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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 19/01/2021

Atitude, generosidade e irreverência.

Dezman: chamem-lhe Clássicossauro

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 19/01/2021

Foi no decorrer da década de 90 que um jovem Dezman, criado em Silves, começou a explorar uma cultura inovadora e disruptiva — a do hip-hop — que do outro lado do Atlântico lhe oferecera uma nova “língua” com sotaque americano, e principal foco nos lendários Wu-Tang Clan. O grupo da Grande Maçã foi uma das grandes inspirações para este garoto do barlavento algarvio, que rapidamente começou a materializar as suas inquietudes e visões do mundo no papel por meio das rimas.

Entre salas emprestadas e estúdios de rádios escolares, numa fase em que o material escasseava, um microfone coberto por uma meia e software rudimentar eram mais que suficientes para que Dezze (alcunha pela qual também era conhecido) pudesse cuspir as suas primeiras sixteens, cheias de métricas invulgares que rapidamente o começaram a perfilar como um dos mais promissores e talentosos MCs algarvios. Prova disso são as faixas soltas “Escadinhas da Fama” e “Não vale a pena” que ainda hoje podem ser encontradas pelos recantos da Internet.

Na primeira metade da década do novo século, época em que o hip hop era caracterizado por calças largas, roupa da icónica FUBU e snapbacks (ou simplesmente caps), os tempos de escola de Dezman levam-no a conhecer aquele que se tornaria um verdadeiro irmão dentro e fora do mundo da música: Pedro Pinto, mais conhecido por Reflect. Estes mesmos acessórios de roupa que andavam de “mãos dadas” com a cultura hip hop faziam parte da indumentária diária do nome forte da Kimahera, Reflect, chamando a atenção a Dezze, que rapidamente descobriu a paixão intensa pelos ritmos e poesias partilhada por ambos. Seguiram-se algumas colaborações, oportunidades para pisarem palcos um pouco por todo o Algarve, até que no Verão de 2005 encetavam um capítulo das suas vidas que mudaria a história de ambos para sempre – o início da gravação do primeiro álbum de Dezman, Atmosfera Hostil. Na garagem da casa de Reflect, a dupla trabalha Verão adentro naquele que se tornaria longa-duração de estreia de Dezman e também o primeiro projeto com selo Kimahera — a editora nascia junto com este trabalho do rapper da Caixa D’Água, Silves.

O primeiro round de Dezman (e de RealPunch, que curiosamente se estreia em álbuns na faixa 17 deste projecto, justamente chamada “1° Round”) é um verdadeiro knockout musical a todos os adversários. A sua Atmosfera Hostil estendeu-se bem além da sua terra natal, e muitas eram as escolas um pouco por todo o país, de Norte a Sul, a escutar este trabalho incessantemente. Volvidos mais de 15 anos, este continua a ser o principal marco na carreira de Dezman e muitas são as homenagens e mensagens de despedida com menção a este projeto de 19 faixas.

Mas nem tudo era perfeito e surgiam críticas à estreia do artista devido à falta de produções caseiras, já que este disco não contava com qualquer produção original sua. Essa “lacuna” técnica foi vista não como um problema para Dezze, mas sim como um verdadeiro desafio, ou não fosse ele um homem/artista com atitude. Neste período pós-Atmosfera Hostil, o rapper dedica-se afincadamente ao ramo do beatmaking, e é com esta iniciativa que nasce o seu segundo trabalho, cinco anos depois.

Pelo meio, houve tempo para novas colaborações, como a sua contribuição para a Evolusom, A Mixtape, trabalho com 15 faixas dos arquivos da Kimahera e polidas pelas mãos de Gijoe, que visavam celebrar o quarteto formado por Reflect, Nigga MC, Raffs e Dezman – anos antes, o quarteto pisava os primeiros palcos do Algarve sob o nome Evolusom.

