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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 17/10/2019

A produtora de Filadélfia actua na edição deste ano do Jameson Urban Routes.

DJ Haram: “Prefiro que as pessoas fiquem impressionadas com os meus sons e histórias do que com a minha mesa de mistura”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 17/10/2019
Por entre retratos de relativo glamour e anúncios de novos mixes, uma imagem ganha destaque na grelha social de DJ Haram. Os ingredientes? Uma mesa Pioneer DJ, um par de monitores, cartazes informativos da Moog — e uma máquina de costura cor-de-rosa. Questionada sobre a semiótica em mostra, a produtora de Filadélfia não tem meias-palavras. “É uma visão alargada da artista multimédia que sou”, diz num tom quase solene, como se não fosse a proponente de um EP que se intitula Grace, mas convoca antes a aura de um conflito, uma inquietude de alma — no seu caso, atingida pela hecatombe familiar.  A darbuka (instrumento árabe de percussão) é o ponto de confluência de cordas em tormento e sintetizadores agudizados. O produto final desdobra um planisfério acidentado, uma tapeçaria de sons combativos — especialmente em “Body Count”, um momento “Odete vai à Hyperdub” — e sempre suspensos, como as incorpóreas “Grace (K.O.D)” ou “Candle Light”. Em cada nova viragem, como no clímax dilatado de “No Idol”, Haram desinibe-se de proibições; um trajecto que procura reproduzir na qualidade de DJ. Colaboradora de Moor Mother no projecto 700 Bliss, DJ Haram actua em Lisboa no dia 24 de Outubro. Trata-se da quarta noite de Jameson Urban Routes no Musicbox, que traz também Odete, DJ Narciso e Badsista.

Andas em digressão, certo? Sim, andei em digressão durante maior parte do Verão e um pouco do Outono, mas tenho estado em casa, em Philly, desde o início de Setembro. Vais voltar a Portugal; da última vez, vieste com a Moor Mother, em 2018, em Barcelos. Sim, tocámos num festival e também na ZDB — foi do caraças, gosto muito de Portugal. É por isso que fico contente por falar com a imprensa, porque estou disposta a conectar-me e a voltar aí. É altura de as pessoas te conhecerem melhor. Tem sido um ano muito centrado nisso, presumo, com o novo EP. Acho que nunca fiz DJ em Portugal — acho que a última vez foi em 2017, a solo. Passei na diagonal pelo teu Instagram e abri uma foto com um comentário por uma empresa de mobiliário, a propor uma colaboração. Estou-te só a avisar. [risos] Imagino que tipo de colaboração é que eles querem. Estou prestes a voltar atrás no Instagram. E se for um jingle para um anúncio? Isso é um branding tão horrível, não fazer parte de um anúncio como DJ. [risos] Era mais na onda de elevar a projecção deles através da tua, seria como caridade. Pois. Vou precisar de um cheque generoso para isso. Na verdade, vi ontem um anúncio de um carro da Nissan com Jersey Club [música electrónica de dança que nasce na Nova Jérsia nos anos 90], talvez me devesse juntar. Estava curioso sobre algo que mencionaste: um tipo no teu concerto em Tóquio que queria ajustar os teus marcadores [cue points] do teu DJ set. Que raio se estava a passar? Oh meu Deus, sim. Isso foi… eu não faço ideia de qual era o problema dele. Normalmente, quando as pessoas no público me estão a tentar dizer alguma coisa, a não ser alguém que eu conheça, ou o promotor ou um DJ, provavelmente vou só ignorar. Estarão a tentar dizer algo simpático ou a pedir uma canção, e eu estou um bocado “Ehh… whatever. Provavelmente estás bêbedo”. Mas ele estava a gesticular de forma muito específica, a fazer parecer que algo estava errado, como se alguma peça [do setup] estivesse desligada e eu não soubesse. Eu estava confusa e ele continuava a fazer movimentos estranhos, pensei: “estou a perder tempo contigo, soa bizarro, não sei o que estás a fazer”. A Frankie [Decaiza Hutchinson] da Discwoman estava lá, como rave mom, e quis perceber o que se passava. É que não era uma interacção regular com a DJ. Ele disse à Frankie que ele queria ajustar os meus cue points e daí aquela bizarria. Credo. O meu pensamento foi só… “ele saiu à noite e a sentir que tinha mais…” Nem sei! Nem faz sentido. Não faz mesmo, mas as pessoas que tentam interagir com o DJ acabam por ser bastante chatas. Acaba por ser uma interacção diferente. Quando me pedem para mudar ou tocar uma música específica, consigo ver porque é que acham ser apropriado — está dentro dos limites de aceitabilidade. Com esse tipo… foi como se ele achasse… mesmo que o engenheiro de som viesse dizer-me isso, dir-lhe-ia: “Não te cabe dizer isso. Isto é uma escolha artística pra mim”. Então para esse tipo… “és o gajo na festa que pensa que devia ser o DJ, porque achas que és mais inteligente”. Foi estranhíssimo, mas foi interessante porque mostra o quão ressentidas estão as pessoas que não estão nos holofotes e não têm fãs. Acho que é óbvio que foi um homem que fez isso, acho que uma mulher nunca viria ter comigo e dizer-me, “estás a fazer isto mal”. Claramente que ele não percebeu que eu sou uma DJ bastante experimental. Se já não percebes isso, e se pensas que algo está fora de ritmo… Vai-te embora, só. Nem sei o que te dizer!

