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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 28/07/2023

As gentes, as paisagens e a malha urbana de Margem Sul retratadas em livro.

Diogo Simões sobre A Zona: “Há uma relação física e espiritual entre a vida e a fotografia”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 28/07/2023

Mais do que dez anos de fotografia, são dez anos de vida a desenrolar-se. Uma vida emocionalmente inscrita na Margem Sul, território diverso, rico e complexo, onde Diogo Simões cresceu e que durante mais uma década fotografou sem um plano premeditado. A Zona sintetiza parte dessa vivência que se fez fotografia, e agora também livro, compondo um imaginário avesso à forma como estes territórios tantas vezes são representados pelas narrativas mediáticas e políticas dominantes e pela sua imagética estereotipada, redutora e tantas vezes oportunista. Não se trata aqui de um qualquer “mergulho no submundo”, como já se escreveu, mas antes de um campo de sentidos e contradições que não se reduz a nenhuma mundividência subordinada. Uma exploração implicada, afetiva e íntima do mundo da vida, na sua plenitude e potência.

A mais funda interpelação destas fotografias nasce justamente da intimidade com que elas se enredam nas cadências do quotidiano, e no que este tem de natural e indizível, contingente e pulsional. Uma aposta, como aqui nos revela o seu autor, em tentar que a fotografia acompanhe e capte um certo ritmo de vida, abrindo caminhos para novas questões, paragens, momentos e relações. Um périplo não planeado pelo corpo das ruas e das arribas, do natural e do humano, da luz e da sombra, do declínio e da dissidência, do espaço e do tempo, da violência estrutural e da esperança latente, das inscrições e do porvir.

Nas suas múltiplas leituras e possibilidades, A Zona releva um olhar por dentro para uma realidade que se recusa a ficar refém da sua representação e onde a intimidade e a subjetividade de quem capta o quotidiano convive com a fixação de imagens que vão sugerindo não um olhar sobre as coisas, mas sobre a relação que temos com elas. Fotografia em movimento com a vida, diz-nos, mas que não deixam de suspender o tempo, ainda que brevemente, para que o ritmo intuído não oblitere a urgência de uma conversa sobre o tanto que desconhecemos destes lugares.



O John Berger dizia que nós nunca nos limitamos a olhar para uma coisa: estamos sempre a olhar para a relação entre as coisas e nós mesmos. A Zona é o teu primeiro livro e reúne um conjunto de fotografias tiradas ao longo de dez anos em diversas zonas da Margem Sul. Como começou este ambicioso projeto de retratar estes territórios? Qual é a tua relação com esta zona e de que forma essa relação moldou este retrato? 

Cresci na Margem Sul e, fora os 3 anos que vivi em Tomar, sempre morei por cá. Após terminar a licenciatura regressei a casa dos meus pais e durante os primeiros anos fotografei maioritariamente por Miratejo. Na altura tinha finalizado o curso e tinha vontade de continuar a fotografar. Inicialmente acabou por ser algo fechado ao meu círculo de amigos e ao meu dia-a-dia. Não foi propriamente planeado nem é algo que tenha nascido de uma grande ideia, até porque quando comecei não sabia ao certo o que estava a fazer nem o que viria a fazer com as imagens que estavam a surgir. Tive uma primeira exposição com umas quatro ou cinco imagens, mas o interesse e a vontade de vir a fazer um livro de fotografia foi algo que só apareceu anos mais tarde. Sinto que foi importante começar de dentro, numa região que me era familiar e com o meu pessoal próximo, embora hoje também procure momentos bem menos controlados. A fotografia também me ajudou a desbloquear algumas questões até a nível social, foi algo importante. Depois, com o passar dos anos, também fruto de relações e ritmos de vida, o território acabou por se alastrar e continuei a fotografar, embora não tenha fotografado só pela Margem Sul ao longo destes 12 anos. 

As fotografias do livro assumem diversos motivos e diferentes olhares. Convidas-nos a olhar para as paisagens da zona, para a sua malha urbana, para as inscrições das paredes, para o olhar das suas gentes, para o interior das suas casas, para os seus motivos de mobilização social e política, mas também para os seus animais, para o seu mar, para as suas arribas, para os seus canaviais. Porquê esta necessidade de olhar para tantos sítios ao mesmo tempo? 

Acredito que também acabou por estar relacionado com o tempo que demorou a ser feito. Desde o início que senti necessidade de experimentar, não queria que aquilo que estava a tentar fazer se tornasse algo tipológico ou demasiado estático como a maior parte do que tinha feito enquanto estudava. Tentei que a fotografia me acompanhasse e que capturasse um certo ritmo de vida. Acabou por ser algo natural. Foram surgindo questões, houve paragens, outras relações e consequentemente outros lugares e fui tentando perceber como fotografar nesses vários contextos e momentos. Também acabei por experimentar outras câmeras, películas e formatos diferentes — tudo isto foi alterando e construindo a forma como estava a aprender a fotografar. Hoje sinto que se der abertura e tempo à fotografia, esta, por vezes, coloca-me questões e traz-me coisas que nem sempre me são percetíveis na altura que estou a fotografar; elementos e perceções que só descem com o tempo. Não sei bem explicar, há aí uma certa relação física e espiritual entre a vida e a fotografia que tento preservar e sinto que, para isto se dar, tenho de continuar a exercitar, tem de ser uma prática constante. Normalmente deixo as fotografias respirar por algum tempo, é raro fotografar e ir logo revelar e digitalizar… Há alturas que passam meses até ver as imagens.