Atitude e espírito crítico são sinónimos de Dezman, mas empatia e solidariedade adjectivam na perfeição o outro lado do artista, o seu lado mais humano que em 2010 se associa ao Programa Escolhas para a criação de Bairrismundo, um projeto de intervenção integrada que pretendia auxiliar jovens do bairro da Caixa D’Água em Silves. O grande objetivo desta produção, promovida pela Câmara Municipal de Silves e gerida pela Santa Casa da Misericórdia de Silves, era promover a inclusão sociocultural dos mais novos deste bairro social. A concepção das 13 faixas de Bairrismundo ficaram a cargo de Dezman, WTR, Nigga MC, Skaryo e Linas, os principais arquitetos do projecto a nível sónico.



Com o virar de década surgem convites e muitas participações se materializam com o envolvimento do artista. São várias as colaborações de Dezze seja a “cuspir” ou a produzir e a primeira metade da década revela-se bastante prolífica para o mesmo: “Dado Viciado” de Zé Capinha, “Rapattack” de Sagespectro ou “O Arrepio” de Reflect são apenas algumas das faixas em que este versátil artista da Kimahera brilha.

Já a segunda metade da década passada reservava um 2016 recheado de música nova na bagagem, com a edição de dois trabalhos a solo. Fruto de mais de uma década em constante evolução, principalmente na parte mais técnica da música, eis que surge Shaolin Caixaguense, o seu segundo álbum.

“If what you say is true, the Shaolin and the Wu-Tang could be dangerous”. São estas as palavras que introduzem os Wu-Tang Clan ao mundo em “Enter the Wu-Tang (36 Chambers)” e também a um jovem Mauro Cunha. Confesso admirador do universo Wu-Tang e de filmes de artes marciais, o autoproclamado “Terrível MC” volta atrás no tempo com este longa-duração em que homenageia os seus tempos de adolescente passados no bairro da Caixa D’Água. Este trabalho de 14 faixas debruça-se sobre os temas mais fracturantes do seu quotidiano, uma “imagem de marca” do rapper, que no decorrer da sua carreira sempre foi bastante vocal sobre essas assimetrias, e Shaolin Caixaguense não é excepção, como podemos testemunhar em “Magia Verde“, “Escravos do Trabalho” ou ainda “Cidade fantasma“.

Na véspera natalícia desse mesmo ano, Dezman antecipou-se ao Pai Natal e ofereceu aos seus ouvintes uma prenda em forma de EP – Nerdossoma. Este projecto desfez quaisquer dúvidas sobre as qualidades de Dezman enquanto produtor, apresentando 10 beats peculiares e frenéticos. Destacamos “Nada”, “Vivemos assim” e “Pandemónio”, faixa da qual extraímos o seguinte verso: “Eu ‘tou focado num legado que quero deixar, imaculado e sem nada para apontar, apenas clássicos e bons valores (…)”

Mais de uma década após o lançamento do mítico Atmosfera Hostil, 2016 seria o último ano em que ouviríamos um projeto do Clássicossauro em vida. Fora isso, algumas participações esporádicas como a sixteen na faixa “…Uimera” da rapper Russa.

Apesar disso, o futuro adivinhava-se risonho, já que na segunda metade de 2020 o rapper quebrava um interregno de mais três anos sem lançar material a solo e apresentava “Um Novo Dia”, faixa que teria seguimento agendado para o fim de 2020, como nos revela Reflect, amigo e companheiro de longa data na sua aventura musical:

“O Dezman, não se conseguindo fechar numa só caixa, estava a trabalhar em vários projetos paralelos, mas tinha um single que queria lançar no final de 2020. Esse single vai ser lançado. Mas tirando essa música, há outras que ficaram perdidas no tempo, inéditos por descobrir e tudo aquilo que ele já lançou. Nas palavras do próprio: ‘Eu nem sequer quero o trono, só quero que o meu legado não fique deixado ao abandono’. Eu e a Kimahera vamos cuidar desse legado e tal como escrevi, despedimo-nos do Mauro, mas o Dezman não vai ficar por aqui.”


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