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Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 13/03/2024

A artista brasileira apresenta o seu novo trabalho ao vivo no Teatro do Bairro Alto.

Dibuk: “O canto dos pássaros influenciou a maneira como cantei e toquei, mesmo que de forma inconsciente”

Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 13/03/2024

Dibuk é Lea Taragona, artesã sonora de São Paulo, Brasil, actualmente a residir no nosso país, no Porto, lugar onde deu à luz — e aos céus — um Antipássaro no passado dia 10 de Março.

Gravado em casa com uma combinação entre voz, violão, electrónica e field recordngs, o segundo álbum em nome próprio da artista e compositora nasce do mesmo lugar onde mora a saudade e explora a dicotomia entre a claridade e a escuridão, entre um vôo livre e a ausência de asas para sequer descolar. São 10 faixas que se colam com auxílio de uma folk tão mutante quanto viscosa, capazes de perdurar nas nossas cabeças como se de mantras se tratassem, cobertas pela arte visual de Karla Ruas, que assina a capa do disco.

Em entrevista ao Rimas e Batidas, Lea Taragona recorda como, há 20 anos, recebeu o primeiro violão (o mesmo que usa para tocar nos dias de hoje) e aborda a sua mudança para Portugal. A cantautora que despontou na banda BIN BERI BAN fala-nos também do processo de criação do sucessor de Casa Zero (2020) e antecipa ainda aquela que será a apresentação do seu novo Antipássaro em Lisboa, que está marcada para o Teatro do Bairro Alto já este sábado, dia 15 de Março.



Fala-nos um bocado sobre o teu percurso antes de teres chegado ao álbum de estreia, Casa Zero. Como é que foi a tua formação musical? E já participavas noutros projetos antes de te aventurares a solo?

Começou em casa, com a coleção de discos dos meus pais, entre Clube da Esquina e Meredith Monk, entre Gismonti e Lou Reed. Ouvia-se muita música, e algo que penso ser muito particular é que, ao invés de cantarem canções de embalar para que eu e meus irmãos dormissem, cantavam canções pelas quais eles eram apaixonados, e que contavam histórias. Eram dos meus momentos favoritos esses pequenos concertos particulares e íntimos, que marcaram a forma como até hoje me relaciono com o cantar. Meu irmão foi o primeiro a começar a aprender a tocar violão, e eu logo quis me juntar, até que, em 2004, vinte anos atrás, ganhei o violão que me acompanha até hoje. Mais tarde, fui estudar música na universidade, e, junto com Vitor Wutzki e Gabriel Edé, formamos Bin Beri Ban e gravamos um álbum autoral, em que começamos a experimentar com uma ideia mais aberta de canção, muito influenciados pelo trabalho do Walter Franco. Lá surgiram minhas primeiras composições, que começaram a tomar a forma do Casa Zero após eu deixar o Brasil em 2017.

Passaram quatro anos desde o Casa Zero e, entretanto, mudaste-te para o Porto. Como é que te têm corrido as coisas deste lado do oceano? Tens procurado entrosar-te por entre as malhas da cultura portuguesa?

Não é fácil ser imigrante em Portugal, e, ao que tudo indica, ficará cada vez mais difícil se não houver uma resistência firme da sociedade civil e um combate à xenofobia. Às vezes nossos desafios passam desapercebidos, até mesmo por quem está perto. Mas temos essa nossa língua em comum, espécie de pele por onde nos tocamos. Gosto que digas “malhas”, a cultura é mesmo esse tecido, que tecemos juntos, e que nos cobre, sempre em construção, feita por todos que cá estamos, nesse espaço-tempo que compartilhamos. Envolvo-me nela e faço questão de bordar meus próprios pontos, ainda que nas bordas, sorrateiramente.

Daquilo que já conheces da música feita em Portugal, quem são os artistas/bandas a quem tens prestado mais atenção?

São muitos! Da canção à música exploratória, alguns nomes que me saltam são: Calhau!, Tomás Tello, Joana Guerra, Gustavo Costa, Inês Malheiro, NU NO, Os Sereias, Rafael Toral, Angélica Salvi, Rita Braga, Bujiwa.

Tens agora um novo projecto a caminho. Sentes que o tempo que já passaste por cá moldou as canções que apresentas neste disco? Há aqui material que já tinhas na bagagem que trouxeste do Brasil?

Eu já vinha cozinhando a ideia do disco novo há uns dois anos, e tinha reunido algumas canções que pensava que estariam lá, mas, afinal, quase todas as canções surgiram em um intervalo de dois meses, no segundo semestre do ano passado. Sem dúvida elas dialogam muito com o outro lado do oceano, mas não poderiam ter sido feitas lá. São moldadas, quiçá, por essas distâncias incontornáveis, que por sua vez moldam o tempo. Surgiram, várias delas, a partir de correspondências com um amigo que está longe. Carrego esses afetos transatlânticos comigo, como fotos ¾ na carteira, que bagunçam um pouco a linearidade do tempo.

