naquela altura era um pouco diferente de hoje em dia, porque fiquei para aí um ano a treinar em casa antes de mostrar o que quer que fosse. Hoje em dia isso é impensável, a paciência é outra. E depois, na altura, a formação deles estava a mudar. O DJ 30 Paus saiu. E por volta de ’99 comecei a juntar-me, como DJ, com quase dois anos de experiência a treinar. Comecei a fazer sets na Rádio Marginal, no programa Hip Hop Don’t Stop, que depois haveria também de fazer com o D-Mars, e a partir de 2000 começámos a ensaiar o núcleo que ficou depois: eu, o Tony, o Ridículo e o Tranquilo. Quase que o início da minha carreira como DJ se confunde com os Mundo Complexo.

Começas pelo scratch e o turntablism, sozinho, mas depois evoluis enquanto DJ de um grupo.

Na verdade já misturava antes do scratch, eu já tinha pratos, misturava discos de rock e hard rock.

Em festas?

Sim, já tocava nalgumas festas. Depois tomei conhecimento do scratch, porque eu também já estava envolvido na cultura hip hop desde meio dos anos 90. Percebi que era algo diferente e ia ser um desafio muito grande, foi isso que me puxou para começar a fazer scratch e foi nessa altura que arranjei o nome Kwan e começou, na verdade, a minha carreira.

E era mais fácil misturar rock ou hip hop em festas?

O princípio da mistura é basicamente o mesmo: tens que contar tempos. Depois claro que o género musical difere e há a parte técnica que, quando és DJ de hip hop, exploras muito mais o gira-discos.

Agora passaram 20 anos de carreira, muita dela com os Mundo Complexo, outra grande parte a solo, e estás a celebrar com várias iniciativas: os live streamings, as rotinas de scratch. Queres contar-nos mais planos que tenhas para este ano? Também sabemos que vais misturar uma mixtape do Madkutz.

Há essa ideia, sim, é uma pessoa com quem ao final destes anos todos estou mais em contacto e percebi também que, segundo ele, fui um dos responsáveis por ele começar a passar discos, o que é bom, porque depois essas pessoas também te inspiram a ti. Na verdade, eu sou tão fã dele como ele é meu fã. E até me está a dar alguma ajuda na parte da produção, que é algo que nunca tive muito tempo para fazer e queria ver se este ano começava a dedicar-me um bocadinho mais. Além dos live streaming especiais que estou a fazer, a partir do meu sótão, e além dos 20 vídeos que vou fazer — da série 20 anos 20 vídeos, 20/20 –, vou editar música nova, estou a tentar planear mais para o final do ano uma festa especial, em que seja a oficial dos 20 anos. E vou lançando também edits e a ideia é diluir a celebração dos 20 anos pelos vários eventos onde vou passando. Também no verão há de haver datas especiais.

Pegando no tema da produção, em 2015 quando lançaste a faixa “Good Things Don’t Come Easy”, disseste que estava nos teus planos apostar mais na produção e lançares mais singles. Isso mantém-se, apesar de entretanto não terem havido novidades?

Mantém-se, apesar de eu continuar a não ter muito tempo para a produção, e é algo que levo muito a sério. Por isso não quero dizer que sou um produtor, mas vou fazendo umas coisas.

 



Tens estado a trabalhar nisso?

Tenho. Cheguei a lançar uma remistura da Da Chick com o meu irmão, no nosso projecto True Blood. E tenho lançado alguns edits também para o SoundCloud. Mas a produção ainda é algo em que tenho de trabalhar muito mais.

Tens estado a pensar numa estética específica de beats?

Não, e esse é um dos problemas. Considero-me um DJ ecléctico e uma pessoa que ouve muita música.

Passas vários tipos de coisas.

