pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/09/2022

Agregar e dar visibilidade.

Denise (Hellas): “Queremos dar força a outras mulheres que estejam em casa no quarto a fazer as suas rimas”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/09/2022

Abram alas para Hellas, pois vieram para ficar. Num triunfo da ressurreição das compilações, surge uma que se afirma tão necessária quanto fresca: duas dezenas de mulheres juntaram-se num projecto que pretende dar voz, no feminino, a todas as que quiserem falar. E aproveitando a deixa para purgar, seja exorcizando demónios interiores relacionados com violência doméstica ou educando para a luta LGBTQ+ e feminista e orgulho negro, é-nos apresentada uma peça que tão bem demonstra a falta que fazem as mulheres no hip hop; e quantas mais melhor.

O Rimas e Batidas esteve à conversa com Denise, um dos pilares desta comunidade, para descobrir mais sobre o colectivo, a mensagem e o objectivo de quem se mostra determinado a fazer-se ouvir.



Fala-me sobre Hellas: como é que surgiu a ideia para este projeto? 

Olha esta ideia inicialmente surgiu em 2016. Nós lançámos na altura uma mixtape, uma coisa mais “caseira” e éramos pouquinhas; numa lista de 30 e tal fomos só 9 a concluir o processo. Portanto, como aquilo tinha batido um bocado na rocha [risos] e não era esse o intuito e eu não me conformava com a cena, veio a história do COVID e eu pensei: “Bem, vou arranjar um bocadinho de lenha para me queimar e vou renovar aqui os convites da coisa”. Eu estive em lay-off na altura, três meses talvez e pensei então em renovar os convites, falei com algumas das pioneiras da mixtape da altura, expus-lhes a minha ideia e disse: “Olha, e se nós juntássemos aí mais sangue novo? Já passaram tantos anos!”; de 2016 para 2020 estamos a falar de quatro anos. E elas: “Bora, vamos lá, siga!”. Siga, mas vai a Denise na frente, claro [risos]. Comuniquei com mais algumas meninas, também foi uma lista de 32, se não estou em erro, algumas pioneiras e outras, lá está — a maior parte –, era tudo sangue novo e de 30 e tal ficámos 20, já não é mau. Desta vez tive de fazer as coisas de forma diferente, tive de impor ali um bocadinho as datas, limites para entregar a faixa, se não chegávamos a 2022 e nós ainda à espera, não é? [risos]. Por essa mesma razão ficámos 20, porque eu acredito que se estendêssemos um bocadinho as datas, a compilação passava a ser ainda maior. Isto foi mesmo no sentido de não me conformar com a primeira parte e com o término do colectivo ali, o que me fez reunir mais mulheres. Entretanto surgiram mais rappers femininas aí no panorama nacional e eu pensei: “Porque não? Vamos tentar fazer a coisa de forma diferente e ainda mais profissional”. Foi basicamente uma necessidade de ocupação com uma necessidade de mostra de novas mulheres.

E essa lista surgiu do teu conhecimento pessoal e pesquisa ou já eram amigas?

Algumas já tinha alguma ligação, alguma relação com elas, outras foi uma abordagem completamente nova, porque eu não as conhecia. Sabia que elas faziam rap, não tinha nenhuma ligação com elas, mas arrisquei. A abordagem inicialmente foi até quase toda feita pelo Instagram; o pessoal agora dá mais valor ao Instagram e eu não me ia pôr a mandar e-mails feita cota [risos] e as reações foram super boas, só houve uma ou outra menina que recusou, com motivos válidos para isso, mas a maioria foi mesmo um “vamos embora, vamos a isso e ver no que isto dá”. E depois lá está, criou-se um grupo no WhatsApp, javardice total [risos]. 

O típico, imagino as figurinhas [risos].

Ya [risos].

E porquê tu? Qual é o teu background e ligação com o hip hop?