O livro oscila entre fotografias a preto e branco e fotografias a cores. Há diferentes tonalidades nas formas de olhar para estes territórios e para o que eles representam? 

Durante alguns anos fotografei muito pouco a preto e branco. Enquanto estudei e nos anos que seguiram fotografei quase exclusivamente a cores e utilizava bastante slide. Curtia as cores que o slide produzia. Depois com as quebras de stock e aumento de preços acabei por transitar para o negativo cor e também para o preto e branco. Houve uma fase que fotografei exclusivamente a preto e branco. O preto e branco hoje em dia é metade do valor da película a cores, também é algo que pesa na decisão, mas normalmente vou alternando. Há situações em que acabo um rolo e sinto que a luz, o lugar, a pessoa ou outra coisa qualquer, pede-me que use uma determinada película. Embora também existam momentos em que não termino o rolo e esta segue… Por vezes não sei sequer que película é que estou a utilizar.

Há muitas fotografias sobre a precariedade habitacional e as suas consequências no conjunto da malha urbana, muito distinta entre si, com grandes blocos habitacionais e casas autoconstruídas em alvenaria, zinco ou madeira. O problema da habitação é um traço central para compreender a história e o quotidiano desta zona?

Sim, acredito que sim. Pelo menos a arquitetura e o urbanismo acabam também por ser sinais sociais visíveis da cidade, certo? Acho que nos vão permitindo perceber como e para quem um determinado espaço foi edificado e como é que está a ser habitado e até politicamente gerido. Embora isso seja uma certa forma de olhar para isto, um olhar mais técnico, acho…  Não é bem essa a forma como me relaciono com estes lugares quando estou a fotografar. As imagens não nascem de um lugar assim tão consciente ou premeditado, até porque quando estou a fotografar o que me leva aos sítios são outras coisas e muitas das vezes a fotografia até acaba por se expressar de formas bastante diferentes no mesmo lugar. Mas falaste especificamente de habitação, certo? Sim, acho que é essencial para compreender um lugar e na verdade isto está tudo meio fodido. O acesso à habitação numa economia neoliberal é maioritariamente definido pelo que te é possível pagar ou em alguns casos construir com as próprias mãos. É igual aqui na Margem Sul como no resto do país. A habitação é um dos elementos centrais na vida e um suposto direito fundamental apenas no papel… É um negócio e não tanto um direito. Basta olhar para o que as cidades se tornaram ou até para algumas situações específicas, como foi recentemente o caso do Segundo Torrão aqui pela Margem Sul. 

Há também várias fotografias que evocam processos de mobilização social e política dos seus moradores. Que porta é aquela povoada de autocolantes antifascistas, antinuclear e antiguerra? Há também duas fotografias de duas manifestações em Lisboa. Uma creio é que uma manifestação antifascista em 2019, no Chiado, e outra junto à Assembleia da República, que não consigo identificar. Sentes que a zona só é ouvida politicamente quando se desloca ao centro?

É o Centro de Cultura Libertária, é um ateneu anarquista em Cacilhas. A primeira vez que lá entrei era puto, tive bastante tempo sem lá voltar, mas acabou por se tornar um sítio próximo com o tempo. A segunda imagem é uns dias antes da carga policial de 2012 nas escadarias da Assembleia. Acredito que existem várias formas de resistir e muitas vezes até sinto que são o oposto de se vir ou estar no centro de Lisboa. Neste caso, o da imagem de 2012, não sei se havia outra forma de o fazer. Era mais uma vez numa situação limite, estávamos todos na merda, e a possibilidade de pressionar e tentar alterar o que quer que fosse estavam ainda mais distantes do que o habitual. Foram os anos da Troika. Se na altura não era possível fazeres-te ouvir das grades de São Bento quanto mais a partir do Mira, Monte ou Arrentela. Foi uma fase complicada, mas ao mesmo tempo sinto que havia alguma vida, a verdade é que após a carga policial nas escadarias da assembleia acabou por se ir progressivamente dissipando. 

Algumas das fotografias mais impressionantes, desde logo a que foi escolhida para a capa, centram toda a atenção e foco no olhar dos protagonistas. O olhar é sempre um ato de partilha entre quem olha e quem é olhado. Que olhares são estes que quiseste registar e que confrontam quem lê o livro? 