Sobre toda essa experiência de DJ: como é que começaste a fazer isso e como é que isso informa o teu trabalho de produtora, ou vice-versa? Comecei a ser DJ porque queria aprender a produzir melhor. Estava mais interessada em tocar música ao vivo — sets electrónicos — e tinha estado a brincar com alguns sintetizadores, algum software, e nunca tinha aprendido previamente. Nunca tinha feito nenhum mergulho técnico dentro de música. Tinha amigos à minha volta que eram DJs, numa cena bastante ampla em Philly de festas em casa, com pessoas que são DJs com o seu computador, e é muito divertido. Pensei que, sem investir no Ableton ou numa caixa de ritmos, eu poderia começar a ser DJ, para aprender um pouco mais sobre estruturas de canções, histórias e tradições de música, como a música pode ser misturada: olhar para ela de uma perspectiva artística. Portanto, comecei a ser DJ para aprender a produzir — e aprendi que podem ser coisas muito separadas. Há muito mais na primeira actividade, apesar de poder algo bastante simples, se quiseres passar boa música sem explorares o lado técnico. Imagino que não seja assim que queiras ser reconhecida. Não é. Mas quero que as pessoas pensem que passo boa música: preferia que as pessoas ficassem impressionadas com os sons e as histórias que trago do que com a minha mesa de mistura. Foi assim que isso começou. Juntaste-te à Discwoman, como é que isso te ajudou a estabelecer e a fomentar o teu trabalho? A Discwoman teve um papel instrumental no que toca a eu levar isto da música a sério. Claro que, se és artista e te preocupas com o que crias, estás a levar isto a sério de forma a que já não seja somente um hobby — já estava a esse ponto, mas enquanto profissional, a fazer concertos a sério, não estava comprometida exclusivamente com ser uma DJ/produtora, fazer isso como actividade principal. Até que a Discwoman me contactou e percebi que isso poderia resultar comigo. O apoio delas, enquanto plataforma, significou imenso para mim. Com qualquer trabalho do tipo freelance, de concerto para concerto, é muito fácil ficares desencorajada, mesmo que se estiveres a receber validação: “és boa nisto!” OK, mas consigo pôr comida na mesa com isto? Posso ambicionar projectos superiores? Sou jornalista musical, sei o que dizes. [risos] Não fui para a faculdade, não tive mentores, precisava de alguma instituição que me dissesse que valia a pena investir em mim. A Discwoman ligou-te em que ano? Penso que finais de 2015. Até então, o que fazias para além da música, enquanto ocupação principal? Fazia trabalhos aleatórios: cuidava de crianças, trabalhei em restauração como empregada, os meus amigos indicavam-me trabalhos em catering de festivais. Alguns festivais a que fui tocar já estive lá em trabalho anteriormente a vender pizza [risos]. Eu era um bocado rufia, só queria manter o meu custo de vida baixo sem me preocupar a longo prazo. Tudo isto da música se firmou numa boa altura, quando não sabia o que iria fazer, sem uma licenciatura — o que não queria, nem quero… Eras bastante activa na cena das zines, como a Bros Fall Back. Sim! Não era muito activa na cena antes dessa publicação. Foi principalmente porque estava a começar a fazer concertos, e quis explorar algumas ideias. Lançaste o Mixed Berries antes do Grace; como foi gravar esse primeiro EP e lançá-lo? Não teve tanta cobertura como o Grace. Eu sei e estou muito contente por me teres perguntado [risos]. Produzi-o, acabei-o e fiz os visuais depois de tudo estar terminado com o Grace. O meu plano era lançar o Grace, que já estava pronto oito, nove meses antes de quando saiu. Tive de esperar pela capa, por colaborações, mexi com a mistura e a masterização; ainda foram alguns meses. Depois, os ficheiros estavam à espera de que o vinil fosse produzido. Foi depois disso tudo acontecer que eu gravei o Mixed Berries. Planeei lançá-lo dois ou três meses depois. Originalmente, seria um lançamento duplo, como o Future fez com o Future e o Hdnrxx. O DJ Taye fez isso com o Still Trippin’ e um álbum [(re)boot] mais rap, mas ainda footwork, só pelo Bandcamp. A Hyperdub é muito flexível com essas coisas: o nosso contrato é só por aquele disco, e não impõem nenhuma limitação quanto a lançar algo antes ou depois. Pensei que o meu primeiro lançamento seria uma pedra no charco, com a Hyperdub; à medida que se foi atrasando — quando alguma coisa se atrasa, de repente tudo se atrasa — para o Verão, eu queria agendar alguns concertos.  