Isto é assim, eu comecei em 2008… a minha carreira a solo tem ali um bocado que se lhe diga [risos]. Eu sempre curti de cantar, mas o meu trajecto na cultura começou como B-girl, ou seja, a minha cena era o breakdance e isso era vida para mim. Mas depois magoei-me seriamente e pensei: “Bem, não estou aqui para me partir toda, deixa ver o que fazer, porque esta cultura é de facto a que me move e eu curto de cantar. Porque não?”. E a coisa aconteceu. Foi o Virtus que começou por puxar por mim, convidou-me para refrões e projectos dele, a coisa começou a suceder por aí, entretanto o Keso apanhou-me nesse caminho e pediu-me para ser back vocal dos concertos dele e depois pensei… a coisa até foi muito engraçada: “Como é que eu faço a minha carreira a solo?”. Eu via os outros a fazer a cena, mas eu sabia lá por onde começar. Até pensei numa mixtape, então fui perguntar ao Keso. O Keso tem uma forma de ser muito especial, ele é muito peculiar. Então eu virei-me para ele, na minha inocência, estamos a falar isto em 2009 por aí e perguntei: “Ó Keso, como é que eu faço uma mixtape?” e ele: “Ihhh ó filha, sacas os beats da net, gravas e ’tá feito.” E eu fiquei a pensar naquilo do tipo: “Epa, é mesmo simples, se for assim então, vamos lá embora” [risos]. Pronto, fiz a minha primeira mixtape, tive muito bom feedback, mas sempre fui um bocado a medo, porque as coisas a solo são sempre diferentes do que ter um colectivo ou uma banda ou alguém do meu lado, então a insegurança era muita. Mas a cena correu bem, arrancou bem, colou e eu fiquei mais motivada. Fiz uma série de três mixtapes, fiquei por aí. E a cena é que eu nunca consegui identificar a minha musicalidade, porque a minha cena sempre foi curtir rap, mas eu não faço rap, é algo mais cantado ou seja, aquilo é uma mistura de soul music e r&b com uma base de rap ali notória nos instrumentais, então era uma cena híbrida. E o pessoal quando pedia para explicar o meu conceito, o meu género musical, era sempre um bocadinho difícil de explicar e eu acho que também foi um bocado por aí que sempre fui bem aceite, tanto na cultura hip hop como em todas as outras; a cena colava tanto numa festa de rap ou num concerto solo meu, com vários tipos de pessoas que curtem vários géneros musicais a assistir. Isso foi bom e abonou a meu favor, na verdade. Depois desse trajecto das três mixtapes comecei a pisar alguns palcos sozinha ou com outros nomes de bastante peso e eu não satisfeita com o trabalho que tinha — sendo que sempre achei que as mulheres faziam e fazem muita falta — e como passei a conhecer tanta gente pensei: “Porque não aproveitar se calhar algum nome, por mais pequenino que seja, ou o meu nome, neste panorama, e usar isso a favor de criar algo melhor ainda para esta cultura? Algo onde as mulheres possam depositar confiança, onde se possam sentir seguras com o convite, sem segundas intenções, porque eu também fui convidada para muita coisa, e depois muito ficou pelo caminho, e quem fazia esses convites? Eram os homens, com cyphers e assim.

Indirectamente respondeste-me a outra pergunta que tinha para ti, relativamente a esse mesmo assunto da tua musicalidade. A tua faixa é talvez a mais melódica da compilação, mas mesmo que se distinga é algo que encaixa bem. As tuas mixtapes iniciais também eram neste registo mais cantado? 

Sim, sempre foi assim. Os beats eram sempre rap, aquele boom bap que todos os homens rimam em cima daquilo e eu como não conseguia rimar, tinha de arranjar uma forma de fazer também, porque eu curtia bué dos beats [risos], então tentava arranjar ali uma musicalidade que encaixasse. Depois tive alguns convidados rappers que davam ali alguma diversidade às faixas. Mas nada disto foi pensado, foi feito porque sentia. Não pensei tipo: “Olha, vou fazer uma cena diferente, mas que pode ser incluída e que se calhar vai rolar”. Foi orgânico.

