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Fotografia: Billy Eyers
Publicado a: 05/02/2021

Um desafio a todas as convenções.

Divide and Dissolve: “Escrevemos a partir de um lugar de esperança enquanto criamos doom metal”

Fotografia: Billy Eyers
Publicado a: 05/02/2021

A dupla desafia estatísticas sociais e reveste o seu doom metal de arquétipos que lhe são, tipicamente, alheios: descolonização, desenvoltura melódica e corajosas variações de andamento. Ao segundo disco de longa-duração, Takiaya Reed e Sylvie Nehill levam Divide and Dissolve a superar as expectativas altas que a sua música prometia há anos, e reclamam território perdido em nome da diversidade.

Em jeito de introdução, vamos só falar do elefante na sala: a representação de minorias no dito meio da música pesada pode ser parca, mas não é de todo uma novidade, nem, em boa verdade, uma narrativa que não é apreciada. Como em qualquer outro estilo de música, o metal e o punk mais “javardão”, usando a nomenclatura dos praticantes, não está livre de idiotas. Contudo, nem mesmo esses conseguiram parar os Bad Brains (eles mesmos bastante idiotas, diga-se), nem mais tarde a ascensão do som tropicalista dos Sepultura.

Mesmo hoje, seria gravíssimo não falar nos géneros de riffs arrastados sem mencionar os brutamontes Primitive Man, em que as locks e os tons de pele escuros se impõem a par com as guitarras distorcidas e o growling arrasador do vocalista ELM (que ainda assina umas incursões mais rápidas e brutas em Vermin Womb); da mesma maneira, falar dos novos motivos punk hardcore e ignorar os Ho99o9 não seria de bom tom; e igualmente ignóbil seria ignorar os contributos editoriais do selo indiano Transcending Obscurity, que tem no seu catálogo algum do black e death metal mais interessante que se pode ouvir, e no qual se encontram artistas portugueses. De sublinhar ainda que mesmo África reclamou um espaço importante na música extrema, denotada em 2020 pelos quenianos Duma, que lançaram o seu grindcore-trap via Nyege Nyege e caíram nas graças da crítica de todos os espectros. E mais exemplos, da Indonésia ao Chile, com passagens por Singapura e todo um conjunto de geografias não-ocidentais, existem.



Posto isto, o valor das Divide and Dissolve, dupla de doom metal composta pela guitarrista e saxofonista Takiaya Reed e pela baterista Sylvie Nehill, que, respectiva e propositadamente, se apresentam como sendo de ascendência africana-tsalagi (da etnia cherokee) e mäori, não reside no que são, mas sim no que criam. Não são as primeiras mulheres a rasgar riffaria e a agredir peles neste contexto (pense-se em Electric Wizard, Kylesa, Dark Castle, Thou, Wolvserpent), nem, como vimos, as primeiras representantes de uma minoria a usar paredes de som para prostrar espinhas. Serão, por ventura, originais no seu intento de descolonizar de forma clara uma expressão tendencialmente branca, esmagadoramente masculina, e referencialmente europeizada e ocidentalizada. Em entrevista ao Rimas e Batidas, Reed não disfarça: “nós escrevemos música a partir de um lugar de esperança enquanto criamos doom.”

Não será de estranhar que esse lugar impregne de tons claros o negrume do doom metal das Divide and Dissolve. Gas Lit começa com uma sobreposição de fraseados de saxofone simples, de tons tristes, mas cândidos, que é rasgado com a gravidade de um riff de progressões certas, em parelha com uma bateria mais hesitante, ainda que em perfeita síncope. “Oblique” existe sobre o contexto lúgubre do saxofone, e com o mesmo a determinar a interpretação possível da progressão furiosa dos acordes. “Prove It”, dúvidas houvesse, dissipa hesitações com uma abordagem mais tradicional ao género nas suas modalidades mais lamacentas, e sempre com a abordagem fresca de quem não se importa de contornar cânones, ao mesmo tempo que os cumpre: entre a bateria com um andamento Sleep à la Chris Haikus, de bombo cavernoso e insistente, as guitarras exalam a soberba volumosa que o género exige, não só para demolir preconceitos como para curvar costas. As Divide and Dissolve propõem-se a reclamar território social, e reclamam-no espacialmente na forma como o tom e a distorção da guitarra preenchem possibilidades de silêncio.

Será, também, injusto enclausurar a dupla no doom tradicional. “Far From Ideal” demonstra que também Reed e Nehill estão longe do óbvio, e não hesitam em variar o andamento quando a violência da guitarra o pede. O que começa à velocidade desenfreada do hardcore, com toda a fúria rítmica que o punk de tarola em riste exige, vai desacelerando com a guitarra, até que o varrimento sonoro se transforma num arrastar corporal mais e mais lento a cada riff.



Gas Lit representa uma notória evolução no som de estúdio da dupla. As duas facetas instrumentais de Takiaya Reed pareciam existir de forma separada, com os momentos de guitarra em riste talvez menos inspirados pelo saxofone, que surgiam num plano sonoro díspar do resto da música. Essa mácula foi limpa com a introdução de um produtor no disco. “Felizmente, para este disco tivemos a oportunidade de trabalhar com um produtor, algo que nunca tinha acontecido antes, o Ruban [Nielson] dos Unknown Mortal Orchestra. Foi muito bom ter mais um par de ouvidos, e os ouvidos dele são muito bons. E ele definitivamente trouxe algum equilíbrio para o álbum, visto que foi ele que fez a mistura, também.

