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Fotografia: Klaus Mitteldorf
Publicado a: 09/08/2021

Relatos fictícios de uma outra época.

Derek Pardue: “Eu tentei usar o Sobrevivendo como catalisador para criar as minhas próprias histórias”

Fotografia: Klaus Mitteldorf
Publicado a: 09/08/2021

Na passada terça-feira dava-se por aqui conta de um novo livro que a 33 1/3 Brazil iria gerar: depois das abordagens a discos de Caetano Veloso, Tim Maia, Milton Nascimento & Lô Borges, Gilberto Gil, João Gilberto & Stan Getz e Dona Ivone Lara, a série vira o foco para Sobrevivendo no Inferno, álbum lançado em 1997 pelos Racionais MC’s.

O autor desta obra é Derek Pardue, professor, antropólogo e escritor americano que, entre outros assuntos, tem abordado o hip hop brasileiro e o rap afro-português (escreveu Cape Verde, Let’s Go, por exemplo) de um ponto-de-vista académico, mas em Racionais MCs’ Sobrevivendo no Inferno o olhar é outro, mais pessoal, o relato de um forasteiro que está a procura do seu lugar numa grande cidade brasileira nos anos 90.

Com edição da Bloomsbury, o livro fica disponível esta quinta-feira, dia 12 de Agosto, a desculpa para enviarmos umas perguntas a Pardue sobre este lançamento.



Da imensidão de álbuns de música brasileira que podiam ser escolhidos, quais foram as razões que o levaram a abordar o Sobrevivendo no Inferno dos Racionais?

Na verdade, o curador da série, Jason Stanyek, pediu-me para considerar a escrita de um livro sobre o Sobrevivendo. Longe de ser uma imposição, eu assumi logo que era a oportunidade perfeita para fazê-lo e um desafio muito bem-vindo. Eu produzi muitos estudos académicos sobre hip hop brasileiro e afro-português, mas a série 33 1/3 ofereceu-me uma alternativa à minha habitual plataforma académica convencional.

Apesar do Nada Como Um Dia Após Um Outro Dia (2002) ser objectivamente o álbum mais popular dos Racionais, o Sobrevivendo é que foi o verdadeiro game changer no panorama rap brasileiro. O álbum tornou-se rapidamente um clássico e trouxe consigo uma certa mística, incluindo histórias de mais de um milhão de cópias vendidas sem nunca terem aparecido em programas de televisão, um sonho para a maior parte dos artistas, e um bandido errante que reclamava ser a personagem principal numa das canções mais conhecidas, a “Tô Ouvindo Alguém Me Chamar”. Estas são histórias verdadeiras, porém, foi a sabedoria popular à volta do álbum que também me levou a escolhê-lo.

Para finalizar, o álbum teve um impacto significativo na minha vida pessoal enquanto eu batalhava para encontrar o meu caminho enquanto estrangeiro na massiva cidade de São Paulo no final dos anos 90.

Não sendo um falante nativo de português, houve algum tipo de exercício que precisou de fazer para que perdesse o mínimo possível na interpretação daquilo que os Racionais cantavam?

Eu ouvi o disco dezenas de vezes, talvez até centenas, desde que saiu em 1997. Os temas e o calão têm sido tópicos das conversas com amigos e conhecidos ao longo dos anos. Dito isto, eu nunca poderia dizer que entendo tudo sobre o álbum, mas tenho uma ideia muito clara do espírito e das histórias de cada faixa e de como elas encaixam. Eu adicionaria que existem vários jornalistas musicais, fãs e estudiosos que escreveram convincentes textos demonstrando um impressionante conhecimento académico de todas as referências específicas das canções. Eles devem ser elogiados; no entanto, essa não é exactamente a minha vibe. Eu fiz uma abordagem diferente, escrevi um livro de contos baseado no álbum e na minha experiência etnográfica em São Paulo.

No estudo deste álbum dos Racionais existiram outros do mesmo período que foi descobrindo e que têm, na sua opinião, o mesmo tipo de força?

Certamente, o Sobrevivendo não apareceu no vácuo. Eu escrevo resumidamente na introdução do livro que, nessa época, grupos como RZO, Câmbio Negro, Gog, MV Bill,  Planet Hemp e Marcelo D2 e até De Menos Crime foram influentes, juntamente com pioneiros como Sharylaine, Thaíde e DJ Hum ou Rappin Hood, mas eles não tinham a mesma importância. O carisma do Mano Brown não tinha paralelo e a sua aura era complementada pela excelência no DJing de KL Jay e pelo poder vocal de Edi Rock e Ice Blue para separar o grupo do resto.

Quais foram as principais dificuldades na escrita deste livro?

Para mim, o maior desafio foi escrever um livro que tivesse um conjunto de histórias coerentes (como se se tratasse de um álbum) e que fizesse referência às faixas originais sem que as explicasse ou recontasse as suas narrativas específicas. Noutras palavras, eu tentei usar o Sobrevivendo como catalisador para criar as minhas próprias histórias. O rap como generativo. Mais uma vez, este livro não é uma análise dos Racionais; é um relato fictício baseado nas faixas e na minha própria experiência na periferia de São Paulo durante a época em que o Sobrevivendo foi gravado e lançado.

Está a par daquilo que se faz hoje em dia no rap brasileiro?

Não sou um especialista, mas acompanho o rap brasileiro através de amigos e de plataformas como Spotify, Bandcamp e Instagram. Para além de Emicida, Criolo, Baco Exu do Blues e Djonga, que tiveram um reconhecimento internacional significativo, eu aprecio artistas menos conhecidos como Parteum, Rashid e Rincon Sapiência e, em particular, jovens artistas como Bivolt, Tassia Reis, Rico Dalasam, Jup do Bairro, Preta Rara e Luanna, que têm confrontado o preconceito interno no hip hop brasileiro em termos de género e sexualidade e actualizado a luta contra a contínua violência racista que visa pessoas negras na sociedade brasileira.

Se pudesse abordar outro disco para a série brasileira da 33 1/3, qual seria? E porquê?

Esta é uma pergunta realmente difícil! É grande a quantidade de álbuns que me vêm à cabeça por razões diferentes como importância histórica, inovação musical, relevância política e grooves contagiosos, mas acho que escolheria o Livro de Caetano Veloso porque, à semelhança do Sobrevivendo, tem um significado especial para mim. No entanto, e ao contrário do Sobrevivendo, que forjou um paradigma rap no Brasil em termos de retórica e de abordagem musical, o Livro foi transgressão. Misturou samba tradicional, bossa nova com arranjos de jazz ao jeito das big bands americanas e apontamentos de percussão afro-baiana. Algumas pessoas odiaram. Eu achei o álbum genial e inspirado.


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