Quanto ao processo de gravação, como foi? Cada uma gravou na sua casa ou  foram a algum estúdio?

Quem nos dera que houvesse um estúdio para nos patrocinar ou estar disponível para nos gravar a todas, mas logisticamente também era um bocadinho complicado; ou todas se deslocavam a um sítio no centro de Portugal, que seria o mais justo para quem é do Sul e para quem é do Norte, ou então a coisa não dava. Obviamente que não tivemos nenhum patrocínio, então obviamente que cada uma gravou no estúdio onde costuma gravar ou em casa. Uma de nós tem estúdio, a Máry M. No meu caso, eu fui ao estúdio do zé menos; é lá que eu costumo gravar as minhas coisas, somos quase vizinhos. As outras meninas foram gravar no estúdio que conhecem e que se sentem à vontade e o tema foi livre, não houve nenhum conceito a seguir, a única restrição que houve era de preferência não ultrapassar os três minutos por faixa. Cada uma fez a sua cena e misturou no produtor ou pessoa que a grava. Houve meninas que fizeram o master no Zé, que também fez o master completo deste projeto. Cada uma teve a sua individualidade e falou sobre o que quis falar e escolheu o instrumental que quis.

Relativamente aos instrumentais temos alguns produzidos por mulheres também, como é o caso da Neblina por exemplo, que escreveu e produziu, ou da Trafulha, mas aí não houve exclusividade ao feminino, pois não?

A maior parte deles até são homens, infelizmente não nos deu ali muito tempo de manobra. Mas quando os abordei, no sentido de pedir instrumentais e se estavam à vontade para pertencer a este projeto, todos eles disseram que sim, todos se mostraram disponíveis. E quando lhes falei do conceito do projecto, ficaram super motivados e felizes por fazerem parte [risos], portanto acredito que foi genuíno, de facto. Não nos cobraram os instrumentais, ainda bem, porque se não seria um gasto avolumado [risos].

Como estavas a dizer, o tema ficou a cargo de cada uma, mas está muito presente nesta compilação a questão dos demónios interiores e todas as músicas, sem exceção, tocam em assuntos muito pertinentes. Durante muito tempo no rap as vivências das mulheres eram maioritariamente faladas pelo ponto de vista dos homens e das suas interacções com mulheres. Este é um projecto em que claramente a mulher se agarra com toda a força a esse papel de primeira pessoa e fala das suas batalhas e lutas: sentes que este é também um grito em tom de recuperação da voz no feminino?

Sinto que sim. Umas mais convictas e mais firmes que outras, umas com palavras mais directas e outras a usarem mais eufemismos, mas acredito que sim, que é um afirmar da liberdade de expressão das mulheres, sem dúvida nenhuma. E esse mote não foi dado, todas nós que estamos neste colectivo sabemos que somos uma presença essencial e necessária na cultura, mas em nenhum momento nenhuma de nós incutiu isso às outras. Fomos todas na paz e cada uma decidiu ser interventiva da forma que acha que deve de ser. Umas mais incisivas que outras, mas, sim, creio que isso está muito presente.

Na música “Tal e Qual” de May com Máry M falam sobre como ao longo da história a mulher sempre foi “utilizada” como “musa” e “tágide” na cultura, chegando até a dizer na letra: “Eles queriam mulheres como todas as outras que eles idealizam e escrutinam/ uma montra bonita que depois sai de moda e exterminam”; esta afirmação também remete muito para o facto de que durante muito tempo, embora houvesse ilustres nomes femininos do hip hop como Lauryn Hill, Queen Latifah ou Missy Elliot, muitos dos mais famosos nomes no hip hop eram masculinos e o lugar que mais se via ser atribuído às mulheres na indústria era muitas vezes o de estar em trajes menores em cima de um carro ou a servir de interesse amoroso em videoclipes. Como é que foi para uma mulher que se interessa por hip hop gerir isto em termos de influências e expectativas? 