Gosto de fotografar pessoas, foi algo que demorei algum tempo a aprender e a sentir-me mais confortável para o fazer. A fotografia também me ajudou a desbloquear algumas questões pessoais, até na forma como me tenho relacionado com as pessoas. Ou melhor: o que mais me interessa são as pessoas e por consequência os retratos acabam por ser aquilo que mais gosto de fazer. Sim, é sempre meio um momento de partilha, acabas sempre por criar uma certa intimidade mesmo que seja um contacto mais momentâneo. O retrato também te traz um certo lugar de projeção, seja na construção da tua mundivisão a partir do próximo, seja até a forma como te projetas no outro.

E porque é que há tão poucos sorrisos entre as diferentes fotografias? Mesmo quando eles existem em potência, como, por exemplo, na fotografia dos jovens a jogar à bola no jardim junto aos prédios, são sempre sorrisos algo distantes, intuídos, e nunca centrais. Porquê? 

Não sei, editei o livro em conjunto com o André Príncipe — um dos dois fundadores da Pierre von Kleist — que acredito que também não tem nada contra sorrisos. Não sei mesmo. Até acho que nunca tinha pensado nisso, mas se revisitar os arquivos há vários sorrisos por lá certamente. Acho que é algo que partiu da edição também, entramos numa determinada frequência quando começamos a trabalhar no livro e a coisa seguiu. Embora não tenha sido algo estático, trabalhámos durante dois meses e a sequenciação teve em vários lugares, deu várias voltas, mas não pensávamos se havia ou não sorrisos em falta — como houve uma série de outras coisas que também não pensámos. Procurámos outros elementos nas imagens, outras especificidades… Às vezes é uma determinada luz; outra, por exemplo, uma pessoa que eu precisei mesmo que estivesse; ou um olhar; uma imagem com uma determinada cor; a posição de um corpo ou por exemplo os tais putos a jogar a bola onde sentiste que existiam esses tais sorrisos intuídos.

Há também aqui, para lá do olhar, uma forte representação dos corpos e, em alguns casos, das violências que eles encarnam. Os corpos que habitam estas zonas também contam várias histórias sobre a violência estrutural que, no Portugal pós-colonial, se manteve inscrita nestes territórios?

Sim… É uma periferia e como qualquer periferia da grande Lisboa tens áreas economicamente desfavorecidas e também com alguma presença de comunidades migrantes. Estas dimensões económicas são algo que também acabam por estar relacionadas com o passado e presente colonial, não?! Até porque o lugar de onde te é permitido começar já tem em si parte dessa violência estrutural. Embora a Margem Sul também seja uma região complexa, é um território marcadamente operário, com mais de 800 mil habitantes e é uma área que cresceu exponencialmente após os anos 70. Isto era maioritariamente composto por quintas e as áreas urbanas que foram construídas com uma certa urgência para acolher retornados, imigrantes e portugueses de várias regiões do país. Pessoal de contextos, ascendências e lugares distintos acabaram a habitar o mesmo território e a dividir os mesmos cafés e transportes. Corroios por exemplo, perto de onde eu cresci, foi uma freguesia onde o PNR teve alguma expressão tanto eleitoral como ao nível das ruas. É um território ainda algo dividido, o que faz com que essa violência não seja apenas sistémica e isso acabe por permitir perpetuar uma série de problemas que também são estruturais. 

Há muitas fotografias sobre a decadência industrial, habitacional e territorial. Mas também sobre momentos descontração nos topos dos prédios, de hortas urbanas que projetam outros futuros, de mobilizações políticas que resistem às dominações. Estas fotografias também são o retrato sobre uma zona que existe e resiste contra tantas probabilidades? 

Alguns são lugares politicamente combativos, outros são só a vida a decorrer. Parte do livro foi construído à volta de momentos de partilha e amizades. Não é a amizade uma das melhores formas de resistirmos a isto tudo? Foi algo que começou a ser feito entre amigos, acredito cada vez mais que isso é uma das maiores formas de resistência. Algumas das fotografias sinto que trazem uma energia de uma esperança latente ou algo do tipo. Não sei explicar, não é algo que tenha pensado em fotografar, até porque não o saberia fazer. Embora também não sei sequer se isso passa, pode ser só a minha relação pessoal com estas pessoas e com estas imagens que me fazem sentir isso.

Estas fotografias lembram o passado e fixam imagens do presente que são projetadas para o futuro. Há uma história que quiseste deixar registada sobre o que foram, o que são e o que podem ser estes territórios? Que espaço ocupa a tua câmara entre a representação dos pássaros que sobrevoam a zona e as caveiras e as ossadas que se perpetuam no espaço? 

É essencialmente a história — a minha ficção — que eu quis construir a partir destas imagens, da minha relação com este lugar e com estas pessoas. No fundo é parte da minha relação e visão do mundo durante estes anos. Não sei, a fotografia tende sempre a estar mais relacionada com o que já passou, não? É algo meio inerente ao meio… Não sei se um livro de fotografia tem bem uma capacidade premonitória. Embora também devam existir uns quantos livros de fotografia que o tiveram…


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