A imprensa diz que já sou DJ há muito tempo e produzo esporadicamente um single ou algo, mas as pessoas não me conhecem realmente como produtora. Estava pronta para que o mundo conhecesse mais de mim nesse sentido. Decidi que não ia gastar dinheiro com os visuais, não paguei pela mistura nem pela masterização, decidi que seria algo muito DIY. E é fixe ter um projecto independente como primeiro lançamento. Para alguém que sabe como a indústria funciona, continuo a ver a Hyperdub como uma editora underground. Ainda é, de alguma forma, culturalmente inacessível: não é toda a gente que consegue receber uma oportunidade de ouvirem o disco sequer. Ao editar o Mixed Berries, pensei que poderia significar algo para quem lança independentemente. Acho que aquilo que os artistas lançam pela editora é fixe, mas tudo o que é mais estranho e lo-fi… Dá-te alguma cred. É exactamente isso que eu queria: lo-fi, street cred. [Risos] Percebo essa lógica! Daí juntas-te à família lendária que é a Hyperdub, com pessoal como o eterno [DJ] Rashad, a Jessy Lanza… Como é que te sentiste quando alcançaste essa posição? Fiquei muito feliz. Sou uma fã enorme de footwork. Não sei, eu nunca estive assim tão preocupada com editoras, e nunca fiz uma lista das minhas editoras preferidas na cena electrónica e bass music. Mas sinto que a Hyperdub é a minha primeira escolha e é a melhor [risos] na cena, que lançou alguns dos trabalhos mais icónicos. Pensei que foi muito fixe. Sendo música muito experimental e inesperada, sinto que há muitas pessoas neste mundo que estão tão expostas e informadas e cientes desta tradição musical, mas é difícil prever o que poderá ser popular e gerar dinheiro, porque é experimental, não é consumível por massas.  Sinto que há líderes, incluindo proprietários de editoras e A&Rs, e instituições diferentes: as pessoas que agenciam para festivais, mas que não estão prontas para investir em ti até que tenhas provado que o que fazes é legítimo. Pensei que a minha música, especialmente a solo, sem ser em 700 Bliss, poderia ser um pouco difícil demais para justificar esse primeiro investimento. O que a Discwoman fez para mim como DJ, sinto que a Hyperdub está a fazer por mim como produtora. Estou a ter este selo de aprovação institucional. Acho que a minha música é experimental, mas já não estou tanto nas franjas que se questione o quão experimental, ou “so weird it’s bad” é. Alguns seguidores da Hyperdub dizem que está demasiado velha e estranha, “o que é esta merda?” [Risos]. Eu fico um bocado “OK, pessoal, vocês podem simplesmente ouvir Burial e não falar com ninguém.” Percebo que não assinaste exactamente pela Universal, mas… uma vez falaste à The Quietus da capacidade de ignorar muita coisa. Ainda consegues usar dessa competência? Ainda consegues isolar-te? Definitivamente [risos]. Estou com eventos constantes há cinco anos de digressão; as pessoas nem sabem onde estou a dado momento. Nem é só específico de alguns meses. As pessoas perguntam-me: “Onde estás? Estás em casa? Estás aqui?” Acho que ainda consigo reter a minha anonimidade. Quando disse isso sobre ignorar pessoas, pensei particularmente numa situação de vida real. Sou muito boa em lidar com alguém que te tenta chamar a atenção de forma muito negativa, e nem queres que a tua cara vacile. Sou muito boa em não deixar que a minha cara vacile, e mostrar que eu estou mesmo sozinha [risos]. “Onde está toda a gente?” Ainda não dei uma tampa à Hyperdub. Ainda consigo viver a minha vida relaxada e isolada [risos]. Algo que se tornou um chamariz para o Grace foi o facto de ter nascido de uma tragédia familiar. Não tens de falar disso, mas gostava de saber como a música se mostrou uma forma de superar essa tristeza, essa anomia. Acho que, quando te dedicas a uma nova linguagem — alguma forma artística ou alguma prática consistente ou uma língua literal —, chegas a um ponto que já não é tão difícil falar e ter o vocabulário para descrever o que se passa. Chega um ponto que encontraste a forma de comunicar melhor certas coisas. Foi aí que percebi o que a música, nessa altura da minha vida, era. Não foi sintomático de eu não conseguir sair para fora da minha cabeça, ou da minha negatividade, ou experimentar música como forma terapêutica. Várias coisas aconteceram num pequeno período de tempo. Aquilo que eu queria fazer quando chegasse a casa do funeral era trabalhar em música. Não era como se estivesse a chorar durante o luto e estivesse a chorar ou a pensar em fazer disso uma canção. Eu só queria fazer música. Acho que é um pouco mais difícil de expressar isso, pelo que estou a tentar usar a linguagem visual como suplemento; como sou produtora e não faço nenhuns vocais nem spoken word, é complicado mostrar o meu estado de espírito quando vim para a música. Mas é isso. Essas imagens que vêm com o EP; desenhaste-as como uma janela para onde estavas espiritualmente nesse momento? Definitivamente. As personagens são todas reflexões de mim e das energias à minha volta, e eu vejo isso e oiço isso na música que eu faço (e na que os outros fazem, também). Eu sinto que o folclore, a mitologia religiosa era algo muito específico que eu imaginava e queria partilhar, e que não transpareceria sem ser partilhado visualmente. É difícil balizar o que a minha música é. Só quero usar tantas linguagens quanto possível para permitir a ligação às pessoas. Toda essa imagética religiosa e o teu nome — é uma combinação marcante. Sentes que o teu nome deixará alguma vez de fazer sentido enquanto artista? É possível. Não sinto isso agora: sinto que já o uso há tanto tempo que já é algo neutro para mim. Se tiveres um amigo que se chama Banana, se calhar quando o conheceres vais ficar do tipo, “o teu nome é mesmo Banana? Sempre que alguém disser o teu nome, vou pensar em mercearias”. Depois de algum tempo, o nome dela é simplesmente Banana! Usamos um nome por razões funcionais, os fonemas e as letras têm esta capacidade simbólica para além da constituição da palavra. Para mim, é mesmo algo neutro; antigamente, era “ha-ha, o meu nome é DJ Haram, é inteligente e vai perturbar algumas pessoas. Sou rebelde!” Mas agora é só o meu nome, acho que não vou mudar para o meu nome real. Mas já perturbou alguém? Na verdade, não, para te ser honesta. Nunca recebi nenhuma ameaça de morte, como vários artistas muçulmanos recebem. Algumas pessoas acham que é algo estranho, e há algumas a que já me introduzi como Haram e elas dizem: “Isso é algo mau!” E eu respondo com “Não, não é!” Acho que não é assim tão ofensivo, o que me deixa feliz. O novo EP intitula-se Grace, é embalado com uma imagética muito etérea, mas faz-se de música bastante combativa. É reminiscente de muita música electrónica que se faz por gente queer em Portugal: por exemplo, uma das artistas com quem vais tocar é a Odete, particularmente pelos sons guturais, de facas. Há alguma correlação entre esse som beligerante e a tua forma de seres vocal sobre problemáticas sociais — mesmo não te identificando com um trabalho de activista? É uma questão interessante. Eu acho que os sons e as políticas na música experimental, a forma de eu me relacionar com sons combativos e militantes, como bombas e tiros e sirenes, tem mudado um pouco. Especialmente com o Grace, cujo título já aponta para isso. Poderia ter sido Grief [Luto], que era o