Olha, falaste aí em artistas que são de facto uma grande influência para mim. Embora eu venha um bocadinho mais da soul music, o r&b e o rap sempre estiveram presentes, obviamente. A mim, enquanto mulher, fazia-me confusão estar a ver videoclipes de nomes como Snoop Dogg, 50 Cent, dessa altura, esses mais old school, com carros, dinheiro, mulheres, biquínis, camas, pronto. Fazia-me confusão, mas para mim as coisas só têm a importância que nós lhes damos, ou seja, a minha missão nesse caso era filtrar de facto o que me fazia bem ou que eu gostava, e o que não gostava, ignorava. Se viesse à conversa e me perguntassem o que eu achava disso, aí sim eu imitia a minha opinião, sem qualquer problema. Via também que tínhamos a Lil’ Kim na altura que fazia o inverso; ou seja, tudo o que tu vias em videoclipes de homens com as mulheres nos carros e assim, tu vias a Lil’ Kim a fazer a mesma coisa, quase em tom de escárnio, com homens. E aí uma pessoa já começava a pensar que se aquilo não fazia sentido assim, ao contrário também não devia de fazer. Mas sendo um “mundo de homens” era sempre uma batalha muito mais desigual nesse sentido. Eu, de forma pessoal e da minha vida no meio destes homens todos por onde passei não me posso queixar, porque também fazia por me dar ao respeito; e eu tenho pena que às vezes algumas miúdas se deslumbrem com promessas e com dicas de pessoas que já são se calhar um pouco mais mainstream ou “populares”, porque há de facto assédio, há de facto aquelas bocas foleiras; uma coisa é tu estares disposta a ouvir isso e quereres ir nesse sentido, há liberdade para tal, outra coisa é tu estares a fazer o teu trabalho e estares a lutar pelo teu espaço e depois vir alguém e dizer coisas do género: “cantas mesmo bem, olha, quando é que queres vir aqui ao estúdio e não sei quê…”. Aliás, vai sair uma música sobre isso, comigo e com a Saju, convidei-a para uma colaboração e vamos falar nesse tema.

Temos data e título?

Não sei ainda quando sai, talvez no fim do ano e chama-se “Para quê?”. O refrão vai um pouco ao encontro disso; eu podia falar mais, mas não vale a pena eu estar a falar mais porque já está tudo subentendido.

Para além do feminismo, esta colectânea toca noutras causas cruciais como a luta LGBTQ+ em faixas como “Choque de Realidade” da Neblina, empoderamento negro, como na música “Consciência negra” de Shiva e até um testemunho arrepiante de violência doméstica com a “Menina Mulher” de Lady N, onde é dado um nome a algo muito real: “a filha da Sandra, a Lara, morreu porque minimizaram a queixa lá na esquadra”. Tudo isto encaixa de forma perfeita com outro statment repetido várias vezes ao longo desta obra que é: “educação é poder”. Todos estes assuntos são muito relevantes, sentem que podem também estar a “educar” quem ouça e que mais que um exorcismo de demónios interiores seja também um abre-olhos?

Acredito que sim, eu acho que quem tem interesse nesta compilação é porque se importa com o que as mulheres têm a dizer e não numa de: “ah, deixa cá ver o que é que elas valem”. E eu quero mesmo acreditar nisso, que as pessoas compram para apoiar o próprio colectivo e ouvir realmente o que têm a dizer, porque todas elas têm algo importante a dizer; com testemunhos reais, como é o caso da Lady N, com dicas incisivas como é o caso da Máry M e da May, que dizem as coisas mesmo como elas são ou a Shiva na questão da consciência negra, portanto há todo um leque de abordagens importantes que eu creio que serão de facto um abre-olhos para muita gente; mas isso leva-me também ao assunto de que as pessoas às vezes ouvem, mas passado algum tempo volta tudo um bocado à normalidade e parece que o tema já está esquecido. Às vezes parece que há a necessidade de estar sempre a bater nessa tecla de outras formas ou dar outros exemplos consequente e consistentemente. 



