Chegar ao Jazz em Agosto a três dias do final de uma viagem que começou há oito é, de certa forma, como apanhar um comboio em movimento. Mais até: é como apanhar um comboio que segue lançado em alta velocidade e com lotação completa — segundo a organização, esta edição de 2024 do festival que decorre em diferentes espaços da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, bateu todos os recordes de assistência das edições anteriores. E claro que entrar a bordo quando a composição já segue em marcha acelerada implica riscos. O mais grave será talvez o risco de não compreender a viagem na sua totalidade por se terem falhado etapas importantes, embora, neste caso concreto, esse risco possa ter sido algo mitigado com a leitura das excelentes crónicas que diariamente o “passageiro” Ricardo Vicente Paredes tem por aqui diligentemente assinado. Portanto, o facto de não se ter feito a viagem desde o início não impede que não se possa ter lido atentamente o diário de bordo…
Antes de olharmos para o programa da última sexta-feira, dia 9 de Agosto, uma palavra sobre o redondo aniversário do Jazz em Agosto: quatro décadas de risco e invenção, de olhar para o mundo do jazz através de programas desafiantes, são motivo claro de celebração, mas o “apagar de velas” faz-se de cada vez que os artistas sobem ao palco e procuram, em cada momento, dialogar uns com os outros e com as audiências, empurrando-nos a todos e todas para os domínios da incerteza. Não saber o que vai acontecer a seguir, quando falamos de música, é algo de entusiasmante, porque em cada concerto, em cada novo momento de cada apresentação, há sempre uma promessa de descoberta. E é isso que nos vai fazendo regressar ao mais incrível espaço de Lisboa, ano após ano. E no caso específico do Jazz em Agosto, quem assina estas linhas construiu com este evento uma longa relação — com períodos de aproximação e de afastamento, com certeza — que remonta a 1988. O futuro, deixe-se claro, já agora, continua a ser o melhor dos lugares. Parabéns, portanto. Já não falta tudo para a 50ª edição…
Na sexta-feira que marcava o arranque do sprint final desta 40ª edição do Jazz em Agosto, o programa propunha apresentação do dilatado ensemble de dieb13, que veio interpretar o seu “Beatnik Manifesto”, e ainda de The Locals, quinteto que se dedica a tocar composições de Anthony Braxton.
O colectivo liderado pelo DJ e videasta dieb13, nome artístico de Dieter Kovačič, agrega uma série de duplas: duas baterias, duas guitarras eléctricas, duas mesas repletas de electrónica, dois contrabaixos, dois clarinetes baixo, duas vozes e ainda um saxofone alto. A ideia da duplicação de instrumentos, ao nível conceptual, e seguindo os preceitos da geração beat que prezava a expressão singular de cada indivíduo, passa por explorar vozes contrastantes, por afirmar as diferenças expressivas em cada um e não, como se poderia ter pensado em diferentes momentos do concerto, por uma “simples” questão de massa sonora, como é apanágio das orquestras. Estes 14 músicos em palco não são uma mini-orquestra ou sequer uma big band, antes um conjunto de indivíduos, cada um comprometido apenas consigo mesmo. No papel percebe-se o desenho da coisa, em palco nem por isso.