nome que eu usava para mim há uns anos, por ser duro e real. As minhas acções não são de activista, se algo, de anarquista; a tendência dos pensadores e movimentos anarquistas é ir ao confronto — precisamos mais disso. Outra camada disso é o confronto com o que se passa no mundo; vamos educar-nos sobre aquilo o que o capitalismo e os nossos governos tão arduamente nos proíbem de interiorizar, como homicídio, genocídio ou guerra, coisas que muito facilmente podem ser comunicadas por bombas, tiros, gritos. Há alguns anos, quando toda a gente queria soar ao Total Freedom, toda a gente usava esses samples: é o caso da “Body Count”, a única faixa que tem esses sons de tiros. O sample tem qualidade, tem muito grave, é como um bombo por si só. Ainda gosto disso, mas cheguei a um ponto em que não sei.  Um grande problema dos anarquistas e esquerdistas é que, por vezes, não vemos quando a nossa própria ideologia está a ser usada para controlar-nos e prevenir-nos de pensar sobre coisas novas, com um ponto de vista autónomo. Isto do trauma porn e da exposição constante — estas coisas que podem ser representadas com tiros e sirenes, na verdade estamos sempre a ser confrontados com esta violência. Já não preciso disso na música. Não sou radical ao ponto de “estás na pista de dança, pensa sobre o quão má a vida pode ser fora disto; no quanto a tua experiência humana dista de quem está a sofrer”. Estou num momento mais positivo agora. Decidi que não queria intitular o meu disco pelo luto, quero que se intitule Grace: acho que devemos aspirar à graça, e não precisamos de ser definidos pela nosso luto. Sim, devemos falar dele, e isso é parte substancial do EP, mas não estou a tentar propagar esse sentimento. Se eu quiser expor as pessoas a uma imagem ou a uma palavra, quero que seja algo sobre acreditar em algo positivo ou melhor, além das circunstâncias merdosas. Não sei se isto respondeu directamente à pergunta [risos]. Nunca tem de ser uma resposta directa. Antes de chegares à Hyperdub, falavas de querer ser disruptiva na face da indústria musical abusiva, em 2015. Ter mais exposição e espaço de manobra para ser vocal — como vês essas problemáticas agora? Achas que chegaste a um ponto em que podes interceder pelas camadas marginalizadas? Acho que as minhas opiniões já têm mais nuance desde então. Eu pensava que precisava de ser disruptiva, e trazer luz à escuridão, mas a realidade para muitas pessoas é que não há paz alguma no abuso — é caótico e desagradável. Se és artista e lidas com instituições ou indivíduos que te abusam, manipulam, roubam… O que fazer por quem não tem esta plataforma? Nem toda a gente vê a sua história ser escolhida. Não sei, acho que é bom as coisas já terem mudado desde então. Eu acho que esta suposta call-out culture — que não existe ou existe de forma tóxica — provoca uma conversa que é boa, que deixa as pessoas entenderem a posição de quem as rodeia. Acho que os call-outs e os boicotes (financeiros, por exemplo) são tácticas que podem ser usadas, e que por vezes resultam, e às vezes não resultam.  Às vezes, coisas que são horríveis continuam a gerar dinheiro, mas outras estratégias que podem ser usadas para sair de uma mentalidade negativa — de que ninguém se preocupa consigo ou com a sua cultura — têm a ver com o empoderamento exterior. Ver que as pessoas se preocupam com algo pelo qual passaram. Acho que é importante para mim entender de que forma posso partilhar os recursos materiais de que disponho, para mostrar às pessoas que não se têm de sujeitar ao abuso para sobreviver. Em última análise, precisas de ti mesmo para te impulsionares e continuares. Claro que as pessoas podem passar estes recursos para as outras, mas o empoderamento não é uma troca unidireccional. Espero que eu possa partilhar conhecimento e a minha perspectiva daquilo que faço. Percebes o que digo? Sim! Tens adquirido experiência musical há alguns anos, mas para efeitos