Também na música “Ponteiro” de Saju é criticada a carência de empatia e o triunfo de se ser mais robótico, com menos sentimentos. Consideras que pode ainda existir uma acentuada falta de empatia nos ouvintes para certos assuntos mais sérios como estes? 

Eu sinto que o pessoal, agora na questão da música, trata tudo de uma forma muito descartável. Ouvem, consomem, gostam, voltam a ouvir, mas depois dificilmente voltam a pegar na mesma faixa; a não ser que a faixa seja mesmo o deslumbre total. A falta de empatia existe de facto e isso vê-se muito pelas redes sociais, o pessoal perde mais tempo, se for preciso, a criticar, do que a ir dar o props. Se é uma coisa que incomoda… isso que a Saju fala faz sentido porque muitas vezes nós estamos a ver caras e não estamos a ver corações e, lá está, ela muitas vezes em desabafo comigo fala e diz: “O pessoal olha para mim e acha que eu sou uma arrogante”. E depois tomam partido dessa visão e tomam-na como certa, sem sequer se darem ao trabalho de conhecer a pessoa. Acho que é nesse sentido que ela fala da falta de empatia e todas essas coisas e no sentido de as pessoas julgarem muito rapidamente. As pessoas ao ouvirem a faixa da Lady N se calhar podem dizer cenas como: “esta gaja levou na tromba” ou “esta gaja podia ter feito alguma coisa naquele sentido e não fez”, em vez de dizerem, “pá, caramba, ela já passou por muito. Deixa- me ir lá dar um props”, percebes? O pessoal perde mais tempo a fazer o mal do que a praticar o bem e isso custa. Temos agora esse exemplo com a cena da princesa da Disney.

A Pequena Sereia sim, que vai ser interpretada por Halle Bailey e o pessoal está muito revoltado porque sereias existem e não podem ser negras.

[Risos] ‘Tás a ver? O pessoal deu-se ao trabalho de clicar no botão do dislike em vez de pensar: “Estamos a evoluir”. A diversidade tem de existir.

E nota-se a clara importância que essa diversidade tem, há centenas de TikToks de crianças pelo mundo fora emocionadas ao perceberem que vão ter uma princesa da Disney da mesma cor que elas.

É exactamente isso. 

Na faixa “Nossa Arte” de Eve é mencionado o facto de que “alguns dizem que mulheres não são para o rap, mas mal lançamos alguma cena vêm todos mandar o check”. O que achas que se espera de uma mulher no rap? E o que é que se deve realmente esperar? 