Apontas Violeta Parra, Dorival Caymmi e Walter Franco como principais influências para o Antipássaro. De que forma é que estes compositores informaram a música que escreveste para este LP? E essas influências vêm das discografias desses autores no seu todo, ou há algumas obras em específico de cada um desses nomes que sintas que te tenham marcado mais?

São, na verdade, referências nas minhas criações como um todo, e me acompanham desde o início. A Violeta traz consigo essa imensa originalidade e visceralidade em mantras que beiram o black metal em voz e violão. Pesquisadora dos cantos folclóricos latino-americanos, não tinha medo de explorar uma voz própria que escapava a eles — ainda que deles viesse. Influenciou-me particularmente o álbum póstumo Composiciones para Guitarra, com demos gravadas por ela no fim dos anos 50 de canções estranhíssimas e acordes tortos, que parecem coreografias de dança para mãos e cordas. Já Caymmi cria verdadeiros ecossistemas sonoros com a voz e o violão, dos quais quase se pode sentir o cheiro. Inspira-me a construção de lugares com o som, para além da escultura do tempo. Acho também muito bonito como em suas canções coexistem opostos: claro e escuro, rápido e lento, vida e morte, interdependentes, como em “O Mar”, “A Preta do Acarajé” ou “Promessa de Pescador”. Já Walter Franco me influenciou muito através do minimalismo de suas canções, de versos por vezes tão enxutos, repetidos, que se bastam, como em “Eternamente”, “Água e Sal”, “Mamãe d’Água”, “Apesar de tudo é leve”, “Toque frágil”; canções elípticas, que podem durar segundos ou não ter fim.

A tua música assenta muito na voz e na guitarra, mas é depois adornada com algumas componentes de eletrónica e field recording. Qual é o processo que usas para compor? As letras e melodias surgem primeiro, ou são consequência das outras paisagens sonoras que escutamos nos temas?

Difícil dizer como algo começa. Não há uma regra, mas, nesse disco, muitas nasceram assim, inteiras: harmonia, letra e melodia ao mesmo tempo, como se estivessem sufocadas há algum tempo, e tivessem encontrado uma via de escape. Algumas paisagens sonoras também já lá estavam, ao vivo: gaivotas, pombas, sirenes, sinos da igreja, que vazavam para o microfone enquanto gravava as demos e que depois mantive nos takes que ficaram. Vivo no último andar de um prédio antigo do Porto, junto ao telhado, e a convivência com os pássaros me impactou profundamente. Não tenho dúvidas de que o canto deles influenciou a maneira como cantei e toquei, mesmo que de forma inconsciente. Há ainda duas canções que são poemas de Orides Fontela que musiquei: “Antipássaro” e “Um Pássaro Canta”. Se for para escolher, porém, somente um impulsionador das canções, diria que é o deleite com o atrito dos dedos nas cordas do violão, esse meu velho amigo, que se traduz depois em voz e palavra.

Quando lançaste o Casa Zero, ele veio acompanhado pela edição de um livro com as letras das canções e algumas ilustrações. Para o Antipássaro, também está nos teus planos levar esta obra para um outro formato que não apenas a música?

Para já, está nos planos uma pequena edição em K7 editada independentemente, além de pôsteres e postais desenvolvidos por Karla Ruas, que foi também quem fez a capa o disco. Mas o universo do Antipássaro me inspira ainda a seguir em muitas frentes, quem sabe o que virá desse vôo. 

Reparei que, quando editaste o single “Chove”, recorreste à ajuda da Inteligência Artificial para criar a capa. Qual a tua posição em relação à utilização deste tipo de ferramentas? E tiveste o seu auxílio em algum momento da criação do teu novo disco, seja na música como na parte visual?

A Inteligência Artificial no mundo das artes bagunça um pouco a ideia de autoria, o que me parece algo bastante positivo, para ser sincera. Aquilo que sai de mim, assim, meio regurgitado, não existiria sem o encontro com xs outrxs, e é, portanto, de todos nós. Da mesma forma, a imagem que o computador me devolve a partir de um prompt textual é uma recombinação de um arquivo coletivo. Eu usei a IA como ferramenta de investigação da ideia de Antipássaro. Queria entender como o algoritmo traduziria visualmente a imagem poética impossível da Orides Fontela, e a ferramenta me devolveu várias dimensões do bicho caleidoscópico. Depois, porém — apenas para me contradizer no final — chamei a Karla para fazer a capa, de tão rara e maravilhosa ser a forma com que ela recombina as imagens dentro dela e depois devolve ao mundo. 

No dia 15 de Março desces a Lisboa para tocar ao vivo este teu novo LP, no Teatro do Bairro Alto, completamente a solo, numa atuação em que assumes a voz, a guitarra e também a componente eletrónica. Vais procurar ser fiel às gravações, ou o concerto dá-te alguma margem para ir além daquilo que podemos escutar em disco? O que é que podemos esperar desta data?

Há neste concerto mais espaço para a improvisação, e se juntam também às canções do disco outras ainda inéditas, que surgiram no mesmo período e que são expansões do Antipássaro. É um concerto íntimo, com ruídos silenciosos, ou silêncios ruidosos, de quem quer, no meio da noite, embalar alguém.


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