Exactamente, de certeza que a próxima coisa que vou lançar não será uma coisa na onda do “Good Things Don’t Come Easy”, que era um som de boom bap, uma coisa que queria fazer há algum tempo — e fiz. Gosto muito das novas tendências da música electrónica, de future beats e essas coisas. Por isso, não te sei dizer o que será a próxima coisa, até pode ser mais dentro do hip hop convencional. Mas a verdade é que sinto que recebo essas influências todas e que de alguma maneira, mais cedo ou mais tarde, isso vai sair em alguma coisa que vou editar.

Recentemente saíste da MTV Portugal. Foi também para apostares nos teus projectos enquanto DJ?

Por um lado. Mas não teve completamente a ver com isso, porque sempre consegui conciliar bem as duas coisas. Tem a ver com o facto de estar há dez anos num sítio e também querer seguir outros caminhos.

Quando olhavas para uma pista de dança, enquanto estavas a tocar, no início dos anos 2000, e quando olhas agora, qual é a grande diferença?

Há tantas diferenças. O público é mais ecléctico, numa festa de hip hop hoje em dia vês betinhos, pessoal do hip hop, pessoal do bairro, e antigamente não acontecia. O que é óptimo, não é? Quanto mais ecletismo houver, e se perceber que o hip hop é um fenómeno abrangente, e não é fechado, melhor. Há muito mais mulheres a ir às festas, por exemplo, o que também faz diferença. Em termos práticos, e quando és DJ percebes isso, se puseres as mulheres a dançar a festa vai correr bem de certeza porque vem mais gente. São coisas que vais apanhando. O tipo de som também é diferente, o que se passava na altura não é o que se passa hoje. E ao início era muito difícil, os promotores e as casas não queriam passar hip hop porque achavam que aquilo era pesado, que trazia pessoal que eles não queriam, etc. Graças a Deus as coisas foram mudando, e hoje quase que já nem faz sentido teres uma casa que não passa hip hop, o que era impensável há cinco ou seis ou sete anos. Hoje em dia, no verão as melhores casas do Algarve têm todas festas de hip hop, as de Lisboa têm todas festas de hip hop. Depois o que ouves lá já é outra conversa, e se realmente são festas de hip hop, ou se vais a uma festa que dizes que é de hip hop e depois ouves lá tudo, kizomba e o “Despacito”. Mas a verdade é que o género diversificou-se e há mais gente a ouvir.

E este espaço onde estamos, o Park Bar, também simboliza um bocado esse crescimento de que falas.

Sim, aqui ouve-se hip hop. Na verdade o Park atrai muita gente de fora, turistas, e se falarmos de ingleses, etc., a cultura musical deles é um bocadinho diferente da nossa. A verdade é que até ’74/’75 tivemos um bocado fechados a influências de soul e música negra. E aos poucos temos vindo a recuperar isso.

E falando daquilo que se passava na altura, no início dos 2000, e hoje, em 2018, tem sido natural para ti adaptares-te àquilo que as pessoas estão a ouvir e conciliares com aquilo que queres passar?

Tem, porque também é o que eu quero ouvir. E na verdade uma das razões pela qual eu sempre tive um day job é para, depois, quando estiver a passar ou a fazer música, seja só fazer aquilo de que gosto. Obviamente há uma adaptação à pista e a quem está lá. Mas tenho a sorte de dizer que não passo coisas de que não gosto, que não tenho de fazer fretes, como se calhar há alguns DJs que dependem disso para pôr comida na mesa, e não os julgo. Mas eu procurei encontrar uma situação em que não tenho necessidade de o fazer, e acho que as pessoas quando me vão ouvir percebem isso, que estou a tocar a música de que gosto. E toco coisas muito variadas, mas dentro da música de que gosto e que gostaria de estar numa pista também a ouvir.

 


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E costumas levar um set mais ou menos preparado? Como funciona?

Não, preparo a música que tenho para levar, mas não necessariamente o set. Tento preparar, agrupar a música, juntar. Mas o set, por si… é sempre difícil preparares um set.

Há alguma coisa que faças sempre questão de passar?

Talvez o Stevie Wonder passe sempre nos meus sets. Mas, lá está, depende muito do gig. E na verdade eu tanto posso estar aqui a tocar no Park, como posso estar a tocar na Queima das Fitas de Coimbra.