É assim, o que eu acho que toda a gente espera de uma mulher no rap é que seja tipo uma bomba, que tenha o pack todo, que seja linda, seja gostosa, que mande raps rápidos e lentos, que mude de flow 30 vezes a meio da música, que nunca lhe falte o ar e que ainda se calhar faça um twerk ali no meio; eu acho que é isso que toda a gente — se calhar mais os homens — espera. Eu não espero isso de uma mulher rapper. Não quero parecer indelicada a dizer isto, mas eu acho que as pessoas esperam sempre que um artista tenha o pack completo, que não falhe nunca em nada e um artista antes de mais é uma pessoa, portanto, eu sou apologista que o artista não tem de ser um entertainer; e isto tem uma razão de ser, o porquê de eu estar a dizer isto. Vais a um concerto, sei que estás à espera de ver um concertozaço incrível com fogo, luzes e cenas [risos], mas um artista não tem de ser entertainer. O pessoal muitas vezes está à espera de que aquela pessoa ainda diga umas piadas, ainda dance e o que eu espero de um artista é que ele execute aquilo que sabe fazer da melhor forma e que no meio disso puxe pelo público. Isto para dizer que as mulheres, cada uma delas, são um exemplar único. Há artistas neste colectivo que se calhar nunca tocaram ao vivo, nunca subiram a um palco, no entanto fazem rap. E depois tens outras artistas nesse colectivo que se fartaram de pisar palcos e que são referências para muitas outras pessoas, como por exemplo a Muleca, que junta também a parte do graffiti e foi até agora júri do RedBull FrancaMente, a Shiva, que no tempo old school chegaram-na a comparar ao Valete no feminino, o que para mim é um grande elogio, tens a Tvon que também é mais old school. Mas, sim, eu acho que o que se espera de um artista é que seja um pacote completo, que nunca falhe e o que eu acho que se deve esperar é uma pessoa real ou então um alter-ego super bem assumido. É o que eu acho. Estou-me a lembrar aqui de um alter-ego, que na verdade nem sei se é bem um alter-ego, que é o David Bruno; aquele é de facto o nome dele, é o nome real, ainda o conheço da altura em que ele era dB, fazia beats. Cheguei a privar com ele e eu acho que aquilo é um alter-ego super bem assumido e as pessoas quando olham para ele não estão à espera de que ele se mostre enquanto pessoa, mas que continue naquele registo e naquela personagem. Agora, eu, por exemplo, assumo o meu nome próprio e quando subo ao palco eu sei que antes da artista sou a Denise. É a Denise que está ali e toda a gente que me for ver ou já viu sabe perfeitamente que eu sou a mesma coisa em cima do palco como sou fora do palco. E se tiver de assumir no palco que estou nervosa e a tremer como varas verdes ou que estou com dor de barriga ou afrontada, eu assumo, não tenho problema nenhum. Para mim é como se fosse família que está ali a ver-me, porque quem sai de casa para ir ver um concerto meu é porque essa pessoa realmente se importa em ouvir aquilo que eu faço, a minha criação; e a minha criação não é separada de mim própria. O que eu espero pessoalmente é que a pessoa seja genuína.

Na música “Choque de Realidade” de Neblina, a mesma fala sobre como quando queres andar para a frente existe a possibilidade de “ficares sozinha”. Qual é a importância do colectivo no rap aos teus olhos?

Acho que é super importante, porque neste colectivo em específico criou-se um ambiente familiar, não houve assim grandes quezílias, algo que aconteceu previamente na outra mixtape e que foi uma das razões para a coisa ter terminado ali um bocado de forma crua. Isso não se viu neste novo núcleo, houve respeito mútuo, nunca ninguém impôs nada a ninguém; sugestões eram aceites e este núcleo resultou muito bem. Nós temos uma boa relação e muitas de nós temos pena de que a grande parte das meninas estejam fora de Portugal. Temos algumas emigradas na Holanda, na Suíça, Tailândia, Áustria e França e mesmo com esta distância toda conseguimos criar ligações. Neste núcleo já fechei outro tema com a Máry M, fechei um tema com a Saju. O intuito também sempre foi esse: agregar, unir para que todas pudessem chegar a bom porto e eu acho este núcleo essencial; a intenção é que o núcleo se vá aumentando ainda mais com novas meninas. No meio disto sonhou-se muita coisa: sonhou-se criar uma label, criar um catálogo de artistas e fazer booking e management para todas de forma justa. Muitas vezes as artistas não são pagas de forma justa ou não sabem reclamar os seus direitos enquanto artista, sonhou-se muito à volta disto e essencialmente acho que este é um núcleo crucial para a cultura hip hop em Portugal. Acho que nenhum homem se sente intimidado com esta aparição, mas isto também serve para calar muitas bocas, porque há aí muitos homens que dizem que não conhecem mulheres a fazer rap na tuga e isso, para além de estar errado, é sinal de que não fazem o trabalho de casa. Acho importante. Não estamos a reivindicar nada, estamos só a assumir a nossa presença como qualquer outra pessoa assume a sua presença no panorama, mas é de facto uma coisa rara de se ver e com isto queremos dar força a outras mulheres que estejam em casa no quarto a fazer as suas rimas, ainda com receio se calhar de expor as suas músicas e o seu talento e o que escrevem. Nós queremos ser um motivo de impulsionamento, de motivação e se elas algum dia quiserem fazer parte deste colectivo, a porta está aberta, sem dúvida nenhuma. Quantas mais melhor [risos].