Um exemplo: os dois guitarristas. Um deles tocava o seu instrumento de forma convencional, o outro tinha a guitarra disposta na horizontal, sobre os joelhos, dando a ideia de que estava a tentar esventra-la mais do que a toca-la (e o som correspondia a isso mesmo, uma sucessão de acordes dissonantes, noisy, que contrastava com as linhas mais directas do seu companheiro do lado). A mesma coisa com as vozes: Phil Minton apresentou-se sempre mais teatral, irónico, esticando ao máximo a corda da “expressividade”, com tons mais guturais umas vezes, mais gritados outras, mas quase sempre ininteligível; já Karolina Preuschl soava mais “cantora”, com discurso mais melodicamente definido — chegou até a arriscar um rap sobre um ingénuo e muito simples beat fornecido por dieb13 a partir do seu gira-discos, algo que depois o baterista Erik Carlsson tomou como sugestão, levando-o a ensaiar uma cadência igualmente sincopada, mas sem rasgo — esta gente certamente nunca ouviu falar de J Dilla, expoente de um outro tipo de beat generation, enfim…
Este concerto teve como complemento uma componente visual algo desconcertante — imagens lo-fi (vulgo telemóvel…) de água em diferentes contextos, de uma caminhada num trilho de gelo, com texturas algo difusas ou, por exemplo, uma sucessão de fotos de apresentações anteriores do colectivo. Tudo isso deu uma ideia de uma narrativa desconexa e sem aparente ligação ao tema do concerto, até porque em grande parte dessas imagens faltava um elemento fundamental da cena beat — o tal indivíduo e as pessoas e as cidades ou locais onde elas habitam. Se a ideia era a de gerar alguma perplexidade, talvez tenha resultado. Se era apenas para ter algo para projectar e distrair a audiência, então não valia a pena — o palco já estava suficientemente cheio para nos ocupar o olhar.
Musicalmente, a suite estruturada em cima de diferentes “movimentos” — “Beatniks We Are”, “Me on the Net”, “The Self Inflicted Incapacitation of the Human Kind” — também deixou a desejar, soando o resultado final — apesar de ocasionais passagens bem conseguidas — como um conjunto de vozes desligadas nos diferentes instrumentos, sem uma conexão aparente que não fosse o facto de estarem num mesmo espaço ao mesmo tempo. Se coçaram a cabeça no final, fizeram a coisa certa…
Mais interessante, à partida, era a proposta do projecto The Locals do pianista Pat Thomas, que há um par de anos arrebatou audiências neste mesmo festival com os fabulosos أحمد [Ahmed]. Thomas, o clarinetista Alex Ward, o guitarrista Evan Thomas, o baixista Dominic Lash e o baterista Darren Hasson gravaram um concerto no festival Konfrontationen Nickelsdorf em 2006 e o resultado dessa gravação viu a luz do dia em finais de 2020 através da Discus Music, facto que permitiu que o quinteto voltasse a levar para os palcos esta original proposta. Thomas e companhia soam como um dos projectos que Bill Laswell poderia ter lançado na saudosa Axiom, uma espécie de versão “jazz” de um grupo de p-funk exploratório.
A secção rítmica de Lash e Hasson é extremamente competente: ao contrário da dupla de bateristas que ouvimos umas horas antes no concerto de dieb13, aqui o baterista sabe certamente com que nós se devem atar a tarola e o bombo se a ideia é fornecer uma síncope daquelas com que Dilla impôs uma noção diferente de tempo; e o baixista soa musculado, mas consciente das curvas e contracurvas que definem o groove. Juntos, conseguem ser demolidores, traduzindo na perfeição aquele pulsar pós-hip hop da cidade de Nova Iorque nos ângulos rectos das suas malhas. Sobre essa entusiasmante base, Thomas soou sempre esclarecido, permitindo que das suas mãos chovessem clusters de notas, umas vezes de forma torrencial, outras vezes com compings tão subtis que pareciam apenas esporádicos pingos de chuva que ainda assim os seus companheiros sentiam e encaixavam. Num dos momentos, talvez para deixar claro que a base de Thomas é Londres e não Nova Iorque, um shuffle reggae tomou conta da guitarra, centrando-nos ali para os lados de Brixton, um lembrete de que a reinterpretação de Braxton é feita seguindo os preceitos da absoluta liberdade. Esta música sabe onde começa, mas pressente-se que raramente tem a certeza de onde termina, e boa parte dessa qualidade particular deve-se ao discurso criativo e sempre entusiasmante do clarinetista Alex Ward, fonte de solos que são motivo de constante maravilhamento. Não saber, portanto, onde esta música nos conduz é coisa boa. E lá está a riqueza da incerteza de que se falava por aqui há uns quantos parágrafos: é coisa preciosa e por isso deve ser bem guardada.