Exacto, seja às seis horas da tarde ou às duas da manhã. Pegando nisso, neste momento há muito espaço para os DJs de hip hop: festas, clubes, festivais, semanas académicas, e por isso também há cada vez mais DJs. Há alguma desvantagem por haver tanta gente a passar hip hop hoje em dia? Perde-se o filtro da qualidade?

Como é óbvio, isso vai acontecer, até porque hoje é muito mais fácil seres DJ: um computador e sacar temas da net. Espero também que os promotores vão percebendo a diferença entre contratar um DJ a sério, para tocar hip hop, ou um miúdo que sacou os temas da net e vai lá pôr os hits todos e as coisas que passam na rádio. Verdade é que há promotores que ficam super satisfeitos com isso, e, se calhar, para as pessoas que vão a esses clubs não faz diferença. Eu tento trabalhar com os outros, que realmente te contratam porque sabem que és uma mais-valia, e quando uma casa está cheia é fácil para qualquer pessoa pôr música e debitar os hits e aquilo continua cheio. O pior é quando a casa não está completamente cheia e tens de construir aquilo. Aí vê-se quem é que é DJ e aí conta a experiência, a leitura de pista, a música que levas, etc. Eu tento não me concentrar muito nisso, mas a verdade é que, sim, há um fenómeno hoje em dia. O hip hop está na moda e há muitos DJs que nunca sequer tocaram hip hop e agora tocam, porque também percebem que é o que as pessoas querem ouvir. Se calhar tecnicamente não são muito bons, se calhar só tocam as coisas mais conhecidas, não têm a preocupação de educar a pista, mas, mais uma vez, eles estão a construir a sua cena e os promotores convidam-nos. Acho que cabe ao público separar o trigo do joio, como em tudo na vida. E nós vamos fazendo o nosso trabalho.

Na tua opinião, quem são os DJs que gostas mais de ouvir e que apareceram nos últimos anos? Além do teu irmão, o DJ Big, claro.

O meu irmão, não é por ser meu irmão, mas é uma resposta óbvia, porque realmente tem evoluído bastante, e acho que, em três anos, fez muito para um DJ novo. Se bem que ele já vem da cultura hip hop e tem uma cultura que se calhar a maior parte dos DJs da idade dele não tinha quando começou. Por causa do background dele.

Também o ajudaste nisso, de certeza.

Sim, de alguma maneira, posso ter ajudado. E ele próprio interessa-se em ouvir as coisas que estão para trás, para perceber o presente, e isso é bom. Graças a Deus, já temos uma palete de DJs muito boa cá: desde as pessoas que têm mais técnica às pessoas que põem uma pista… ainda ontem, por exemplo, estive na festa da Enchufada, Na Surra, e eu gosto. Gosto de ouvir o Progressivu, o Branko, essa malta, gosto de ouvir o Glue, o Ride e o Stereossauro obviamente que têm um valor gigante em termos do que se faz cá em turntablism, e do real DJing, mas há muitos mais, vou-me estar a esquecer de pessoas. Mas eles sabem quem são, porque quando sou fã sou a primeira pessoa a chegar e a dizer que sou fã e que gosto do set das pessoas. E acho que era fixe que mais pessoas fizessem isso. Porque é muito fácil hoje em dia, nas redes sociais, dar hate. Mas tu dizeres que gostas do trabalho de alguém e dar props… as pessoas às vezes, não sei muito bem qual é o sentimento, se é inveja, se preferem dizer mal do que dizer bem, não percebo muito bem, mas faço questão de dar props às pessoas quando acho que elas merecem.

Focando-nos numa vertente mais técnica do DJing, o turntablism, é uma coisa que gostarias de voltar a fazer em campeonatos?

Em campeonatos não sei, tive a minha fase e tu treinares para um campeonato significa treinares três ou quatro horas por dia.

É um investimento grande.