Ao longo deste projecto também falam muitas vezes de uma “nova era” que é “agora” ou que “está a chegar”. Como caraterizarias esta nova era? Em que consiste?

Esta nova era… isto às vezes é tudo um bocadinho contraditório, quando nós estamos a achar que está a ir neste sentido, na realidade está a ir noutro completamente oposto. Eu noto que em eventos, não de grande escala, mas em eventos assim mais familiares e “caseiros”, as mulheres são tidas sempre em conta, para participarem como DJ ou como B-girl, writer ou rapper, têm sempre em conta convidar uma mulher, duas, três; agora, nos eventos mainstream, isso já não se vê tanto. Vês de facto convites para mulheres como a NENNY e a Capicua, e vês um ou outro convite para a Russa, por exemplo, e mais que isso é algo raro. Eu compreendo que tenha de haver ali um cumprimento de qualidades ou se calhar um mínimo de “show” ou seguidores no Instagram, que toda a gente liga a isso, quem não tem muitos seguidores é sinal que não vale nada [risos], o que é completamente errado. As perguntas vão muito por aí, como é que a pessoa está a bater e ver se pertence a alguma label. As curadorias às vezes dão oportunidade, outras vezes nem por isso, mas eu acredito que uma nova era poderá estar realmente a chegar e basta as pessoas predisporem-se a aparecer e a mostrar aquilo que realmente fazem e gostam de fazer; se calhar sem esperar grande coisa, ter ambição, sim, mas na medida certa, porque… eu tenho muita pena, por exemplo, que a Chong Kwong não tenha o mesmo espaço que tem por exemplo a NENNY ou a Capicua, porque eu acho de facto que ela tem muita qualidade. E quem fala de uma Chong Kwong, fala de uma Tsuki, temos aí óptimos nomes de mulheres e eu acredito que agora estejam a ser mais incluídas. Ainda assim, eu acho, ou melhor, tenho a certeza, que as oportunidades não são as mesmas. Mas acredito nessa nova era e acho que as pessoas neste momento estão mais dispostas a colaborações, às vezes arriscam um convite para fechar um tema; acho isso bonito, as pessoas perguntarem, porque perguntar não ofende e nunca se sabe o que pode surgir daí. Daí eu achar que essa nova era está a acontecer, com as pessoas a não terem tanto medo de abordar e mostrar vontade de fazer acontecer e pronto, isso pode vir a dar bons frutos, quanto mais colaborativo melhor. 

O que esperas que fique deste projeto?

Espero que fique uma lembrança bonita nas pessoas. Espero que fique um marco no rap tuga, não digo que seja assim um género de grande saliência, mas que um dia as pessoas mais tarde pensem tipo: “Epá, vocês lembram-se? Elas lançaram uma compilação, 20 mulheres, espectacular”. É esse o intuito. Aqui ninguém quer ganhar dinheiro com isto, até porque ninguém está a ganhar dinheiro, gastam mais do que o que ganham com isto, mas é um voto de confiança neste projecto e é um voto de confiança de que fizemos algo para a história do hip hop em Portugal. Já foi feito em tempos outra compilação, na altura da Tvon foi feita também uma mixtape na altura do DJ Cruzfader também só com mulheres. Essas coisas ficaram, eu lembro-me, e eu gostava que as pessoas se lembrassem desta compilação como um momento que foi marcante em 2022, 20 mulheres juntaram-se e fizeram acontecer com os meios que tinham uma coisa bonita, uma coisa necessária e algo que lhes deu gozo, acima de tudo. E a intenção não é ficar por aqui, na verdade, gostaria de dar continuidade a este projecto, a este coletivo, de dar novas oportunidades a outras meninas, a quem se quiser juntar. Mas gostava muito que este colectivo seguisse forte e fosse sempre uma referência tanto para as mulheres que estão a começar, como para as que já lá estão. Que fosse sempre uma referência para nós mulheres e para os homens também, que tivessem orgulho naquilo que nós fazemos, porque às vezes a apreciação deles é mais na onda do “deixa ver o que é que ela vale” do que “deixa ouvir o que ela tem para dizer.”

