A Russian Library vai voltar a lançar uma pedra no lago do underground português. Depoimentos do Futuro – Investigations on Portuguese Underground Hauntology é o próximo capítulo da editora fundada por João Paulo Daniel, João Castro e António Caramelo, e vai ser servido em formato de vinil de 12”, com pré-lançamento marcado para 7 de Novembro e edição oficial a 5 de Dezembro.
Trata-se de uma compilação que reúne 38 peças sonoras — curtas, fugazes, com duração máxima de um minuto — assinadas por artistas de várias gerações e sensibilidades do nosso circuito “subterrâneo”: Alexandre Centeio, André Gonçalves, António Caramelo, Archimuzik, Aural Design, Banha da Cobra, Bernardo Devlin, Bruno Humberto, Bruno Silva, Calcutá, Calhau!, Caranguejos, Clothilde, Druuna Jaguar, Durga Black, Fernando Ramalho, Filipa Cordeiro, Filipe Felizardo, Floresta Oblíqua, Folclore Impressionista, Francisco Oliveira, Gonçalo F. Cardoso, Jejuno, Joana da Conceição, Joana de Sá, Marlene Ribeiro, Ondness, Pedra Perdida, Pmds, Quatroconnection, Nu No, Polido, Sal Grosso, Sal Nunkachov, Serpente, Superstudio, Susana Mouzinho, Vicente Mateus e Vuduvum.
A proposta, aparentemente simples, parte de uma ideia que se move entre o conceptual e o poético: explorar o som como algo transitório, espectral, condenado a desaparecer assim que surge. A restrição temporal — um minuto por faixa, no máximo — serve, segundo a editora, para evitar “estruturas demasiado pesadas” e favorecer “objectos sonoros de carácter mais efémero e fantasmagórico”. O subtítulo, Investigations on Portuguese Underground Hauntology, não foi sequer partilhado com os artistas, precisamente para evitar a cristalização de maneirismos ou de um “estilo hauntológico”. Porque, como sublinha a Russian Library, “hauntologia não é uma estética”.
O conceito de hauntologia nasceu na filosofia de Jacques Derrida, em Spectres de Marx (1993), e descreve a presença de fantasmas — ideias, sons, visões — que regressam para assombrar o presente. Na música, o termo ganhou corpo nos anos 2000 através de figuras como The Caretaker, Burial, William Basinski ou Boards of Canada, e sobretudo através do trabalho de artistas associados à editora britânica Ghost Box, que transformaram a nostalgia e o ruído da memória em matéria sonora. O que se ouve nessas obras é uma melancolia mediática: ecos de transmissões antigas, samples corroídos, gravações de fita magnética que parecem vir de um tempo que já não existe. Segundo o School of Music da UCLA, trata-se de uma “relação melancólica com o passado cultural”, uma tentativa de reanimar memórias que já não pertencem a ninguém. A Universidade de Edimburgo acrescenta que esta “presença de futuros perdidos” reflecte a ansiedade contemporânea — o sentimento de que já não há horizonte novo, apenas repetições de um passado que se recusa a morrer.
Em Portugal, essa sensibilidade encontrou um terreno fértil no trabalho de vários artistas e editoras ligados ao experimentalismo e à memória sonora, entre os quais a Russian Library, que ocupa um lugar de destaque. Como o Rimas e Batidas tem sublinhado ao longo dos últimos anos, a editora tem cultivado uma relação íntima com o conceito de library music — gravações anónimas criadas para rádio, cinema ou televisão — e transformado esse arquivo funcional num espaço de reflexão estética e política. Em declarações anteriores, João Paulo Daniel referiu que a Russian Library procura reimaginar o passado sonoro português e europeu, libertando-o do museu e devolvendo-o ao presente. A hauntologia, neste contexto, é menos uma forma e mais uma atitude: a vontade de escutar o tempo como ruído, de reencontrar o futuro no meio das sobras do passado.
Depoimentos do Futuro é um prolongamento natural dessa investigação. Cada uma das 38 faixas funciona como uma aparição breve — fragmentos de colagens, leituras, gravações de campo, experiências de estúdio ou simples gestos sónicos — que, no conjunto, constroem uma espécie de arquivo vivo do subterrâneo português. O disco inclui ainda textos de Filipe Felizardo, Susana Mouzinho e Bruno Silva, impressos num desdobrável A3 em riso, acompanhado de um poster no verso. A edição física estará disponível em duas versões: vinil preto (tiragem regular) e vinil amarelo (edição limitada).