Contribui o facto de terem partido em digressão com os Unknown Mortal Orchestra e de Nielson ter podido perceber o que são as Divide and Dissolve ao vivo. Explicou-nos Takiaya Reed que “não [fazem] nada em estúdio que não [façam] em concerto”. Uma combinação de guitarra, saxofone, amplificador e pedais de loop que acontece ao vivo e é replicada de forma justa nas gravações. “O Ruban sabia ao que soávamos em concerto e conseguiu captar essa energia.”. Uma energia peculiar, diga-se.

“Nunca ouvi metal antes, e a minha educação musical é clássica em saxofone,” conta-nos, acrescentando: “a Sylvie aprendeu a tocar bateria numa igreja. O professor dela colocou a condição de ela tocar na banda da igreja em troco de aulas”. De resto, este alheamento é algo que se ouve em todo o disco e na forma como momentos de sopros quase orquestrais e cerimoniais proporcionam a antítese do que a guitarra e bateria juntas fazem — a calma antes da tempestade; e depois também, como se pode ouvir em “Denial”; e durante, como se sente noutros tantos momentos de Gas Lit. Em Divide and Dissolve, não são termos diametralmente opostos. “A música que sai das minhas guitarras é muito maléfica [risos]. Eu adoro fazer esses sons pesados. Tanto eu como a Sylvie somos meio esquisitas, e isso traduz-se no nosso som. Não somos tradicionais na nossa forma de fazer música.”



Reed não mentiu quando disse que a tradição pouco lhes diz: “Nós estamos sob a égide do amor, da compaixão, da bondade e da abertura”, afirma quando descreve o estado de espírito da sua música. E fá-lo inequivocamente, apesar da raiva e tristeza que pode ser usada para fazê-lo, e que transparece no título do disco e nos títulos que dão a cada peça — uma tendência que já vem desde o seu primeiro registo, datado de 2017. “Nós reconhecemos o estado do mundo, mas fazemo-lo com a ideia de que se continuarmos a falar destes assuntos e as pessoas continuarem a unir esforços as coisas vão mudar. E isso é muito positivo e esperançoso para mim.”

Um estado que, feliz e infelizmente, já não é alheio a quem nos lê: “Sentimo-nos impelidas a discutir certas coisas, de certas formas. E estamos sempre a evoluir, claro. Mas acho que, colectivamente, toda a música que fazemos e os títulos que lhe atribuímos falam dos mesmos desejos e vontades: sobre a necessidade de as pessoas serem tratadas com respeito e dignidade, e pararem de ser desumanizadas; sobre a soberania indígena e de libertação negra, sobre pessoas de cor se sentirem bem na sua pele.”

Gas Lit, uma alusão clara ao conceito de gaslighting, uma forma de abuso que leva uma pessoa ou um grupo a duvidar de si, da sua percepção da realidade e das suas memórias, discorre sobre várias formas de perpetuar opressão: “Denial”, “It’s Really Complicated”, “Mental Gymnastics” e “Prove It” são conceitos que dispensam explicação. “Trata-se de reconhecer o que não é reconhecido. São experiências que pessoas no mundo todo têm, verdadeiramente traumatizantes, e que ainda não têm o devido espaço de discussão. Desde o genocídio de um povo, à separação das suas origens, à desapropriação e a falta de reconhecimento dessas experiências. Queremos que as pessoas tenham espaço para sentir o que de facto sentem.”

É por isso que a ascendência de Reed e Nehill pesam no conceito da banda, como explica a guitarrista: “Nós sempre soubemos histórias dos nossos antepassados e das suas experiências, e isso sempre nos permitiu perceber que se trata de algo sistémico. E também foram essas relações e estruturas sociais que nos permitiram continuar a falar destes assuntos, que custam vidas diariamente.”

A própria existência das Divide and Dissolve, estatisticamente, é um repto pela descolonização. “Eu sinto-me óptima [por tocar um tipo de música de um meio tradicionalmente branco e masculino]. A minha existência é resistência. Ser desbocada, pesada, levou-me a aprender a reclamar o meu espaço. Fiquei muito entusiasmada por poder dar uma nova perspectiva do que pode ser o metal”, diz-nos a americana, negra e de ascendência cherokee. “Claro que há desafios, mas eu estou totalmente disposta a enfrentá-los e sinto-me entusiasmada com esta abertura. Ponham-me num palco, dêem-me a minha guitarra. Vamos lá!”

Nada é um acaso, as pequenas coisas podem fazer a diferença, e as Divide and Dissolve não se coíbem de dar o seu contributo. “Uma amiga disse-me que estava farta de ouvir a fúria de homens brancos e eu pensei: se calhar a nossa banda pode ser um alívio desta tendência”. Insuficiente, ou não, é o primeiro passo, como a própria admite: “nós queremos começar conversas, mas também sabemos que fazer modificações ao sistema em que vivemos não vai resultar, e nós queremos algo novo. O projecto colonialista tem de acabar, assim como a supremacia branca. Combater um problema destes requer muita energia, há muita coisa que precisa de acontecer e já.”

Gas Lit saiu no final de Janeiro pela Invada Records e encontra-se disponível nos formatos físicos tradicionais e pede o streaming imediato. Servirá para abanar a cabeça enquanto se aguarda pela primeira oportunidade para abanar o corpo todo em concerto.


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