É, em termos de tempo. E depois também é chegares lá e sujeitares-te àquilo que o júri vai achar do teu set. A partir de certa altura deixei de querer fazer isso. Obviamente que o retorno é quase sempre pessoal, e é teres um desafio que é montar um set para um campeonato, chegares lá e ver se consegues fazer aquilo 100% bem, ou se falhas, e isso é o principal sempre e é o amor que tenho ao scratch. O resto é uma questão de prioridades e isso deixou de ser uma prioridade. Não quer dizer que amanhã não surja uma oportunidade de isso acontecer, não faço ideia. Mas a verdade é que também, nos últimos anos, não têm havido competições de scratch em Portugal. Por isso vou fazendo as minhas routines, os meus vídeos, há as scratch jams dos Scratchers Anónimos, por exemplo, e há sempre uma jam que surge no sótão, quando estão lá amigos, e isso é o mais importante. Na verdade, os campeonatos para mim não são prioridade neste momento.

Aquilo que tem sido uma prioridade maior para ti, ao longo dos anos, tem sido a rádio. Tiveste vários programas, agora estás na Oxigénio com o Soulspiracy.

Sim, porque eu comecei a ser DJ de hip hop também por causa da rádio. Eu trabalhava na Rádio Marginal, um bocado também por influência do Rui Miguel Abreu e do Jaws-T que tinham lá o programa Hip Hop Don’t Stop, e comecei a juntar-me a eles. Ao mesmo tempo, comecei a fazer scratch, juntei-me aos Mundo Complexo, e os meus primeiros sets foram na rádio, no programa deles. Entretanto eles saíram e eu fiquei a fazer o programa com o D-Mars. E a rádio sempre esteve envolvida.

O que te continua a desafiar na rádio e a fazer que tenhas um fascínio por ela?

O fascínio que temos pela rádio acho que é um bocado difícil de explicar, eu próprio não te sei explicar muito bem. Mas de certeza que tem a ver com aquilo que também me faz ser DJ, que é mostrar música às pessoas. Dizer “isto é bom”, e “as pessoas têm que ouvir isto”. Não têm que ouvir só as coisas mais óbvias, aquilo que ouves em todos os clubs, ou em todas as rádios mais comerciais, isto também é bom e tem de ser mostrado às pessoas. É o que me dá motivação para ainda tocar e acaba por ser também isso que me faz querer fazer rádio.

Além da rádio, dos sets, do turntablism, de que já falámos, há algum projeto ou vertente do DJing que gostasses de explorar mais no futuro, que ainda falte ser concretizada? Ou tem a ver com aquilo que estávamos a falar, da produção?

Talvez fosse isso, sim. Tenho noção que não tenho muito tempo, porque não posso abdicar do resto, que na verdade é o que me ocupa mais e também tenho estado a desenvolver o meu projecto True Blood com o meu irmão. E agora neste ano de celebração, como tenho tanta coisa que quero fazer e tantos objectivos que tracei, dificilmente vou explorar muito a produção este ano. Mas também não tenho pressa, e, na verdade, isto da produção e do DJing, ou a vida em geral, não tem de ser uma corrida de velocidade. É uma maratona, e portanto tenho muito tempo para ir explorando a produção. As coisas vão acabar por ir acontecendo.

E nesse sentido, em gerir a tua carreira e os vários projectos que tens, consideras que és uma pessoa metódica e estratégica?

Sou, sempre fui. Gosto de ser organizado, de preparar os sets, e acho que isso também vem do meu background do turntablism. A preparação é tudo, organizar-me para quando estiver num sítio posso ir buscar a música e sei onde está, não tendo o set feito.

Para terminar, existe algum plano em relação aos Mundo Complexo? Vocês juntaram-se recentemente para trabalhar num projecto a solo do Tranquilo, não foi?

Exactamente. O pessoal tem estado a fazer as coisas a solo deles, e normalmente estamos todos envolvidos nos projectos uns dos outros, portanto na verdade a paragem foi enquanto colectivo, mas nós continuamos a fazer coisas. E vão surgir uns temas este ano com Mundo Complexo, seguramente.

 


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