técnicos, podes ser vista como novata. Não sentes que vários artistas provavelmente se sentem inibidos, sob o poder, de falar sobre questões mais sensíveis de política ou arte? Acho que isso é algo que eu não entendia antigamente: tens de ter algum nível de recursos antes de poderes fazer alguma coisa. Estar presente numa comunidade pode acontecer independentemente do que tens, mas no que toca a redistribuição de alimentos com sentido… tem de haver algum balanço para que eu me sinta confortável a ajudar. Há excepções. Teria de ter muito capital para investir em algo como isso. Não faz sentido nenhum até ter o capital, em vez de o arrendar por uns anos, já não ter dinheiro e tornar-se um recurso bastante instável a que só alguns tiveram acesso.  Estava a falar com um designer e ela é viciada em trabalhar, quer sempre estar no estúdio, a trabalhar em coisas, sente-se bastante inspirada, tem uma ética de trabalho doida. Ela diz-me que se sente mal por não estar mais presente, não ir a eventos, e eu fiquei um bocado: “honestamente, não tens de sentir mal sobre isso, porque ao final do dia, aquilo que ofereces a uma geração mais jovem é dar-lhes um exemplo do que o sucesso pode parecer”. Estar numa comunidade importa, estar lá para amigos é importante, mas também tens de perceber o balanço que é necessário para se ser artista: talvez não tenhas de estar lá para alguém algum dia, porque estás no estúdio a trabalhar; ser uma criativa cultural — já estás a dar muito do teu conteúdo. A tua música tem sido definida de várias formas, particularmente pela estética sci-fi horror; falas frequentemente da tua família anti-assimilação, e há muita coisa que parece pulular no teu imaginário. Sentes-te bem com esta perspectiva? Eis a parte difícil da tua questão: eu quero zangar-me com a imprensa e dizer que os media querem sempre categorizar tudo. Mas, honestamente, enquanto ouvinte, quando não se têm todos esses descritores, o que é que lhes sobra? Acredito que várias formas de arte, intencionalmente ou não, são colaborativas com os ouvintes, têm mais estética, energicamente. A maior parte da arte é colaborativa com os ouvintes. Ao final do dia, quando escritores e consumidores e entusiastas falam da minha música, é — não interessa se eu gosto ou não — parte daquilo a que estou associada. Tento inserir o maior número de elementos com que me identifico; o Mixed Berries era só um sortido aleatório. O Grace é da ordem do horror, do sci-fi, dos synths assustadores. Aquilo que lhe chamarem está-me associado e faz parte do conceito. Os artistas fogem sempre a este tipo de questões, é impressionante. [risos] Eis o que é: eu sou sound designer, produtora e DJ. Faço bass music, club music… Só por curiosidade pessoal: publicaste no Facebook a crítica da Pitchfork, e disseste “bem, deram-me um 7.5″. O que achaste mesmo disso? Nunca fui uma pessoa competitiva. Não percebi realmente, até ser mais velha, que era um pouco estranho; quando era mais nova, dizia só que não gostava de desportos, whatever. Lançar música deixou-me competitiva de uma forma que nunca consegui experienciar anteriormente. Fui ver quanto a Pitchfork me tinha dado, e perceber quanto a Arca tinha conseguido, e a Björk, e o James Blake. E fiquei um pouco… “OK, saí-me bem, não excelentemente”. É interessante e divertido. O que teve piada foi como eles não gostaram especificamente da música com a Moor Mother. Devem estar num estado de espírito engraçado se não gostam dessa.  Não estou mesmo zangada quanto a isso, mesmo se receber uma crítica muito má, mas quando eu recebo uma crítica mediana, fico um pouco… “Okay?” Eu espero que as pessoas gostem ou odeiem. Mas se estivessem a dar nota 10 ao Grace, o que é que eu faria a seguir? Fico feliz com críticas e é bom sentir essa validação. Mas o que é que um jornalista sabe do teu impacto no mundo, para já? Sabes? Sem ofensa.

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