Quanto ao formato deste projecto, pensam em disponibilizar alguma versão física?

Sim, nós temos uma edição física limitada e exclusiva também. Fizemos algumas cópias dessa edição, daí ser limitada. E é exclusiva porque vem o CD, vem um sticker, vem um booklet de agradecimentos e vem um poster mesmo old school [risos].

Mesmo tipo revista Bravo [risos], adorei.

Exacto [risos], pensámos em fazer uma coisa gira, atractiva, que dê para as pessoas ficarem com uma memória nossa para além do CD, com o sticker para colar no PC ou telemóvel e o poster; claro que nós pensamos que ninguém vai querer pôr aquilo na parede do quarto, mas é uma cena que está ali [risos], estamos lá todas e é uma cena ainda grande.

[Mostra o poster]

Foi a Mafalda Manaia que fez tudo isto, com todo o seu amor e dedicação, uma querida.

E onde estão a vender?

Estamos a vender online no nosso email store.hellas@hotmail.com  ou, então, através do Instagram, por mensagem direta, com qualquer uma das participantes do projecto. Cada uma de nós temos um número de cópias para vender. 

E relativamente a espectáculos? Gostavam de apresentar este disco ao vivo?

Sim, nós estamos em conversações com um grupo que tem uma plataforma no Instagram, a Cultura a Dentro. Estamos a pensar fazer uma parte colaborativa Cultura a Dentro x Hellas e fazer a apresentação da compilação ao vivo em três pontos de Portugal. Estamos a tentar ver as melhores datas e melhores locais, mas como não tenho disponibilidade para organizar isso tudo, pedi mesmo a ajuda delas e vamos ver se a coisa se concretiza, está tudo encaminhado para tal. Entretanto já surgiram dois convites para tocarmos ao vivo, um na SMUP na Parede e outro num evento que costuma acontecer no Chiado no Soul Burguer. Isto tudo sem descorar da apresentação oficial da compilação, queremos muito que isso aconteça. Obviamente que não vai dar para estarem todas presentes, porque temos pessoas emigradas, mas vamos unir esforços para que a coisa aconteça, até para depois a coisa estar perspectivada para haver convidadas, mulheres fora do núcleo que queremos convidar para fazer parte fora do concerto, nesse sentido de dar visão a mulheres mesmo fora do grupo. O objectivo é sempre agregar e dar visibilidade a todas.

Qual é o futuro d’Hellas?

Eu não sou muito boa a fazer futurologia [risos], mas isto com contexto, como nós vamos lançar as músicas single a single para o Spotify, já assumimos que existe uma label para nós artistas pertencentes ao núcleo. Essa label tem o nome de Hellas Groove, fui eu que estive a tratar dessa label e da distribuição digital e em todos os temas a artista é autónoma no catálogo, mas o tema que está no CD vai sair para o Spotify e a label associada será a Hellas Groove. Se no futuro as meninas continuarem a querer fazer parte do núcleo e a querer continuar a lançar músicas — mesmo com trabalho a solo não associado à Hellas — se quiserem continuar a usar esse nome da label para as representar, óptimo; ele existe. Se não quiserem, também não há mal nenhum, os catálogos estão criados e as coisas sucedem conforme cada uma quiser. Obviamente que eu queria que este núcleo continuasse unido, já tenho umas ideias mais ou menos planeadas para um próximo trabalho, porque enquanto este está a respirar nós já podemos estar a trabalhar noutra coisa e ainda não começámos [risos], mas como estou sempre aqui com o pirulito a trabalhar já estou a pensar aqui noutra cena mais conceptual: desta vez usar um conceito base, mas abrangente e depois cada uma desenvolver isso da forma que quiser. É só uma ideia ainda, mas a intenção é não parar, é sempre associar mais meninas, sem que nenhuma deixe de ser nunca independente. 


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos